A moral que acusa, o dinheiro que manda
O Caso Master, a suspeita como manchete e os interesses fora de foco
Publicado em: 30 de dezembro de 2025
Divulgação Banco Master
Durante algumas semanas, o noticiário voltou a um roteiro conhecido. Fontes anônimas. Insinuações cuidadosamente calibradas. Manchetes que sugerem mais do que provam. No centro, um enredo sedutor: um banco em colapso, encontros nos bastidores, ministros do Supremo, decisões técnicas transformadas em suspeita moral. O Caso Master não é apenas um episódio financeiro. É um teste – mais um – sobre como a imprensa brasileira escolhe narrar o poder.
Há algo de déjà vu nessa cobertura. Não porque os fatos sejam irrelevantes, mas porque o método é antigo. Ele foi naturalizado durante a Lava Jato e sobreviveu a ela: a ideia de que levantar suspeitas públicas já é, em si, uma forma legítima de justiça. Como se o jornalismo pudesse substituir o processo, e o enquadramento valesse mais do que a prova.
Esse retorno não é casual. Ele acontece sempre que interesses econômicos de grande escala estão em disputa e quase nunca quando esses interesses têm nome, endereço e poder financeiro consolidado.
O que foi, de fato, o Caso Master
No plano técnico, o Banco Central do Brasil identificou fragilidades graves no Banco Master: crescimento agressivo, captação baseada em CDBs com taxas fora do padrão de mercado, risco sistêmico. A decisão de liquidação seguiu ritos formais, foi comunicada ao TCU e resultou num dos maiores acionamentos do FGC da história.
Esse é o ponto menos controverso da história.
A controvérsia começa quando a cobertura deixa o terreno técnico e passa a insinuar que decisões do STF teriam sido contaminadas por relações indiretas, encontros institucionais ou serviços jurídicos prestados por escritórios privados. Nada disso é, por definição, ilegítimo. Em democracias complexas, magistrados, reguladores e advogados convivem em zonas cinzentas que exigem regulação, transparência e vigilância, não linchamento simbólico.
O problema surge quando a suspeita vira produto editorial. Quando fontes anônimas sustentam o núcleo da narrativa sem documentação proporcional. Quando o leitor é levado a concluir algo que o próprio texto admite não conseguir demonstrar.
É aí que o método lavajatista retorna – não como operação judicial, mas como cultura jornalística.
A Lava Jato ensinou algo precioso à imprensa brasileira: o moralismo vende. Ele cria personagens claros, conflitos simples e a ilusão de que a política pode ser purificada pela exposição pública. O problema é que, historicamente, esse moralismo quase nunca atinge os centros reais do poder econômico.
Ele mira o político, o juiz, o servidor. Raramente mira o banco grande, o fundo, o conglomerado financeiro. Quando chega perto, recua. Ou muda o foco.
No Caso Master, a pergunta decisiva não é apenas “houve interferência indevida?”. É também: quem ganha com esse tipo de enquadramento? Quem se fortalece quando um banco médio quebra, o regulador é pressionado e o Judiciário é jogado no centro de uma crise de legitimidade?
Essa pergunta nos leva inevitavelmente ao sistema financeiro como um todo e a atores que quase nunca aparecem nas manchetes morais.
Quem é o BTG Pactual e por que ele importa aqui
O BTG Pactual é hoje o maior banco de investimentos da América Latina. Atua em gestão de ativos, private banking, crédito estruturado, mercado de capitais e assessoria financeira para grandes operações. É um banco que cresce quando o mercado se concentra, quando concorrentes menores saem de cena e quando a regulação favorece players com musculatura financeira.
Seu principal nome público é André Esteves, personagem central do capitalismo financeiro brasileiro das últimas décadas. O BTG não precisa quebrar bancos concorrentes para se beneficiar de sua saída. Basta que o sistema se reorganize com mais ativos disponíveis, mais clientes migrando, mais operações de resgate, fusão e reestruturação.
Nada disso é ilegal. É lógica de mercado. Mas é precisamente essa lógica que o moralismo jornalístico ajuda a esconder. Ao transformar a crise em um drama ético personalizado, a imprensa desloca o olhar do leitor da estrutura para o escândalo, do capital para o caráter.
Para o consumidor médio, tudo isso parece distante. STF, Banco Central, bancos de investimento um mundo abstrato. Mas os efeitos são concretos.
Quando um banco quebra, quem entra em pânico é o pequeno investidor. Quando o FGC é acionado, é o sistema inteiro que absorve o custo. Quando a confiança institucional é corroída, o crédito encarece, o risco sobe, o financiamento trava. No fim da cadeia, quem paga mais caro é o cidadão comum no empréstimo, no cartão, no financiamento da casa.
O moralismo não protege o consumidor. Ele o desinforma.
Ao sugerir que tudo se resume a corrupção individual ou encontros suspeitos, a imprensa poupa o debate sobre concentração bancária, assimetria regulatória e o poder real do sistema financeiro. Cria-se a fantasia de que basta “limpar” o Judiciário para que o mercado funcione de forma justa.
A história recente prova o contrário.
A grande mídia como caixa de ressonância
Pierre Bourdieu já alertava para o risco de a imprensa se tornar caixa de ressonância de disputas internas do poder, reproduzindo versões interessadas sob a aparência de denúncia. No Brasil, esse risco se materializou de forma brutal na Lava Jato e deixou cicatrizes institucionais, políticas e humanas.
O Caso Master mostra que a lição não foi totalmente aprendida. Isso não significa blindar o STF, o Banco Central ou qualquer autoridade. Significa reconhecer que forma é conteúdo. Que o uso excessivo de fontes anônimas, sem lastro documental equivalente, não é neutralidade: é escolha editorial. E que essa escolha tem efeitos políticos.
Por trás do Caso Master, há uma disputa silenciosa sobre quem controla o sistema financeiro brasileiro, quem define as regras do jogo e quem paga quando algo dá errado. Há bancos grandes que sobrevivem a qualquer crise. Há bancos médios que não sobrevivem. Há reguladores pressionados por todos os lados. E há uma imprensa que, muitas vezes, prefere o escândalo moral à análise estrutural.
A sanha lavajatista não é apenas um erro do passado. É um atalho confortável para evitar a pergunta mais difícil: como o dinheiro organiza o poder no Brasil e quem está autorizado a nunca aparecer como vilão?
Enquanto essa pergunta não for enfrentada, seguiremos trocando personagens, mas repetindo o método. E o custo, como sempre, não será pago por quem está no topo do sistema, mas por quem vive dentro dele sem jamais ter sido convidado a decidir suas regras.
Márcio Pereira Cabral é psicanalista, mestre pela UFRGS, diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?










Tomamos as ruas. E agora?