Carta n° 6 sobre a conjuntura: comentários acerca do empirismo na política
Publicado em: 30 de dezembro de 2025
Coluna Fábio José de Queiroz
Cearense, marxista, graduado em história, mestre e doutor em sociologia, professor associado da URCA (Universidade Regional do Cariri). Há mais de 40 anos milita sob a bandeira do trotskismo. É militante da Resistência, corrente interna do Psol. É autor, entre outros livros, de "1964: O dezoito de brumário da burguesia brasileira" (2015)
Coluna Fábio José de Queiroz
Fábio José de Queiroz
Nesta sexta carta, reclamo o lugar do método marxista, utilizado para apreender o movimento total, em suas múltiplas contradições, sem se sujeitar à mera aparência dos fatos. Trata-se de partir desse enfoque para se posicionar diante da conjuntura política no Brasil às portas de uma nova eleição geral.
O empirismo pede passagem no Brasil do século XXI
O empirismo como método, grosso modo, parte das sensações e da aparência dos fenômenos para extrair as suas conclusões, inclusive no campo político. Em regra, opõe-se ao marxismo e ao seu método dialético, em que a contradição e, portanto, a luta, têm lugar de proeminência e distinção.
No livro Ler Marx, Michael Löwy recupera uma interessante discussão acerca da atitude antidialética e empirista de Eduard Bernstein. Em Os pressupostos do socialismo e as tarefas da social-democracia, Bernstein propôs um “recurso ao empirismo” não só como um antídoto ao método dialético, mas também como o “único meio de evitar os piores erros”. Löwy classifica esse fato como uma luta do empirismo contra a dialética.
Dito isso, Manacorda sustenta que Marx não tem dono, mas o empirismo aplicado ao marxismo, a meu ver, introduz nele um ponto de vista eclético acerca da realidade, abeirando o marxismo de uma visão unilateral do mundo, em que o “marxista da hora” despreza “o olhar para o conjunto”, a contradição e o concreto (em suas múltiplas determinações).
No raciocínio empirista, é preciso responder “explicitamente” e “sem rodeios” se Lula é neoliberal ou não, e, na razão inversa, se a frente ampla é uma tática categoricamente imperativa ou não. À luz das sensações, o primeiro raciocínio se move em direção ao antipetismo de um setor da esquerda brasileira, que flerta com o antipetismo da extrema-direita. Já o segundo raciocínio, baseado na experiência da eleição passada e, por extensão, no pragmatismo, se adapta ao senso comum do discurso da frente ampla. E assim caminha a humanidade.
Os marxistas e a situação política
Uma apreciação realista da situação política há de mostrar um quadro relativamente difícil. O governo Lula, depois de se deixar intimidar pelos gritos da Faria Lima e de seus representantes no congresso e na mídia, deu um suave giro à esquerda, amparou-se em pautas populares e recuperou certo apoio entre as amplas massas, mas a situação segue intricada, seja pelas hesitações do governo, seja pela determinação dos financistas, do Centrão e da extrema-direita, ou até mesmo pelo cenário internacional, impactando fortemente na América Latina.
A eleição, um espaço de disputa programática, se aproxima. A esquerda socialista precisa levantar um programa de independência de classe, entendendo que a unidade eleitoral entre revolucionários e reformistas, necessária nas condições atuais da luta social e política, não é o mesmo que frente ampla. Se é um erro transpor mecanicamente a tática eleitoral proposta por Trotsky, no contexto da Alemanha do começo dos anos 1930 (candidatura comunista própria, sim ou sim), para o Brasil de 2026, como faz um setor da esquerda, por que não seria igualmente um erro tomar a tática da frente ampla de 2022 como necessária e correta? Nem os velhos, nem os novos dogmas.
Talvez eu cometa um “erro empírico” de avaliação da conjuntura política e da correlação de forças, mas é a realidade que comprovará ou não esse possível erro. Com isso, dirijo-me sobremaneira aos pragmáticos que se agarram ao ardor da flexibilidade tática, até porque o esquerdismo, sobretudo o das redes sociais, diante das pancadas da realidade, não raro, tende a seguir ignorando os seus sinais.
Lula da Silva 2026
A aproximação da eleição, com Jair Bolsonaro preso e inelegível, eleva todas as contradições ao ponto de máxima tensão. Nesse sentido, não é possível esconder que a esquerda socialista está diante de uma disjuntiva: apoiar ou não Lula da Silva? O Psol já sinalizou expressamente o voto pela reeleição do ex-líder sindical metalúrgico. Mas isso significa se atar ao cordão da frente ampla, legitimando-a? Ou, diferentemente, trata-se de apoiar Lula, apesar da frente ampla?
Uma coisa é apoiar Lula dentro da frente ampla porque não há correlação de forças que permita derrotar essa tática eleitoral; outra bem diferente é sacralizá-la. Uma esquerda marxista não pode ser signatária da tática do seguidismo à frente amplíssima (há quem ache que é sectarismo levantar sequer esse problema, o que mostra a que ponto a esquerda chegou em meio a uma quadra desfavorável).
Os socialistas devem, contudo, admitir a necessidade política de apoiar Lula como a única candidatura capaz de mobilizar amplas massas da classe trabalhadora e a imensa maioria da sua vanguarda e, até por conta disso, a única dotada de possibilidades reais de derrotar –eleitoralmente – a extrema-direita e o Centrão. Isso posto, uma coisa é trabalhar a contradição entre o petismo e o bolsonarismo e ajudar o primeiro a derrotar o segundo; outra é se sujeitar à tática da frente ampla, que desarma os trabalhadores e chafurda com a independência de classe.
A eleição, um espaço de disputa programática, é também um momento de educação política da classe trabalhadora e de sua vanguarda. Nessa perspectiva, admitir a necessidade de apoiar Lula da Silva e pôr em movimento o mais profundo das nossas forças para que ele derrote eleitoralmente a candidatura da extrema-direita não significa naturalizar a frente ampla, mesmo que matematicamente tenha agregado muito pouco a Lula no segundo turno da eleição de 2022. Os números do segundo turno da eleição passada ainda carecem de um exame detido antes de serem lançados ao ar como um argumento procedente e insuspeito em prol da defesa da frente ampla (uma questão por si já problemática).
Dialética x empirismo
Em suma, disso se desprendem duas questões. Primeira: é hora de opor a dialética ao empirismo. Caso contrário, permanecerá o cortejo de uma discussão na qual o esquerdismo infantil seguirá sem distinguir o governo Lula dos governos burgueses e liberais clássicos (o que dizer da extrema-direita?), e um setor lúcido da esquerda (à esquerda do PT), que não ignora a peculiaridade de um governo de colaboração de classe com apoio de massas, continuará se perdendo ao não distinguir a necessidade de apoiar Lula contra a extrema-direita, desde o primeiro turno, e a de, ao mesmo tempo, se diferenciar da tática lamentável da frente ampla. Do contrário, precisa ser consequente e afirmar a frente ampla como um dos tantos recursos políticos que os socialistas e os comunistas devem empregar em determinadas circunstâncias.
Segunda: a política é concreta. Não é possível derrotar a tática de colaboração de classes, intitulada frente ampla, devido às condições de força atuais, e não há outro meio de derrotar eleitoralmente o neofascismo, salvo pela forma do apoio a Lula? Que assim seja, desde que não caiba à esquerda socialista o papel de respaldar a aplicação dessa tática. Apesar dos limites inevitáveis do método dialético, conforme nos adverte o próprio marxismo, a humanidade não nos ofereceu até hoje um método mais consistente, e é por essa via que é possível apoiar Lula contra a ultradireita sem legitimar o discurso da obrigatoriedade da frente ampla. A falta de forças para derrotá-la não é argumento para pôr abaixo dela a digital socialista.
Por fim…
Concluo trazendo uma questão que julgo decisiva, que até então não havia entrado na história. Com o aumento real do salário-mínimo, malgrado os seus limites, o governo Lula atende a uma necessidade real da maioria da classe trabalhadora. Mas para o Estadão (aquele da difícil escolha de 2018), porta-voz da burguesia brasileira, trata-se de uma “aposta leviana” e de um “apelo populista”, o que evidencia que o (a) trabalhador(a) nada pode esperar dessa gente.
Isso posto, você já fez a sua escolha ou segue com a dúvida shakespeariana do Estadão?









