Comunidades de terreiro e suas contribuições para a construção de uma sociedade mais justa
Publicado em: 31 de dezembro de 2025
Se pudéssemos resumir a sociedade brasileira em categorias genéricas de pessoas, talvez os termos “estudantes e trabalhadores”, dariam conta da massa de gente que somos. Duas “caixas sociais” que abrangem a maioria das pessoas. Mas longe de ser suficiente perante a diversidade sociocultural, afetiva, familiar, étnica que nos permeia, também somos negros e negras, pessoas lgbtqia+, pessoas com deficiência, pessoas em vulnerabilidade social, pessoas com autismo, defensores do meio ambiente. Somos todos, tudo isso. E somos, a maioria de nós, religiosos ou espiritualizados. Em busca de conexão, ou já conectados às ancestralidades que resistiram e persistiram em existir por aqui. Ouso dizer, sem referência científica específica, mas com muitas referências literárias e empíricas, que a maioria de nós brasileiros levamos as questões religiosas e espirituais com muita relevância em nossa cultura e nossa ética.
Na esteira histórica das disputas políticas e de poder que aqui se desenvolveram, a religião nunca perdeu sua relevância. E nesse contexto de um país religioso, como construir consciência de classe a partir de teses científicas que ignoram ou desprezam o papel da religião e da espiritualidade na cultura política de um povo?

Dentre os maiores desafios da esquerda brasileira, se comunicar com o povo trabalhador e estudante desse país é um deles, especialmente com as bases, que são rurais ou periféricas, predominantemente. Por tradição, nossa esquerda se comunica muito bem com a classe intelectual universitária, com lideranças de movimentos sociais, e com a classe média progressista. Parcialmente bem com a juventude estudantil e com a classe trabalhadora, à qual pertencem as inúmeras ditas minorias culturais, étnicas e religiosas. E se comunica muito mal com as comunidades religiosas, de qualquer orientação ou credo. As comunidades cristãs, católicas ou evangélicas, são redutos históricos da direita e suas justificativas bíblicas para a manutenção de todo tipo de privilégio, por mais contraditório que isso possa ser, quando se lê o evangelho. As comunidades religiosas de matriz afroindígena, na sua amplitude e diversidade, sempre foram alvos das perseguições, da violência e do ódio dos poderes dominantes, tanto políticos quanto religiosos. Portanto, politicamente, pessoas e lideranças de comunidades de terreiro afroindígenas só podem se defender e lutar por sua própria existência pela esquerda. Mas, a esquerda olha para essas comunidades com qual olhar? Do exótico, do místico, do atrasado, do supersticioso? E as pessoas de terreiro, trabalhadores e estudantes periféricos? Como soa, para essas pessoas, aqueles discursos empolados por citações ou aquelas palestras tão convictas sobre receitas e caminhos para a revolução?
Você que é de esquerda, mas não é de terreiro, já pensou nisso? Você que é de terreiro e não é de esquerda precisa saber disso.
Você sabia que as religiões de matriz africana tiveram o maior crescimento proporcional, de 0,3% (2010) para 1% (2022) da população? Além disso, mais de 1,8 milhão de pessoas se declararam praticantes de Umbanda ou Candomblé, 42,9% se declaram brancos, 33,2% pardos e 23,2% pretos, mostrando uma mudança no perfil racial, com a maioria sendo branca. As maiores proporções de adeptos estão no Sul (Rio Grande do Sul lidera com 3,2%) e Sudeste (Rio de Janeiro com 2,1%). E que Cerca de 40% têm ensino médio completo/superior incompleto, e alta conectividade à internet (94,3% com acesso domiciliar). Esses são dados do censo do IBGE de 2022.
Há também muitas coisas sobre comunidades de terreiro que o IBGE não consegue mensurar e divulgar, por exemplo: sabia que o espaço social “terreiro”, ou uma comunidade de terreiro, é um local de resgate e salvação? Sim, salvação da identidade, da autoestima, da memória.
Os terreiros salvam as pessoas de sua desorientação espiritual, moral e ética que as igrejas cristãs não preenchem, ou pior, elas causam traumas de identidade e de espiritualidade de todo tipo.
O terreiro ameniza dores comuns causadas pela desigualdade, pela exploração capitalista. Uma comunidade de terreiro cumpre papéis sociais tão ou mais eficazes do que instituições formais públicas. Terreiros, na maioria das vezes, não tem nem CNPJ. Eles acontecem nos fundos de quintais, em terrenos periféricos, residências de aluguel. Sem fomentos públicos, sem ONG, sem apoio das forças de segurança, e resistindo ao preconceito e ao racismo religioso de suas vizinhanças neopentecostais fascistas.
Uma liderança de terreiro, seja na figura pessoal do pai ou mãe de santo, também é uma liderança política, uma referência moral, uma fonte de cultura e saber popular. São os mestres dos saberes e das memórias populares. Essas pessoas evitam suicídios, crimes passionais, mediam conflitos de toda ordem em suas comunidades, orientam sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis ( ISTs ) , dão assistência a detentos e ex detentos, socializa pessoas com deficiências e muito mais.
Um terreiro também é um lugar social, com problemas. Um lugar onde toda influência “ruim” da sociedade patriarcal, racista e supremacista construída pela colonização acontece. Consumismo, vaidade, egoísmo, desonestidade. As pessoas intoxicadas pela sociedade de consumo, pela hipocrisia cristã também frequentam terreiros, e a vivência em terreiro também é um processo de desintoxicação e “reaprendizagem” de valores humanos, costumes sociais e visão de mundo. Uma comunidade de terreiro acolhe, resgata e reconstrói pessoas destruídas por todas as situações de exclusão, violência, abandono e desprezo que uma sociedade racista embebida em supremacismo religioso cristão pode gerar.
Se um lugar que se chama de terreiro não cumpre esse papel de resgate, acolhimento e reconstrução de pessoas, então não é um terreiro. Se um terreiro é um lugar onde a normalidade é o assédio moral e sexual, o entretenimento e manipulação de fé alheia, então esse lugar é um anti-terreiro. Ele trabalha contra toda a ancestralidade que sustenta esse fenômeno “terreiro”.
Os terreiros de macumba cumprem um papel civilizatório de resgate e construção da dignidade das pessoas historicamente castigadas pela colonização. Um terreiro é o espaço sócio-cultural-espiritual mais descolonizador que existe. Porém, com tantas potências que temos, essas lideranças e esses espaços estão desorganizados, desarticulados entre si e, ouso a afirmar que, grande parte está despolitizada, sem consciência do quão político é o ato de liderar uma comunidade de terreiro.
É tempo de construir união, de encontrar pontos em comum dentro da diversidade que caracteriza as culturas de terreiro.
Na mira do ódio neopentecostal e suas ambições políticas, as populações de terreiro e as populações LGBTQIA+ são os leviatãs, aquele monstro fictício que tem a função de manipular e unir pessoas através do ódio e medo, em torno de líderes tiranos. A cultura de racismo religioso é cotidianamente semeada em púlpitos neopentecostais, e agora cada vez mais comum, em altares católicos. Em tribunas pelo país afora, parlamentares se sentem à vontade para perseguir, caluniar e difamar as culturas de terreiro. Policiais e agentes de segurança cada vez mais recebem doutrinação escancarada desses semeadores de ódio, e o resultado é o que vimos numa escola pública de educação infantil (EMEI) em São Paulo que recebeu a visita de homens fardados e armados de metralhadora por causa do desenho de um Orixá reito por uma criança. São inúmeras as manchetes de violências contra comunidades de terreiro. E, na proporção do crescimento desse segmento social, está o crescimento do ódio e do racismo religioso. No site https://l1nq.com/TP9MU, da Agência Brasil, a repórter Isabela Vieira revela que 76% foram alvo de diversas formas de violência, sendo que 74% foram ameaçadas, depredadas ou destruídas por racismo religioso. Essa realidade tem contexto político, tem causa cultural, tem impunidade e racismo estrutural que só pode ser combatido no plano da política.
Mas no fim das contas, quem legisla em proteção e defesa dessa população? Em época de eleições, quem são os políticos que aparecem em comunidades de terreiro? Eles oferecem que tipo de apoio? De quais espectros políticos são as pessoas envolvidas em federações de Umbanda e Candomblé no Brasil? Aquela famosa Marcha pra Exú que reuniu milhares e milhares de pessoas serviu para quê, nesse cenário de violência? Ficam as perguntas das quais sabemos as respostas. Para a direita e para a extrema direita neopentecostal e católica conservadora nós, povos de terreiro, somos todos macumbeiros, mesmo com nossa imensa diversidade cultural. Na mira do ódio deles, somos uma coisa só: macumbeiros, adoradores de demônios. Portanto, devemos nos organizar naquilo que nos une: na defesa política e jurídica dos nossos direitos, especialmente o de existir com liberdade e paz com nossas crianças de terreiro seguras em todos os lugares.
Precisamos urgentemente de articulação e mobilização pela defesa de nossos direitos e para que não percamos os poucos já conquistados.
Alan Geraldo é educador popular, Formador em Cultura de terreiros e militante da Resistência-PSOL Suzano
Lilian Santos de Carvalho educadora e militante da Resistência-PSOL Suzano
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