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Estado mínimo, tragédia máxima: solidariedade e luta de classes no Rio Grande do Sul

Concresul/Divulgação

Gabriel Santos

Gabriel Santos é nascido no nordeste brasileiro. Alagoano, mora em Porto Alegre. Militante do movimento negro e popular. Vascaíno e filho de Oxóssi

Na língua espanhola existe o termo descorazon1, que é raramente usado, mas diz que tal morte foi causada por um sofrimento emocional gigantesco. Quando o sujeito já tirou de si toda a esperança, restando apenas a amargura e a tristeza. Hoje, podemos dizer que o estado do Rio Grande do Sul está passando por um trauma e vive de uma dor tão forte que se aproximaria do sentimento descrito em nossos países vizinhos.

Ao todo, mais de 90% dos 497 municípios daquele que é o quarto maior PIB de nosso país foram impactados. Algumas cidades inteiras foram destruídas. Onde havia rua e casas restaram água, lama e agora os escombros. Foram mais de cem vidas perdidas, em uma das maiores tragédias ambientais do Brasil.

As ruas da capital ainda fede a esgoto e fezes. Fora dos bairros de classe alta e da região central, as ruas continuam lotadas de lixo. Amontoados de destruição e móveis empilhados nas ruas. Muitos moradores ainda estão limpando suas casas. A prefeitura, que se orgulha de ser a capital dos negócios, usa, em vão, saco de areia para impedir novas inundações, e constrói lixões emergenciais ao lado das casas. Algo que nem mesmo os teóricos do racismo ambiental imaginariam. Na Porto Alegre de Sebastião Melo o ser humano e o urubu caminham lado a lado entre lama, escombros e o lixo.

A tragédia no Rio Grande do Sul não é algo que veio de repente. Não foi uma ação de vingança da natureza sobre nós. Já se havia alertas, riscos, e previsões que apontavam que isso poderia acontecer. É uma tragédia anunciada em um local que vive há décadas políticas de desmonte do Estado, de privatizações de empresas estratégicas, de flexibilização e destruição de leis ambientais, com o argumento que essas regras restringem o agronegócio e os códigos reguladores são travas à modernização.

Porto Alegre, a capital dos gaúchos, é um exemplo mundial do casamento entre o modelo neoliberal e a extrema-direita. O local que se orgulha ser a capital da inovação, e realiza seus eventos para empreendedores do mundo todo, é também sede de diversas think tanks liberais e de extrema direita, que além de formar jovens com suas ideologias, têm seus negócios ligados diretamente ao governo da cidade. É o privatismo e a venda de tudo que dá, junto do negacionismo científico a lá Brasil Paralelo. Uma distopia onde a prefeitura aplica medidas para impedir jovens de consumir bebidas alcoólicas depois da meia-noite, tenta proibir o carnaval de rua, enquanto transforma os parques da cidade em estacionamento, e as ruas em um imenso canteiro de obra de sua imobiliária preferida.

Qual reconstrução é necessária?

O que está em disputa agora é qual serão os rumos da reconstrução da capital. Os donos do Poder já buscam apresentar seu modelo: o aprofundamento da agenda neoliberal. Desresponsabilizando o Estado e colocando para a iniciativa privada o papel estratégico de reconstrução.

Sabemos o que isso significa: exclusão da população pobre do processo decisório; aumento da especulação imobiliária; higienização social de áreas inteiras; maior segregação espacial racial e social; nenhum compromisso com o meio ambiente.

De fato, não seremos os primeiros a falar aqui, e também não seremos os últimos, mas as reconstruções de cidades após tragédias ou guerras, costumam ser períodos de oportunidades para o capital. Empresas de construção civil, imobiliárias, bancos, as grandes lojas de comércio, e diversos ramos empresariais, terão a oportunidade de reconstruir cidades inteiras no interior. Serão os interesses políticos dos envolvidos nessa reconstrução, ou seja, os capitais investidos no projeto que determinarão os rumos do mesmo.

Os custos materiais e humanos para reconstrução física de um estado com 11 milhões de habitantes ainda não foram calculados devidamente. Como reorganizar e reconstruir economicamente e socialmente parques industriais e regiões inteiras? São perguntas que ainda não se tem total resposta, porém, acreditamos que é o Estado, a partir da esfera federal que deve ser o agente central na resolução dessas perguntas e principal organizador de investimento e planejamento na reconstrução.

É nas horas de crise que o poder público se torna agente essencial da retomada. Vimos isso mundialmente durante a pandemia. Foram os Estados, em diversos países, que socorreram empresas, bancos, hospitais e famílias, destruindo o mito do Estado mínimo e da falta de orçamento. Vemos também mundialmente o Estado assumindo controle de áreas estratégicas que antes haviam sido privatizadas, como empresas de água, de energia e metrôs.

É preciso que não se tenha restrições fiscais para recursos que poderiam ser utilizados para a reconsideração do estado e prevenção de novos desastres. Será preciso, principalmente da parte do governo federal, planos ousados de investimentos. Uma reconstrução completa da economia gaúcha, deve ser feita servindo tanto ao desenvolvimento, como também ao combate à desigualdade, e com a capacidade produtiva sendo pensada com redução dos impactos sobre a natureza.

A batalha política: nós x eles

A batalha pelos rumos da reconstrução e contra o negacionismo climático, faz parte de uma guerra maior. Não vamos nos enganar, é uma disputa política sobre o projeto de estado e de cidade.

Ela é também uma luta ideológica sobre as consequências e causas da tragédia. Uma luta contra a extrema direita, seu negacionismo e também contra o neoliberalismo e seu desejo de Estado mínimo e privatismo. Sem a combinação de uma política capaz de combater nossos adversários, gerando políticas públicas e ação concreta do Estado, ao mesmo tempo que se busca pequenas ações junto de movimentos sociais, a nossa chance de vitória é pequena.

Essa visão, a de que estamos numa luta política, não é majoritária dentro da esquerda gaúcha. Grande parte da mesma parece apostar na linha de união e reconstrução. Para alguns, nós, nossos adversários, os trabalhadores atingidos por enchentes, e a burguesia gaúcha, todos estão juntos sofrendo o mesmo problema e estaremos juntos de mãos na reconstrução do estado.

Essa leitura da política, de deixar para depois as polêmicas e focar em medidas de gestão unitária entre município, estado e federação, para reconstruir o estado me parece um erro. Justamente porque não se faz uma disputa política sobre a origem da tragédia, colocando a mesma como um acontecimento fruto das mudanças climáticas (quem ou oque causam essas mudanças?). Sem fazer uma disputa sobre o papel e dever de governos diante da crise climática. Não aponta e responsabiliza os gestores que tiveram políticas econômicas diretamente ligadas à tragédia. Assim como, não busca disputar os rumos da reconstrução. Parece que alguns acreditam que a extrema-direita, os neoliberais, o governo federal sentarão tranquilamente em uma mesa e irão fazer um grande acordo onde todos iriam sair ganhando.

Essa política de união e reconstrução é a armação para a derrota de nosso campo político. Completamente deslocada da realidade, ela subestima o peso da extrema direita e sua capacidade de articulação. Ela desarma nossas forças enquanto os nossos adversários seguem se preparando. É somente ver o que os porta-vozes do campo adversário falam em suas redes sociais, e ver quem tem mais audiência. Observar o papel da imprensa e as respostas tanto de Sebastião Melo, quanto de Eduardo Leite.

A esquerda gaúcha precisa enfrentar o problema da reconstrução, da emergência climática e enfrentar como ele realmente é: nós contra eles. Nosso campo político precisa crescer e acumular forças. Disputa narrativas, buscando construir uma nova maioria social. Juntar políticas públicas a partir do governo federal com um ousado plano de mobilização social com movimentos sociais, participação popular e trabalho de base nas periferias da capital. Somente assim, com ousadia, imaginação, coragem e assumindo a guerra que estamos lutando, poderemos vencer e construir um futuro mais “vermelho e verde”.

Pós-fácio: A crise climática veio pra ficar

É preciso ser direto: a crise ecológica, gerada pela burguesia, é a questão social e política mais importante do século XXI. Sua importância e urgência aumenta a cada ano. O futuro da humanidade será decidido nas próximas décadas.

O imperialismo pode realizar inúmeras conferências da ONU pelo clima. Os países do G7 podem tranquilamente fazer seus planos de redução de carbono. As Nações Unidas podem chamar diversas ONG´s do terceiro mundo e levar influenciadores negros para viajar e fazer palestras como grandes lideres do futuro. As grandes empresas, a Rede Globo, e o Itaú, podem fazer o teatrinho da “sustentabilidade” e de um futuro mais limpo. Nada disso vai retirar a marca da colonialidade, do racismo ambiental e do extrativismo.

O enfrentamento do colapso climático é necessariamente o enfrentamento do império do capital. A única forma de enfrentar o problema é ir à raiz do dele: Planos públicos; realização de uma reforma agrária e urbana; reversão de leis que flexibilizam a destruição ambiental; um desenvolvimento econômico e social alinhado a preservação da natureza; reversão de privatizações de áreas estratégicas com o Estado tendo controle da matriz energética; o combate ao neoliberalismo e um Estado forte com capacidade de planejar e executar planos econômicos.

A colonização, a expansão europeia sobre o globo para acumulação primitiva de capital, deu início a destruição moderna da natureza pelo homem, e por consequência sua própria destruição.

O modo de produção capitalista para se realizar fez necessário o colonialismo. Fez necessário a destruição de modos de vida, de civilizações, de populações inteiras, por todo continente que passou. Dizimou os indígenas na América e Oceania. Escravizou, sequestrou, e assassinou na África. Dominou e humilhou e regou com sangue por toda a Ásia. Por onde o capital e o colonialismo pisaram, destruíram e modificaram as formas de se relacionar entre o ser humano e a natureza. Onde antes existia relação de troca e utilização circular, a civilização que nasce da modernidade impôs o domínio da burguesia sobre o mundo, e isso inclui a natureza e todos os demais humanos.

Agora, após matar, saquear e destruir, durante séculos, civilizações e suas formas de vida, a própria civilização Ocidental burguesa cava a sua destruição. Seu modo de vida, a extração de mais valia e a alienação, se torna incompatível com a vida humana na terra. O Ocidente olha a si mesmo no abismo.

Se o sistema que legitima o aumento do dinheiro de uns poucos, é feito com a dominação e destruição da vida do restante da humanidade. A alternativa que ataca as raízes do mal em questão e aponta a saída é modificar esse sistema antes que ele destrua todos nós.

Não resta dúvidas. Entre abrir mão de seu Poder, de seu domínio, e de seus bilhões, para a construção de um presente mais igualitário e justo, e a morte de milhares de pessoas, maioria de países pobres de terceiro mundo. A civilização Ocidental, a burguesia e seu Deus mercado escolherão a morte de milhões. Eles tentarão fugir para outro planeta, um planeta b, quem sabe. Nós não temos dinheiro. Não temos como fugir. E não temos mais tempo. Cabe saber a nossa escolha: mudar o sistema, ou extinção.

1 Assim contou Darcy Ribeiro. Se é verdade ou não, que meus amigos professores de língua espanhola se resolvam com o mais realistas fantástico de nossos intérpretes.