Morreu Fidel, o dirigente da primeira revolução que ultrapassou as barreiras do capital nas Américas. Dirigente de uma organização nacionalista que resolveu ser fiel aos pontos centrais de seu programa, como a reforma agrária, não recuou frente à brutal reação do Império americano, acostumado à docilidade dos dirigentes latino-americanos. No momento necessário, atreveu-se a expropriar a burguesia cubana e imperialista, chegando a um estágio que nenhum outro país, com qualquer direção chegou. O impacto desse exemplo foi imenso em todo o continente americano. Pessoalmente, impulsionou-me a militar por um tempo em uma organização castrista chilena, o MIR, durante o governo de Allende. Com a corrente castrista, minha ruptura completa se deu com a queda do governo da Unidade Popular.
Nesta hora manifesto o reconhecimento por esse papel pioneiro e também as diferenças políticas com Fidel e sua corrente.
No nível pessoal e da minha geração, é preciso contextualizar o que significou o impacto da primeira revolução que expropriou o capital nas Américas. O entusiasmo revolucionário que causou é uma pequena amostra do que pode fazer uma revolução em um grande país. Não confundir isso com a falta de democracia para o povo e os trabalhadores e a conciliação que impulsionou com as burguesias do continente é todo um difícil equilíbrio.
Em Fidel homenageio o dirigente que ousou romper com o jugo imperialista e do capital e repudio o governante repressivo e que adotou o padrão de conciliação com as burguesias do continente que se consolidou através das décadas.
E claro, a solidariedade com os sentimentos do povo cubano.
Os limites e as contradições do regime implantado por Fidel
Infelizmente, o regime dirigido por Fidel não procurou estabelecer ou estimular organismos democráticos dos trabalhadores e do povo que o apoiavam para que decidissem os destinos do país, o que era decisivo para dar um caráter verdadeiramente socialista ao regime. Ao contrário, rapidamente estabeleceu-se uma burocracia estatal e a do reconstituído Partido Comunista Cubano (o velho PC apoiava a ditadura de Batista) que seguiu os padrões vigentes na União Soviética e nos regimes do Leste Europeu.
Na política exterior, decisiva para uma pequena nação cercada por regimes hostis, diferenciou-se do padrão dos Partidos Comunistas durante o período em que impulsionou a OLAS (Organização Latino-americana de Solidariedade), mesmo com a tática equivocada das guerras de guerrilhas no campo. Ao final dos anos 1960, retornou ao padrão do stalinismo mais clássico: a colaboração com as burguesias supostamente progressistas.
Isso se evidenciou no apoio ao regime do general Velazco Alvarado no Peru e ao governo da Unidade Popular chilena. No caso desta última, mesmo em sua visita de um mês ao Chile em 1971, não questionou a estratégia de transição parlamentar ao socialismo, apesar de alguns alertas sobre o surgimento das primeiras manifestações e organizações da extrema-direita. Na África, em acordo com a burocracia de Moscou, foram enviadas tropas para ajudar o regime de Angola a derrotar os racistas sul-africanos. Ao mesmo tempo, deu total apoio ao regime nacionalista-burguês do MPLA que reprimiu de forma sangrenta a chamada Revolta Ativa de Nito Alves, uma ala dissidente do próprio partido de governo (e não me refiro aos aliados da África do Sul, como a UNITA e a FNLA).
Com o transcurso da década de 1970, sua posição foi ainda equivocada, chegando a intervir diretamente junto aos nicaraguenses da Frente Sandinista de Libertação Nacional para que não seguissem o exemplo cubano após a derrota da ditadura de Somoza em 1979, ajudando a cavar a sepultura da revolução democrática nicaraguense.
A partir dos anos 90, começou a impulsionar a restauração da propriedade privada no país, submetendo o povo a um duro regime de austeridade e começando a destruir as conquistas inegáveis da revolução. A coroação dessa obra pode ser sintetizada na normalização das relações com os Estados Unidos, mesmo tendo sido feita já com sua ausência formal da direção do país.
Os vários aspectos da trajetória de Fidel
A tendência à disputa despolitizada sobre o seu legado atinge também a esquerda. As publicações se dividem entre o repúdio absoluto e a adoração irrestrita, mais ou menos, claro que há belas e honrosas exceções.
O problema é que Fidel e a revolução cubana possuem diversas facetas. Os que viveram na década de 60 sabem como o heroico feito do povo cubano a 90 milhas dos EUA incendiou o entusiasmo de milhões. Derrubar uma ditadura sanguinária e não se dobrar ao imperialismo é um feito que está ligado ao legado de Fidel, apesar de toda a sua decadência posterior. Não é razoável que os mais jovens se apressem a condenar toda a sua trajetória pelo desenvolvimento posterior, em particular a partir de 1968 quando alinhou-se com a orientação de Moscou (o marco simbólico disso foi o apoio à invasão dos tanques soviéticos na Tchecoslováquia em 1º de setembro daquele ano) e esqueçam o seu papel na revolução cubana. É aquele primeiro Fidel que merece ser reivindicado, mesmo com as diferenças com seus métodos de organização do estado e de fomentar as lutas no continente. Muitos o reivindicam hoje, pois identificam-se com essa primeira fase e desconhecem o que ocorreu depois ou o consideram secundário.
Ao mesmo tempo, o tempo iria demonstrando as suas imensas limitações, as mais de fundo, a falta de toda auto-organização dos trabalhadores e a repressão de toda a dissidência dentro das próprias fileiras populares e não apenas nos que apoiavam o bloqueio e o boicote americano. E como formou-se uma burocracia governante, com seus privilégios materiais nada desprezíveis, apesar da pobreza do país.
Ao se prestar atenção ou ressaltar somente um desses aspectos fatalmente há unilateralidade. Não se pode esquecer e reivindicar o caráter profundamente revolucionário do acionar de Fidel na revolução cubana. Da expropriação dos latifúndios, das grandes empresas capitalistas, do corajoso enfrentamento à agressão imperialista. Não é correto, não é justo e não reivindica um aspecto que muitos que o choram reivindicam. Não dialoga com quem identifica o aspecto extraordinariamente positivo desse legado, uma amostra do que uma revolução pode realizar.
Outros cometem o erro simétrico: não percebem que Fidel e o Partido Comunista Cubano há muito enveredaram pelo caminho similar aos dos stalinistas de todos os antigos estados não capitalistas. Que o caráter autoritário do regime foi ficando cada vez mais forte, que reprimiu com mão duríssima os que criticavam, os que discordavam pelas palavras, pelos costumes (o trágico caso do tratamento aos homossexuais não pode ser ignorado) e que depois enveredaram por concessões cada vez maiores aos capitalistas, dilapidando as conquistas inegáveis da revolução cubana. Que conduziu ao processo de restauração capitalista na Ilha. Este Fidel não deve ser reivindicado pela esquerda.
O bloqueio americano e como enfrentá-lo
O assunto sobre Fidel e Cuba possui muitos aspectos. No final de semana, um amigo fez uma pergunta desafiadora:” como poderia Cuba resistir de outra forma ao bloqueio americano?” A pergunta é muito pertinente, por isso toco no tema de forma mais específica.
Em primeiro lugar, toda crítica precisa ser feita levando em conta a situação objetiva concreta. Um pequeno país, cercado, com limitados recursos e que ainda mais tinha a culpa de ter ousado se enfrentar com o poderoso Império tinha limitações materiais concretas. Por exemplo, não é razoável criticar Cuba por não tentar retomar Guantánamo, enclave americano na Ilha. Isso não era realizável por razões bem evidentes da superioridade militar americana.
Mas vejamos:
1) Por que a resistência ao assédio do império não se apoiou na mais ampla democracia para o povo? Por que nunca foram permitidas as correntes políticas distintas do PC cubano, ou mesmo ao interior deste, mesmo as que não estivessem associadas aos mais reacionários exilados em Miami? Por que não havia liberdade de expressão? Fazendo a transposição para esclarecer, pois o amigo é militante sindical: um sindicato que se enfrenta a uma patronal ou a um governo extremamente repressivo necessita confiar mais do que nunca na auto-organização democrática de sua base, ter uma imprensa aberta à participação, dirigentes sem privilégios, métodos limpos e democráticos de debate e de decisão.
2) Há uma razão ainda mais importante: um pequeno país só pode se enfrentar aos poderosos ganhando a simpatia ativa dos trabalhadores, da juventude, do povo explorado ao redor do mundo, em particular nos países metropolitanos. Transformar Cuba em um exemplo de deliberações democráticas era uma condição absolutamente necessária para isso, já que nesses países há margens importantes de liberdades. A falta de democracia bem evidente em Cuba só facilitava a tarefa dos maiores inimigos externos de dificultar ou impedir a solidariedade que poderia fazer a diferença.
3) O tema dos privilégios burocráticos não é menor, tanto interna quanto externamente. Além de ser errado do ponto de vista da construção de uma sociedade que quer chegar ao socialismo, do ponto de vista prático que estou abordando é insustentável. Qual é a razão para a sua existência do ponto de vista da resistência? Ajudaram ou prejudicaram a unidade para enfrentar o império? As lojas em que se adquiriam produtos com dólares inacessíveis aos cubanos, mas acessíveis aos altos dignitários do estado e do PC eram um fator de desestímulo para a unidade popular para resistir ao império e um flanco fácil de crítica das mesmas forças imperialistas que atacavam o regime. Os critérios igualitários que o regime soviético tinha no tempo de Lênin eram muito mais úteis para resistir e de dar um exemplo ao mundo.
4) Todo país tem o direito a ter suas relações econômicas, ter suas iniciativas diplomáticas, mas estas não podem se sobrepor à busca da solidariedade com os seus únicos aliados confiáveis: os trabalhadores e a juventude. No caso da América Latina, o melhor caminho era o de apoiar todo tipo de movimento, partido e governo nacionalista-burguês? A subordinação a Moscou levou a que calassem sobre a escandalosa colaboração entre o Kremlin e a ditadura de Videla a partir de 1976, porque a Argentina tinha rompido o bloqueio à URSS a quem vendia trigo. Os interesses estreitos estavam acima da solidariedade elementar com os próprios militantes do PC argentino massacrados pela ditadura. O internacionalismo dos primeiros anos, do Che Guevara, estava longe.
5) Por último, um alerta: o debate acaba adotando padrões rasos e os que apoiam de forma mais intensa a Fidel em todos os seus aspectos chegam a adotar uma forma de discussão que ecoa os tempos do stalinismo mais puro, tentando desqualificar os que desde a esquerda não aceitam a glorificação acrítica de Fidel. A força dos argumentos se impõe por si, sem precisar tentar desqualificar os oponentes. Os únicos que se desqualificam são eles próprios. E o debate sobre o legado de Fidel e do regime cubano é muito importante para ser tratado dessa forma.
Essas são algumas rápidas reflexões sobre a revolução cubana, escritas ainda ao calor da comoção causada pela morte de Fidel Castro. Por décadas, esse debate sempre esteve mais ou menos presente na esquerda latino-americana. No último período, a visível decadência do regime e os acordos com os EUA diminuíram o interesse sobre o tema. Mas talvez a morte de Fidel recoloque as discussões fundamentais que os cubanos tiveram que enfrentar e que, com todas as diferenças nacionais e de período histórico, são ainda indispensáveis para os que pensam em uma saída socialista, igualitária e democrática para a crise das sociedades latino-americanas.
FOTO: Fidel Castro, então um líder rebelde, e Camilo Cienfuegos (à esq.) entram em Havana depois de vencer as tropas do ditador cubano Fulgencio Batista. AFP
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