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A classe trabalhadora está dividida

Zanone Fraissat/Folhapress

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

1. A realidade muito complicada que nos cerca impõe reconhecer, compreender, admitir, e assimilar que o Brasil mudou e para pior, muito pior, nos últimos dez anos, desde 2014/15. O que não é fácil para a geração mais veterana da esquerda, porque a decepção é muito grande. São muitas as mudanças objetivas, mas, também, subjetivas. Assistimos, em especial, a dois processos, dramaticamente, graves: (a) uma adesão ao bolsonarismo de, pelo menos, algo próximo da metade das camadas médias da classe trabalhadora entre 30 e 60 anos que tem contratos, escolaridade e renda um pouco acima da média e que são, predominantemente, homens brancos; (b) um afastamento ou separação política entre parcelas da classe trabalhadora e os muito pobres, em sua maioria negros.

2. Acontece que o mundo, também, mudou e ficou, igualmente, mais perigoso: (a) uma fração da burguesia brasileira, diante do fortalecimento da China, exige um alinhamento incondicional com a defesa da supremacia do imperialismo norte-americano; (b) uma fração da burguesia brasileira é negacionista da crise ambiental e hostil à transição energética, que deixará em desvantagem temporária quem fizer a descarbonização mais rápida; (c) frações burguesas giraram para a defesa de regimes autoritários que enfrentem o protesto popular, e abracem um linha nacional-imperialista; (d) a estagnação econômica e o empobrecimento e deslocamento à direita das camadas médias; (e) estamos diante de uma assombrosa crise da esquerda que subestima o perigo real e imediato de um neofascismo com peso de massas.

3. Este deslocamento para posições reacionárias, e até neofascistas, e divisão dos trabalhadores é um desastre político imensurável. Não é possível transformar a sociedade se a esquerda não reconquistar a maioria da classe. “Ensina” a história que sempre haverá uma parcela no mundo do trabalho assalariado que será atraída pelas lideranças burguesas. Mesmo quando a relação social de forças vier a se inverter, e uma divisão irreconciliável entre frações burguesas favorecer uma aproximação de setores da classe média das causas populares, ainda assim, será irremediável que uma minoria entre os trabalhadores seja hostil à esquerda. Mas sem o apoio de uma maioria, que deve se traduzir em organização e consciência, será impossível a esquerda abrir o caminho para as transformações inadiáveis, mesmo quando vença eleições. Não se trata, portanto, de um cálculo eleitoral, mas de uma aposta estratégica.

4. A esquerda foi majoritária, durante vinte anos, na parcela da classe trabalhadora com contratos, seja no setor privado, quanto no funcionalismo público, entre os anos noventa e 2013. Esse foi o núcleo duro original da base social e influência política do PT. Os assalariados que ganhavam acima de três salários mínimos: metalúrgicos, professores, bancários, petroleiros, etc. O lulismo conquistou maioria entre os muito pobres, especialmente no Nordeste, somente depois de chegar ao governo em 2002, em função do imenso impacto do Bolsa-Família e outras políticas públicas de transferência de renda e igualdade de oportunidades. Paradoxalmente, enquanto o PT, à frente de governos de coalizão, consolidava uma ampla maioria entre os muito pobres, a esquerda perdia audiência entre as parcelas dos trabalhadores com direitos e organização.

5. São muitas as razões objetivas e subjetivas deste desenlace terrível da luta de classes, que é uma das chaves de explicação da ascensão fulminante da extrema-direita. Seria leviano ignorar a experiência dos treze anos de governos liderados pelo PT e, sobretudo, o impacto da crise brutal de 2015/16, depois da eleição de Dilma Rousseff: uma recessão sem paralelos, que reduziu o PIB em 7%. Além do desemprego, a inflação da educação privada, dos planos de saúde, e de todos os serviços, o aumento dos impostos, inclusive o de renda, que são ameaças a um modelo de consumo e padrão de vida. Tampouco se pode ignorar a campanha de envenenamento da consciência de milhões com as denúncias de corrupção da LavaJato e o agravamento da insegurança pública com o fortalecimento das facções criminosas. Cresceu, vertiginosamente, o ressentimento social e o rancor moral-ideológico. Os dois estão entrelaçados e, talvez, até indivisíveis. Dezenas de milhões viram a miséria extrema dos muito pobres ser reduzida, mas, comparativamente, as suas vidas pioraram, porque a desigualdade social não diminuiu. Mas só estes fatores são insuficientes. São demasiado conjunturais. Devemos nos perguntar quais são os fatores estruturais. A tragédia é que uma parcela do “remediados”, que sempre foram uma minoria urbana da classe trabalhadora, “divorciou” seu destino da ampla maioria popular, miserável e não branca, ou seja, negra. Não foi assim, por décadas. Algo mudou.

6. O Brasil é um laboratório histórico do desenvolvimento desigual e combinado. Uma união do obsoleto e do moderno, um amálgama de formas arcaicas e contemporâneas. Insere-se no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole regional. O Brasil foi e permanece, sobretudo, uma sociedade muito injusta. A chave de uma interpretação marxista do Brasil é a resposta ao tema da principal peculiaridade nacional: a desigualdade social extrema. Todas as nações capitalistas, no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade está aumentando desde a década de oitenta. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo de desigualdade anacrônica. O Brasil permanece um país dependente e atrasado, tanto econômica e socialmente, quanto cultural e educacionalmente. A pobreza extrema diminuiu em relação a décadas passadas, mas a iniquidade social permanece em níveis escandalosos. A desigualdade social se mantém em patamares absurdos, comparativamente, ao dos países vizinhos. Os IDH’s (Índice de Desenvolvimento Humano) publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) são uma forma, ainda que parcial, de aferir esta disparidade. O Brasil está na posição 89º entre 193 nações com 0,760. No alto da lista dos países sul-americanos estão o Chile (44ª), Argentina (47ª) e Uruguai. (52ª).

7. A impressionante potência do lulismo, e a implantação nacional do PT e, em menor escala, de outras organizações de esquerda como o PSol, repousam na autoridade conquistada em décadas de luta contra a injustiça. Mas além de injusta, a sociedade ainda é, ideologicamente, racista, machista, homofóbica, além de hostil às reivindicações indígenas, e indiferente, senão desconfiado dos movimentos ambientalista de defesa da Amazônia. A esquerda brasileira ainda é uma das mais influentes do mundo, e tem posições nos movimentos sociais, como o MST e MTST, e simpatia eleitoral. Mas no terreno da luta ideológica, quando pensamos na escala do ciclo iniciado na fase final da luta contra a ditadura, é débil. Nunca encarou a luta ideológica de frente, porque era muito mais difícil. Em comparação com nossos vizinhos, como a Argentina, o anti-imperialismo tem menos apoio, e o movimento de mulheres menor audiência. Em comparação com os países andinos, nações de maioria indígena, a luta antirracista é frágil. Por quê?

8. Fenômenos complexos nunca são monocausais. Há muitas determinações. Entre elas, é obrigatório sublinhar que o estatuto social dos homens brancos, mesmo entre os trabalhadores assalariados das camadas médias, permaneceu, anacronicamente, muito mais elevado que o das massas populares, em sua maioria, negras. A opressão se sustentou no que podemos definir como privilégios de casta. As sociedades não se dividem somente em classes sociais. O mundo do trabalho não é homogêneo em nenhum país, mas no Brasil, um país com grandes desigualdades regionais, a heterogeneidade é abissal. Ser branco educado do Sul e do Sudeste é muito diferente de ser negro, semiletrado, migrante ou do Nordeste, por exemplo. O mesmo vale para a opressão das mulheres e dos LGBT’s. embora cada opressão tenha o seu sofrimento. Acontece que por variadas razões, desde a onda de 2013, surgiu, felizmente, uma nova geração no movimento negro, feminista e LGBTQIA+ e até ambientalista. Esse movimento de massas fez mobilizações de impacto como o #Ele não em 2018, as Paradas gays, e o repúdio ao assassinato de Marielle Franco no Rio, e de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia. Ações provocam reações. O bolsonarismo se alimenta do ressentimento social nas camadas médias, e deste rancor ideológico. Mas quem não faz a luta ideológica, sempre adiada para depois, não pode vencer. Este desafio colocado diante do governo Lula é incontornável.

9. O argumento deste texto é que este padrão de desigualdade social não é somente uma aberração arcaica. Foi funcional para uma acumulação capitalista mais acelerada que a dos vizinhos, desde os anos cinquenta. A superexploração do trabalho permitiu a extração de taxas de mais valia, excepcionalmente, elevadas. Fizeram-no porque podiam. Não se apoiaram somente na grande migração do mundo rural, mas explorando, também, a suspeita e desconfiança, portanto, fomentando o racismo, machismo, e divisão entre os remediados das camadas médias e a maioria popular. Neste processo a classe dominante construiu uma hegemonia política, mas também, ideológica. A redução da pobreza absoluta através de taxas altas de crescimento econômico manteve graus de coesão social suficientes para a manutenção da dominação político-social, mesmo com níveis de desigualdade social anacrônicos, uma anomalia. Aqueles na esquerda brasileira que defendem uma estratégia de reformas reguladores do capitalismo devem ser confrontados com este dilema da história. Se a classe dominante não aceitou uma negociação consistente e duradoura de reformas, quando o seu capitalismo periférico ainda tinha intenso dinamismo, por que aceitaria essa pactuação agora que esse impulso histórico se perdeu, e se abriu uma etapa de decadência? 

Notas
1 PIKKETY, Thomas. O Capital no século XXI. Intrínseca. Rio de Janeiro. 2014.
O livro de Piketty, de inspiração econômica neokeynesiana, e política socialdemocrata, apresenta um extraordinário volume de dados sobre o papel da herança na perpetuação da riqueza ao longo dos últimos cem anos à escala mundial. As séries decenais confirmam, de maneira irrefutável que, a partir dos anos oitenta do século passado, a tendência de aumento da desigualdade social se aproxima do padrão anterior à I Guerra Mundial. Consulta em 06/06/2024.
2 O IDH combina três indicadores: expectativa de vida ao nascer; anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade; e PIB (PPC) per capita, considerada a paridade do poder de compra. Consulta em 03/06/2024.