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CULTURA

A poética do jacaré

Mariana Mayor*, de São Paulo, SP

“Eu preferia ter perdido um olho” é o primeiro livro da escritora paraense Paloma Franca Amorim. Lançado no início de maio de 2017 pela editora Alameda, em São Paulo, o livro reúne 52 crônicas que foram publicadas no jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, entre os anos de 2011 e 2016.

Conheci Paloma em 2007, um pouco antes dela começar a escrever os textos para o jornal e quando talvez nem pensássemos que um dia as suas palavras iriam se transformar em livro. Um dia fui até o apartamento em que ela morava com o pai e a irmã para um almoço entre família e amigos. Foi um encontro melancólico porque lembramos juntos a morte recente de sua mãe. Comemos uma refeição típica paraense: peixe no tucupi com jambu. Lá para as tantas, perguntei onde era o banheiro e, caminhando pelo corredor, esbarrei com um escrito na porta do quarto dela: “porque eu como palavra, e cago palavra.”

A beleza bruta daquela frase me incomodou, me pareceu heresia – sempre imaginei que os poetas tinham pelas palavras um respeito sagrado. Conheci a escrita de Paloma por essa frase. Depois vieram as dramaturgias, os experimentos literários, os textos no jornal. Tinha criado uma imagem da Paloma parecida com a que imaginei de Hilda Hilst. Esta era a poeta que escreveu os poemas “malditos, gozosos e devotos”. Uma antipoeta, antiparnasiana, que tratava as palavras em sentidos inversos e inesperados, desrespeitando-as ao mesmo tempo em que revelava as suas entranhas.

Dez anos depois, enquanto lia seu livro, o escrito da porta do quarto retornava por entre cada linha de suas crônicas. A expressão cravada na parede revela mais da sua literatura do que poderia supor. A começar pelo título do livro, homônimo da primeira crônica apresentada: “Eu preferia ter perdido um olho”. Sem constrangimentos, Paloma fala sobre dois estupros que foi vítima – um ainda criança, outro no início de sua vida adulta. Num misto de revolta e melancolia, parte do violento acontecimento para falar contra o patriarcado, o machismo e a misoginia tão presentes em nossa sociedade.

Suas crônicas são como tiros precisos em direção ao leitor. Cagar palavras também seria usar as palavras como armas? Sua escrita desenha percursos fantásticos de sua imaginação, através de potentes figuras de linguagem. O fantástico encontra o real, porque Paloma cria imagens poéticas que nos colocam a todo momento cara a cara com o mundo – cruel, violento e brutalmente banal.

A sua escrita tem posicionamento político e ponto de vista. Por isso, ela também tem pressa. A única fotografia presente no livro – a do jacaré de boca aberta na capa – nos dá a impressão de estar a poucos segundos de abocanhar um peixe, ou a nós mesmos, os leitores. Por alguns instantes, vendo a capa, o jacaré se transforma em Paloma, e ela está a comer palavras, violenta e rapidamente. Temos de ter cuidado para não sermos devorados por ela, e olhar o mundo pelos olhos de Paloma.

A leitura do livro me faz conhecer Paloma. Sou aquela mulher que se perde na caminhada em Aveiro, que olha as montanhas da Patagônia, que desce do ônibus em Belém. Deparo-me com o cotidiano besta da gente em forma de superlativo. Como a vida pode ser tão linda e tão má?

Depois de algumas horas, deixo o livro na prateleira. Me agarro às costas do jacaré para que ele me conduza rio abaixo e mostre o que de áspero e delicado ainda não pude perceber do mundo. “Eu preferia ter perdido um olho” é uma obra contundente e poética de enfrentar tormentas. Não deixem de ler.

Mais informações no site da Alameda Editorial

* Mariana Mayor é atriz, professora e pesquisadora de teatro.

 

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