Especial Guerra dos Farrapos: Trabalhadores escravizados nas fazendas de Rio Grande [1768-1815]

Por: Luciano Pimentel da Silva2 

A historiografia tradicional sul-rio-grandense somente abordou a evolução da das fazendas pastoris do Rio Grande do Sul valorizando o trabalhado livre, executado por mestiços de nativos e brancos, e colocando em segundo plano o trabalhador escravizado. Moisés Velhinho historiador e advogado trabalhou em Capitania d´El Rei, defende a tese da superioridade racial européia, sobretudo portuguesa, no desenvolvimento do processo histórico do Brasil meridional. É possível perceber que o trabalhador escravizado passa despercebido na vida do cotidiano da fazenda sulina.3

O historiador Guilhermino César, ao escrever sobre a mão-de-obra escravizada existente nas estâncias do século 18, propôs que “na área da estância, tal estrutura admitia uma ação complementar – a do posteiro, mão de obra auxiliar condenada à vida na solidão, e a do negro escravo, mais útil na lavoura de subsistência e nos trabalhos domésticos, no galpão, como durante as expedições ao campo, no costeio do gado”.4

Essa visão historiográfica relaciona-se com o “mito da democracia pastoril”, onde não subsistiria exploração e contradições econômicas propriamente dita na fazenda. Jorge Salis Goulart apresentou em 1927, uma tentativa de explicação sociológica da formação social sul-rio-grandense, que na estância, não ocorreria dominação econômica, pois o ‘meio físico e o trabalho pastoril imposto pela natureza do solo’ irmanariam ‘patrões e empregados’. Sugeriu-se que nessas unidades produtivas – fazendas – existiria um mundo ufanista onde os cativos sulinos trabalhavam pouco e eram bem tratados pelos escravizadores.

Revisão necessária
A farta documentação empírica incitou os historiadores a reescrever a história do Rio Grande do Sul em geral, e da fazenda pastoril em específico. Uma nova leitura historiográfica começou a ser feita sobre a mão-de-obra escravizada na produção pastoril. O historiador Luís Augusto Ebling Farinatti escreve: “No caso do Rio Grande do Sul, as obras mais recentes começam a reconhecer que o trabalho escravo nas estâncias era importante no próprio costeio do gado, nesse caso, ao lado de peões livres”. Conclui ainda Farinatti “e não apenas em atividades acessórias, como os trabalhos de construções, serviços domésticos e da agricultura interna a essas unidades produtivas”.5

A historiadora Helen Osório constatou na sua tese de doutorado, estudo quantitativo sobre a estância sulina entre os anos de 1737/1832. Embasada em inventários post mortem, registra que 97% das estâncias sul-rio-grandense possuíam cativos. Na maioria dos inventários analisados não era possível distinguir “entre escravos domésticos e os dedicados à produção agropecuária, pois a ocupação do escravo nem sempre é registrada”.6

Helen Osório apresenta um dado importante na sua pesquisa: “Apenas 24% (43 inventários) discriminam a ocupação de algum de seus escravos, o que totaliza 367 cativos (18% dos escravos possuídos por estancieiros). Destes 152 (41%) eram ‘campeiros’ (137) ou ‘domadores’ (15), e apenas 20% eram ‘roceiros’ ou ‘lavradores’. Isto significa que 74% dos estancieiros proprietários de escravos com ocupação declarada possuíam escravos dedicados às atividades pecuárias”.7

Analisando os 74 inventários post mortem entre os anos de 1831-1850, na cidade de Alegrete, Farinati encontrou, num total de 337 cativos com ocupação declarada, 83 escravos campeiros e 157 sem referências. Com estes números fica mais evidente a dominância dos escravos campeiros.8

A riqueza das estâncias
A estância e a charqueada foram os principais estabelecimentos de geração de riqueza da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul durante o séc. XVIII e XIX. Segundo o viajante francês Saint Hilaire, a organização hierárquica do trabalho numa estância era composta por “um capataz, e por peões, debaixo da direção daquele; às vezes os peões são negros escravos, outras vezes e mais comumente são índios ou gaúchos assalariados”. 9 Nesses anos, apesar de apresentar algumas evoluções, as estâncias do atual território do Rio Grande do Sul estavam léguas atrás das estâncias platinas.

Apesar da função germinal que a fazenda pastoril desempenhou na origem e no desenvolvimento da formação social sulina, além de alguns estudos monográficos, não dispomos de sequer uma história geral da estância no Rio Grande do Sul, ao contrário do que ocorre no Uruguai e na Argentina, onde abundam valiosos trabalhos sobre o tema. Destaque-se que Guilhermino César, último grande expoente da historiografia tradicional sul-rio-grandense, esboçou uma primeira leitura da estância, de sua origem aos dias atuais, sem porém jamais concluir o trabalho, publicado postumamente em 2005 – A origem da economia gaúcha: o boi e o poder.

Esse paradoxo manteve-se apesar da abundância da documentação; da qualidade de estudiosos ligados ou não ao mundo pastoril; das periodizações e paradigmas interpretativos construídos pela historiografia platense sobre a questão. Por motivos ideológicos, a história da fazenda no Rio Grande do Sul parece ter sido vista como uma espécie de caixa de Pandora, a ser mantida sempre cerrada. Como no Uruguai e na Argentina, os mitos da democracia pastoril e da produção sem trabalho são também bases constitutivas das explicações apologéticas do passado sulino. O Rio Grande divide com aquelas regiões a apologia das virtudes democráticas das imensas propriedades, da reprodução natural dos rebanhos, da ocupação pelo colonizador de territórios sem donos, de civilização assentada na destemidez e nobreza de trabalhador visceralmente livre, o gaúcho.

Embora fique cada vez mais claro a importância da fazenda pastoril para o desenvolvimento econômico, político e social para sociedade do atual estado do Rio Grande do Sul, esta nova visão mais abrangente iniciou sistematicamente somente a partir dos últimos dez anos. Até então encontrávamos relatos dispersos e não uma obra sistêmica.

O papel da economia pastoril na Argentina e no Uruguai é determinante, da mesma forma que é no Rio Grande do Sul. Porém não é a do Brasil. A principal historiografia brasileira sempre se localizou no Rio de Janeiro. As demais poderiam poderiam ser consideradas marginais.

Outro elemento que não se pode deixar de analisar, como fato que dificultou a análise mais completa sobre a fazenda, tem haver com as guerras civis, principalmente a guerra farroupilha (183-1845). Esta guerra é sobre os fazendeiros pastoris e não sobre a coisa pastoril. É sobre a visão do fazendeiro e não sobre o mundo do trabalho. Alicerça-se em dois mitos: um deles é o mesmo que a do Uruguai e Argentina, a democracia pastoril. Não é um mito do Rio Grande do Sul, mas da economia pastoril.

Pode não ser uma conspiração ideológica, mas uma visão otimista da realidade pastoril e acaba universalizando toda a história. Esta visão apologética foi criada pela intelectualidade orgânica, fundamentalmente a dos uruguaios e argentinos. Para os vizinhos do prata, esta sociedade não havia descriminação, subordinados, violência, etc.

Por isso o mundo do trabalho sempre fora muito fragilizado no Rio Grande do Sul. O que poderia ter influenciado este pensamento sempre foram questões como o excesso de carne, e, portanto, qualquer um que habitasse estas terras poderia viver bem.

Outro elemento sobre esta questão era o fato do cavalo ter sido introduzido em terras meridionais. Na Europa somente os nobres tinham cavalos e por aqui havia para os peões e os nativos minuanos e charruas. São elementos que vão formar precariamente a sociedade sul-rio-grandense. A história produzida sendo sempre dada por preferência a história política e não a econômica.

O escravismo no Rio Grande do Sul sempre foi forte e mesmo no seu fim, inclusive com radicalização. A historiografia atual passa por um processo de “branqueamento”, uma verdadeira limpeza étnica da população. A preocupação tem sido cada vez mais para a história tradicional, construir somente a história do fazendeiro. Falta ainda a história do cativo campeiro, do gaúcho, do peão, do nativo.

Entretanto, ao contrário dos pampas platenses, o Rio Grande do Sul constituiu região de economia e de sociedade fortemente apoiadas no trabalhador escravizado.

Estâncias e trabalhadores em Rio Grande
Em pesquisa de trabalho de dissertação, Luciano Pimentel fez levantamento de inventários post-mortem na cidade de Rio Grande, entre os anos de 1680 a 1815. Além da escassez de documentação primária, a pouca que o Arquivo Público disponibiliza para pesquisa chegou em precária conservação. Em dez inventários analisados, oito continham informações sobre estância e cativos. Somente um inventário investigado em que a inventariada não possuía Benz de Terra e trabalhadores escravizados. Foi possível constatar nestes oito inventários encontrados, há a presença de cativos nesta fase inicial da fazenda sulina em Rio Grande. São estâncias pequenas, que constituem como base de sua sobrevivência a criação de um número reduzido de animais vacuns, além de cavalares.

Eram na sua maioria famílias que mantinham uma lavoura de trigo para a alimentação, um pequeno número de animais, contudo uma quantidade desproporcional de cativos. Essa produção de trigo jamais alcançou a monta que teve, por exemplo, a cultura do trigo nas primeiras décadas do século XIX, nas regiões de mais antiga colonização do Rio Grande do Sul.

Dos oito inventários que foram descritos os bens móveis, elencam instrumentos de trabalho agrícola como arados de ferros, enxadas, foices, etc. Seriam unidades agrícolas de subsistência, com a utilização de mão de obra escravizada. Isso explica que na região da cidade de Rio Grande, existiram escravos roceiros em quantidade não desprezível nas pequenas estâncias conforme mostra a tabela 01.

Tabela 01: descrição da quantidade de cativos das estâncias em Rio Grande

 

Proprietário

Ano

Filhos

Cativos

Antonio da Costa

1779

09

02

João Antonio da Porciuncula

1779

09

08

Páscoa do Espírito Santo

1768

09

06

Joanna M. da Purificação

1787

02

10

Thomé Machado da Costa

1781

02

04

 

Fonte: Inventário do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

Na tabela 02 os dados pesquisados nos revelam unidades pastoris pequenas, com um número de animais vacuns e cavalares reduzido. Não são estâncias de grande criação de animais.

Tabela 02: descrição da quantidade de gado vacum e cavalar nas estâncias de Rio Grande.

 

Proprietário

Ano

Gado vacum

Gado cavalar

Antonio da Costa

1779

63

22

João Antonio da Porciuncula

1779

62

46

Páscoa do Espírito Santo

1768

560

147

Joanna M. da Purificação

1787

436

139

Thomé Machado da Costa

1781

195

32

 

Fonte: Inventário do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

A tabela 03 apresenta a quantidade de trabalhadores escravizados que eram utilizados em cada unidade estancieira. Em média a metade dos cativos são homens em condições de trabalho, com idade superior a dezoito anos e inferior a quarenta e cinco. Entretanto, no inventário de Páscoa do Espírito Santo, aparece na documentação pesquisada, à caracterização de dois cativos, como peão de campo e peão domador. São indícios de que neste período em questão e nesta região em pesquisa, há elementos do cativo campeiro e a estância está passando por um processo de transformação.

Tabela 03: quantidade de cativos em idade acima de 18 e abaixo de 45 e animais

 

Proprietário

Cativos

Homens

Gado vacum e cavalar

Antonio da Costa

02

02

85

João Antonio da Porciuncula

08

05

108

Páscoa do Espírito Santo

06

03

707

Joanna M. da Purificação

10

04

575

Thomé Machado da Costa

04

03

227

Fonte: Inventário do Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

 1 Luciano Pimentel da Silva, é graduado História pela UPF. Especialista em Educação. Passo Fundo RS. E-mail: [email protected].

2 Mestrando em história pelo PPGH-UPF e membro do NEHL (Núcleo de Estudos sociolingüísticos).

3 VELLINHO, Moysés. Capitania d’ El-Rey: aspectos econômicos da formação rio-grandense. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005.

4 GUILHERMINO, César. O Conde de Piratini e a Estância da Música: administração de um latifúndio rio-grandense em 1832. Porto Alegre: EST/Instituto Estadual do Livro; Caxias do Sul. Universidade de Caxias do Sul, 1978. p. 17.

5 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Comunicação apresentada no “II Encontro Nacional Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”. Porto Alegre, 26 a 28 de outubro de 2005. p.2

6 OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1832. Tese apresentada ao programa de Pós-graduação em História da UFF. Niterói: 1999. p. 92.

7 Id. Ib. p. p. 133-134.

8 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Comunicação apresentada no “II Encontro Nacional Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”. Porto Alegre, 26 a 28 de outubro de 2005. p.9.

9 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul 1820-1821. Trad. Azeredo Penna. Belo Horizonte: Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. p. 130.