Pular para o conteúdo
BRASIL

Histórico e prognóstico de enchentes no Rio Grande do Sul

por Pedro Teixeira Valente, de Porto Alegre (RS)
Studio Os Dois / Álbum da Enchente de 1941

Escaler na Rua Sete de Setembro em 1941

Em vários municípios gaúchos, é comum encontrarmos pessoas que temem enchentes, em especial uma na magnitude da de 1941. Era comum conhecermos pessoas que, mesmo nunca tendo vivido a maior enchente do RS no século XX, carregavam consigo as memórias dos seus avós e bisavós. Uma espécie de terror psicológico, que, mesmo que nunca tenhamos vivido aquela experiência, temíamos que acontecesse. Temos vários desses medos. No clima, na economia, na política…

E então, superando os valores e coincidindo com as datas da enchente de 1941, os gaúchos enfrentaram novamente um novo evento nas mesmas proporções. Desta vez mais intensa (22 dias de chuva em média em 1941 e agora 6, menos de uma semana, em 2024). Os valores, superiores a 700 mm em algumas localidades do Estado no episódio atual, também já ajudam a evidenciar a magnitude deste evento perante o maior registro histórico. Ao longo dos 14 anos da minha vida como Geógrafo e Climatologista, vi diferentes estimativas de retorno da enchente de 1941. 1500, 750, 250, 180, 150 anos. Ao final, todas estas estimativas não acertaram a real periodicidade do evento. Entretanto, a falta de precisão não invalida o trabalho realizado. Os tempos de retorno calculados foram inseridos cronologicamente ao acesso que tive a eles. A cada vez que este cálculo era refeito, o intervalo diminuía. Anunciando que um evento destas dimensões estaria próximo.

Antes de abordarmos os eventos de 1941 e 2024, gostaria de destacar que estas não foram as únicas enchentes que o RS foi palco. A Figura 1 exibe os anos onde algum registro de enchente foi realizado no Estado. Se analisarmos, em todas as décadas houve, no mínimo, três episódios. Mesmo a década de 1950, considerada a mais seca do século XX, ainda assim apresentou episódios de inundação.

Fonte: elaborado pelo autor.

Este é apenas um dos materiais que demonstram o histórico das inundações no RS. Antes do episódio de 1941, em 1928 e 1936 por exemplo, e após a maior enchente do século XX, outras enchentes também marcaram a nossa história. Algumas até mesmo nos mesmos meses. Abril de 1959, setembro de 1967, julho de 1983, outubro de 1997, julho de 2015, setembro de 2023, novembro de 2023 e, finalmente, abril e maio de 2024. Estes, são apenas alguns dos maiores casos já registrados no Estado.

Se observarmos os meses de ocorrência, perceberemos que a maioria deles aconteceu nas estações de transição (outono e primavera). Isto se deve a uma série de fatores, dentre eles o fato das estações apresentarem períodos quentes e frios, precipitação normalmente mais elevada e, claro, o fator das mudanças climáticas intensificarem chuvas, tanto frontais quanto convectivas, nestas estações.

Quando comparamos os episódios de 1941 e 2024, notamos semelhanças e diferenças cruciais para a compreensão dos dois casos. O vento sul represando a água em ambos os eventos, porém muito mais presente e forte em 1941 do que em 2024 é um dos exemplos. Também podemos falar do El Niño. Ambos os eventos ocorreram durante um período de El Niño, assim como outros casos dentre os listados ao longo dos últimos 124 anos. Contudo, é importante ressaltar que a enchente de 1941 ocorreu no ápice de um El Niño que durou de 1939 a 1942; ao passo que a de 2024 aconteceu durante o final do episódio de 2023 e 2024. 2023 e 2024! Anos importantíssimos para a história da climatologia, tanto do Brasil quando do mundo. Dois anos que nos mostraram o quanto o fato da atmosfera e dos oceanos estarem mais quentes podem dificultar a predição meteorológica e climática.

No RS, as enchentes de setembro e novembro de 2023, que já foram o suficiente para causar prejuízos emocionais, econômicos, culturais, sociais e ambientais. Elas serviram como um prelúdio do que viria no outono de 2024. Entretanto, aqui entra uma informação que destacarei mais adiante. Três grandes enchentes em sete meses, sendo duas nas mesmas proporções de 1941. Um indicativo que as conexões trópico-polo estão mudando no hemisfério Sul, que a dinâmica atmosférica que ocorre entre Antártica e Amazônia está mudando.

Em minha tese de doutorado, estudei as mudanças nos padrões de precipitação do Sudeste da América do Sul (Nordeste da Argentina, Uruguai e RS) durante os anos de 1950 e 2020 e pude identificar uma mudança no padrão de precipitação do RS a partir do ano de 1982. Antes dessa data, as chuvas extremas possuíam maior tempo de retorno e dificilmente chegavam a três desvios padrões acima da média. Após 1982, não só a intensidade das chuvas aumentou, como a periodicidade delas (o intervalo entre dois episódios similares) diminuiu. Eventos que ocorriam a cada dez anos agora passam a ocorrer a cada três anos, chuvas extremas que ocorriam a cada vinte anos agora já se repetem a cada década. O mesmo ocorre para todos os tempos de retorno, o que inclui obviamente o cenário de 1941 e 2024. Talvez, dado a intensificação das chuvas e diminuição dos intervalos entre elas, estejamos diante de um novo padrão de chuvas extremas, ainda mais intenso do que se formou a partir de 1982.

Isto corrobora com os resultados exibidos no sexto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC), publicado em 2021. Nele, já era apontada a probabilidade de chuvas mais intensas e frequentes no Sudeste da América do Sul (incluindo o RS). Um maior número de frentes frias, de ondas de calor (como as que estão acontecendo no Sudeste e Centro Oeste do país, que colaboram com a intensificação das chuvas no RS, aumento da umidade e intensificação dos ventos em altitude criam as condições ideais para a atual alteração do padrão pluviométrico do Estado. No entanto, essa intensificação estava estimada a partir do final da década, por volta de 2030. O inesperado foi justamente que eventos como as três últimas enchentes (2023 e 2024) acontecessem sete anos antes do esperado e com um intervalo inferior a um ano.

Portanto, já podemos dizer que os resultados previstos para a próxima década estão acontecendo. Estas enchentes no RS, para quem ainda tem algum tipo de dúvida, são o maior exemplo de como as mudanças climáticas a nível global estão afetando o RS. Nos tempos atuais, é necessário compreender todas as dimensões afetadas pelas mudanças climáticas. Não só no âmbito atmosférico, mas também no hidrológico, econômico, político, social e cultural. Em todas as instâncias, teremos algum tipo de impacto em decorrência das mudanças climáticas. Para isso, necessitamos preparo e olhar crítico. Trabalhar com climatologia e meteorologia hoje em dia é jogar um jogo onde as regras são alteradas durante a partida. Nem sempre os padrões atmosféricos que conhecemos tendem a se manter. Isso também vale para toda a pauta ambiental. A remoção e alteração das áreas úmidas (banhados, várzeas e outras zonas de fronteira entre ambientes aquáticos e terrestres), são cruciais para absorver os excedentes dos rios. Estes ecossistemas devem ser respeitados e preservados para que não haja uma expansão das áreas de inundação.

Da mesma maneira, é necessário um investimento massivo na defesa civil, ampliando não só seus recursos financeiros e maquinários, mas também o corpo técnico-científico que opera nela a nível municipal, estadual e federal para que possam agir com tempo e condições ideais de resgate e prevenção de desastres. Outra pauta importante consiste na educação ambiental, tanto no âmbito escolar quanto no meio midiático. Educação ambiental é algo crucial para informar a população, lembrá-la dos eventos históricos e mitigar o impacto dos próximos. Precisamos conhecer e lembrar a histórica climática do nosso Estado antes que a própria atmosfera faça isso por nós com chuvas ainda mais intensas e constantes.

Pedro Teixeira Valente é Geógrafo e Climatologista, estuda as conexões trópico-polo (climatologia polar e subtropical) e seus impactos no hemisfério sul. Especializado em eventos extremos de precipitação, trabalha com a climatologia histórica do século XX no Rio Grande do Sul e Sudeste da América do Sul.