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TEORIA

Uma crítica a Kurz: objetivismo teórico, catastrofismo econômico e impotência política

Valério Arcary

“Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas. Duas meias verdades não perfazem uma verdade.” (Eduard Douwes Dekker, alias,  Multatuli — 1820-1887)

A elaboração de Robert Kurz chegou a ter alguma repercussão no Brasil nos anos 1990, e ainda hoje mantém uma pequena influência em círculos universitários e, curiosamente, em Fortaleza. Os seus argumentos merecem ser considerados e submetidos à crítica.

Argumentamos em outros textos que, no século XX, revoluções foram mais freqüentes que em qualquer outra época histórica. E continuam sendo cada vez mais prováveis. Em contrapartida, concluímos, também, que as transições ao socialismo revelaram-se muito mais difíceis do que foi elaborado na tradição marxista. Em outras palavras, ocorreram no que diz respeito à elaboração do marxismo clássico sobre a teoria da revolução, duas surpresas históricas.

Surpresas não são acidentes históricos.[1] São desenvolvimentos inesperados que contrariam prognósticos e exigem atualização teórica, mas confirmam uma tendência, revelam uma constante, sugerem um padrão. A atualização de uma teoria não diminui a sua força explicativa, apenas confirma a sua vigência. Teorias que não se renovam, dogmatizam-se. Nenhuma teoria com ambição científica permanece válida se não incorpora revisões impostas pelas transformações da realidade.

Todavia, sempre que foram necessárias atualizações teóricas, o grau de dispersão política se eleva à enésima potência. Este texto defende duas teses programáticas fortes do marxismo que julgamos serem vitais: a centralidade da luta política marxista pela direção do proletariado, e a necessidade da conquista pelo proletariado da direção da luta de todos os oprimidos.

Esta é a dimensão subjetiva do desafio porque remete ao processo de formação da consciência de classe. Em outras palavras, ser marxista no início do século XXI é uma aposta estratégica que tem dois alicerces: a confiança histórica de que enquanto o proletariado existe e luta poderá redescobrir a grandeza social de sua força; e a confiança de que a luta política dos revolucionários pela direção do proletariado poderá abrir o caminho da revolução socialista.

Quarenta anos de revoluções interrompidas

Consideremos, primeiro, o curso inesperado da “longa marcha” da revolução mundial e, em seguida, as hipóteses de Kurz. A primeira surpresa foi o grau elevadíssimo de substitucionismo social nas revoluções do século XX. A maioria das revoluções proletárias foi derrotada (França/1871; Alemanha/1923; Espanha/1936; Grécia/1945; Bolívia/1952; Portugal/1975, entre outras) e a maioria das revoluções vitoriosas não teve como sujeito social a classe operária (Yugoslávia/1945; China 1949; Cuba 1959/1961; Vietnam 1975). O bloco de classes disposto a ações revolucionárias foi muito mais amplo do que a hipótese formulada por Léon Trotsky. E ele foi, entre os marxistas revolucionários da primeira metade do século XX, aquele que com maior audácia atualizou a formulação do marxismo do século XIX, na sua teoria da revolução permanente.

Em outras palavras, em sociedades agrárias ou muito pouco urbanizadas, os camponeses e massas populares não proletárias, empurrados pelas sequelas de crises e guerras devastadoras, cumpriram um papel revolucionário inesperado que o marxismo não tinha previsto. Mas, se o protagonismo social revolucionário das classes oprimidas não proletárias significou que o bloco social revolucionário poderia ser mais amplo – e, portanto, mais forte – demonstrou, também, os limites de processos revolucionários liderados por movimentos nacionalistas.

Todas as experiências de transição ao socialismo foram, em poucas décadas, bloqueadas. As restaurações capitalistas foram lideradas, invariavelmente, pelos aparelhos burocráticos estatais. As vitórias nacionais revolucionárias dos anos do pós-guerra deram lugar a derrotas que enlamearam a bandeira do socialismo. Um processo tão complexo de dialética de vitórias e derrotas não poderia deixar de provocar perplexidades. O paradoxo da história foi que não faltaram revoluções nos últimos cem anos, mas em nenhuma sociedade transformada por processos revolucionários se abriu e se manteve uma transição ao socialismo.

As revoluções do século XX foram, em sua maioria, revoluções políticas que não transbordaram em revoluções sociais. Dialeticamente, foram revoluções sociais interrompidas. Revoluções políticas transformam a forma da dominação do Estado, mas não deslocam o controle do Estado das mãos da classe dominante, porque não desafiam o fundamento histórico da dominação. Revoluções sociais são aquelas que alteram as relações econômico-sociais porque desafiam as relações de propriedade.

Em outras palavras, o século XX foi o século mais revolucionário da história, mas só excepcionalmente as revoluções se radicalizaram até o limite do rubicão do assalto ao capitalismo. A maioria das situações revolucionárias evoluiu até à queda de regimes tirânicos, ditaduras odiadas ou governos execrados, entretanto, pouparam a burguesia que protegia seus interesses com esses regimes. Portanto, o intervalo histórico entre as revoluções democráticas e as revoluções anticapitalistas, ou entre os Fevereiros e os Outubros, por analogia com a revolução russa de 1917, não deixou de aumentar.

A tentação catastrofista da iminência da crise final

O que nos diz Kurz? Em nossa opinião, a fuga em frente preferida de todas as análises de inclinação objetivista na história do marxismo, incluindo uma parte da tradição trotskista. O centro da questão metodológica foi desviar o foco para a análise da crise do capitalismo, para afastar-se da espinhosa análise da crise do movimento operário. Defende que o novo quadro histórico se definiria pela tendência ao esgotamento da forma mercadoria e pela anulação do valor, quase simultaneamente a conclusões semelhantes, neste tema, desenvolvidas por Mészáros:

“Se, no início do século XX, a transformação do modo de produção capitalista  (…) (imperialismo, economia de guerra, taylorismo, ideologização das massas, etc.), (…) talvez a ruptura de época, no final do século XX, exija uma transformação ainda mais ampla. (…) Só agora, passado o período de incubação dos anos 80, as novas forças produtivas pós-fordistas da microeletrônica e seus conceitos correlatos de racionalização (descritos em seu con­junto, de acordo com o referencial teórico escolhido, como segunda ou terceira revolução industrial) mostram seu verda­deiro potencial de crise: pela primeira vez, a riqueza material (e também ecologicamente destrutiva) é produzida antes pelo emprego tecnológico da ciência que pelo dispêndio trabalho humano abstrato. O capital começa a perder sua capacidade de valorização absoluta e alcança com isso aquele estágio, ex­trapolado logicamente por Marx, no qual a forma de sociali­zação do sistema produtor de mercadorias – que ‘repousa no valor’ – esbarra em seus limites históricos.” [2]

A hipótese de Kurz é instigante, mas flerta com o catastrofismo, porque sugere a possibilidade de que uma crise sem saída estaria em gestação. A premissa implícita por trás desta hipótese é que as crises do passado foram insuficientes para colocar na ordem do dia a estratégia da revolução mundial. Nessa perspectiva as revoluções do século XX foram prematuras. Por um lado, defende que o capitalismo já teria mergulhado a civilização na barbárie. Contudo, por outro, concentra-se na análise das mudanças trazidas pelas inovações tecnológicas da micro-eletrônica, exaltadas como um terceira revolução industrial, sem se perguntar qual o grau de coerência entre os dois postulados.

Kurz não parece dar importância aos desdobramentos destas duas linhas de interpretação. Primeiro, não parece difícil admitir que o capitalismo ameaça a vida civilizada. A questão é precisar, rigorosamente, se a barbárie já abriu o caminho ou não. A hipótese sempre foi cara para todos os marxistas, desde Engels e Rosa Luxemburgo. Se  isso aconteceu, correspondeu a uma mudança de época. Consiste em afirmar que o capitalismo do final do século XX, em algum momento, deu um salto de qualidade regresssivo, e impôs uma derrota histórica irreversível.

Segundo, se o capitalismo ainda estava desenvolvendo forças produtivas e não forças destrutivas, e os computadores e a telemática já permitem ir além do valor e garantir a socialização imediata, significa que aconteceu um importante progresso material e cultural e, portanto, parece exagerado caracterizar a sociedade contemporânea como um estágio de barbárie.  A análise de Kurz anuncia os limites históricos do modo de produção capitalista, mas quase nada sobre as perspectivas da revolução:

“A crise da forma-mercadoria é, no entanto, filtrada pelo movimento do mercado mundial (…) luta essa que pos­sibilita (e domina) as próprias forças produtivas que serão res­ponsáveis pela desvalorização da força de trabalho. Os capitais mais produtivos abatem concorrencialmente aqueles que não podem mais acompanhar o elevado padrão de produtividade, mobilizando para tanto vultosas somas de capital fixo. Os velhos perdedores e os novos retardatários só podem continuar no páreo à custa de baixos salários (ou ainda trabalho forçado ou escravo) (…) Podia parecer, à primeira vista, que o processo de crise transcorreria de maneira escalonada(…) e deixaria por último as nações mais fortes do ponto de vista do capital, capazes de sustentar por mais tempo o processo de simulação monetária através do endividamento do Estado e do sistema de crédito. Primeiro sucumbiram as economias do Terceiro Mundo e do socialismo de Estado, que passaram a ser exemplo de uma ‘modernização tardia’, fadada desde então ao fracasso no interior do hori­zonte burguês. Nos anos 90, porém, a crise parece avançar a passos largos em direção às economias nacionais estabelecidas.” [3]

Estamos diante de uma análise que identifica nas novas forças produtivas a capacidade de abrir uma época histórica em que mudam os fundamentos do processo de acumulação do capital. Inaugura-se uma fase de desenvolvimento que se definiria, tendencialmente, pela anulação histórica do valor.

A nova época histórica teria como traços constituintes a crescente barbarização das relações sociais, como expressão dos limites do trabalho com a forma mercadoria. Em outras palavras, a proporção de valor agregado pelo trabalho vivo seria cada vez mais irrelevante, na medida em que a ciência e a tecnologia se emancipam como a principal força produtiva, e a queda da taxa média de lucro atingiria tal nível, que o horizonte histórico dos limites da acumulação estariam cada vez mais próximos.

Decorre desta análise, de uma radicalidade objetivista que surpreende, uma nova compreensão do papel dos sujeitos sociais na  luta anticapitalista. Kurz desenvolve a crítica da esquerda a partir da ótica da necessidade de superar o politicismo. A crítica do politicismo é compreendida com uma superação da política. Mas a política não deve ser reduzida pela crítica marxista à sua dimensão mais cenográfica, mesquinha, ritualizada, espectacularizada. A fórmula anti-política de Kurz não consegue esconder a tentação propagandista.

A disputa pela direção do proletariado contra os aparelhos reformistas sempre foi o beabá do marxismo. Aqueles que estão em minoria e querem lutar para ser maioria não podem se permitir o luxo de escolher o terreno da disputa, porque a relação de forças não o permite. O terreno da política- as eleições nos sindicatos, as campanhas salariais, a organização de marchas, a participação nas eleições – é imposto aos revolucionários por essa necessidade. As ilusões da classe operária nas possibilidades de regulação do capitalismo não se explicam sem a presença ativa, esmagadora e opressiva de aparelhos burocráticos que dependem destas ilusões, e parasitam a insegurança dos trabalhadores sobre sua capacidade de luta. Estes aparelhos não podem ser derrotados sem ser confrontados. A alternativa seria uma opção de auto-exclusão de tipo “anarquismo” tardio, uma versão pós-moderna dos falanstérios de Fourier.

O enfoque anti-político leva a desaparecer da análise uma história centrada nos sujeitos sociais e na luta de classes. Kurz não procurou esconder o seu propagandismo, não há mediações, e o derrotismo se manifesta nas entrelinhas. Portanto, um pouco à maneira luckásciana, mas por um outro ângulo, menospreza os elementos subjetivos. A impotência política revela-se de forma desinibida.

Crise de direção ou aburguesamento do proletariado?

A segunda surpresa histórica foi a imaturidade do proletariado em afirmar a sua independência política e manter a vigilância e controle sobre as suas organizações. O grau de dificuldade do proletariado remete à sua condição de classe, economicamente, explorada, socialmente oprimida e politicamente dominada.

Muito maior do que o previsto pelo marxismo do século XIX, a debilidade subjetiva da classe operária se expressou na longevidade da influência da social democracia e do estalinismo, de longe os dois maiores aparelhos burocráticos que parasitaram a representação política dos trabalhadores no século XX. O substitucionismo social e, em conseqüência, o papel de organizações nacionalistas foi uma das pressões que levou uma parte do marxismo a dizer “adeus” ao proletariado. Outro aspecto da análise de Kurz é o deslocamento do protagonismo revolucionário das mãos do proletariado:

“Os remanescentes do velho radicalismo chegam a ponto de denunciar os prognósticos de uma transição iminente para a barbárie global como ‘falsa certeza’(…) Os náufragos críticos da sociedade foram de tal modo arruinados pela política e imbecilizados pela agitação, que só pode lhes parecer amalucada a tentativa de analisar uma revolução industrial (a microeletrônica), lan­çando mão de conceitos teóricos de crise. Eles tomam por supérfluas tanto uma definição de época, quanto uma nova historização do desenvolvimento interno do capitalismo, pois este, concebido em conceitos escolares, nunca deixou de ser o mal de sempre, imutável (…) Eles não ousam mesmo acusar de ‘objetivis­mo’, precisamente, a análise e a crítica das estruturas (real­mente) objetivadas, por terem desde sempre operado com conceitos burgueses irrefletidos de sujeito e vontade. Não che­ga a espantar, assim, que a demanda por uma supressão da forma-mercadoria e da forma-política, que no atual estágio da crise do sistema mundial plenamente desenvolvido deve ser formulada de maneira muito distinta que no passado, seja vista como reformismo ou fundamentalismo. “[4]

Segundo Kurz, o proletariado se integrou de forma irreversível: uma nova atualização das teses “soixante-huitards” vaticinando o aburguesamento dos trabalhadores. Mas uma classe que é explorada não pode renunciar à luta. Pode, simplesmente, escolher quando sente confiança em si mesma para lutar. Esta disposição de luta foi sabotada durante décadas pelos aparelhos reformistas, em especial o estalinista, que semearam entre os trabalhadores a ilusão das negociações, pactos e concertações para evitar situações de confronto, enquanto faziam a gestão do mal menor. Mas há um limite histórico para a eficácia dos aparelhos como última linha de defesa do sistema.

Todas as grandes revoluções políticas da nossa época foram, também, revoluções sociais em processo, porque só a mobilização de massas em grande escala pôde garantir a vitória das revoluções democráticas. Mesmo quando classificadas como democráticas, pelas tarefas colocadas, as revoluções políticas merecem caracterizadas como revoluções sociais incompletas, ou interrompidas, pelos sujeitos sociais que foram convocados para o seu triunfo. A armadilha da história é que as revoluções democráticas são processos em disputa cujo desenlace é incerto.

Não eram vermelhas as bandeiras dos jovens que saíram às ruas de Túnis, do Cairo, da Líbia, do Bahrein, do Yemen, e de Aleppo na Síria. Inexistem organizações marxistas revolucionárias importantes no mundo árabe. A revolução voltou à primeira cena da arena mundial, porém, as massas populares em luta contra as ditaduras como as de Ben Ali, Mubarak, Gadhafi, Assad e os outros califas não fizeram reivindicações anticapitalistas. Entretanto, as situações revolucionárias abertas nesses países ainda não se encerraram.
Aonde os ditaduras foram derrubadas, a revolução democrática foi uma antessala de combates de classe cuja dinâmica histórica será, objetivamente, anticapitalista, porque a contra-revolução da nossa época histórica foi, invariavelmente, burguesa. Mas este terrível aprendizado de que as revoluções democráticas foram revoluções inacabadas terá que ser feito no calor das lutas que virão, ou seja, com uma margem de improviso político elevado.

Notas:

[1] Acidente histórico é uma fórmula que remete, entre outros temas, a formas estatais ou regimes políticos que foram bloqueados, destruídos ou  derrotados. Tenta explicar, em elevado grau de abstração, processos muito singulares, como as Missões Jesuíticas no Cone sul da América Latina no final do século XVII e início do XVIII, por exemplo. Pode ser considerado um acidente histórico uma evolução temporária, porém insustentável ou até mesmo anacrônica, de uma sociedade (ou de uma nação). O conceito surgiu nas Lições sobre a filosofia da história de Hegel, e foi usado, também, por alguns marxistas. Uma das polêmicas sobre o tipo de sociedade que surgiu na URSS com o regime estalinista é se aquela seria ou não um acidente histórico. O texto de Hegel pode ser encontrado em: http://pt.scribd.com/doc/57456425/HEGEL-Em-Licoes-de-filosofia-da-Historia. Consulta em 13/12/2012

[2] KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis, Vozes, 1998. p.67-68.

[3] Idem.

[4] Idem, p.75-76.