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Pensando com(o) Lélia Gonzalez: A luta pelo fim da escala 6×1
Publicado em: 19 de novembro de 2025
Este é o primeiro artigo da série “Novembro Negro pensando com(o) Lélia Gonzalez”, em que vou dialogar as principais ideias contidas no pensamento da intelectual com três temas atuais de luta e resistência da população negra. Essa articulação pretende demonstrar tanto a atualidade de uma pensadora à frente de seu tempo como a necessidade de estar conectado com aqueles e aquelas que vieram antes de nós para o enfrentamento dos desafios de nossa geração.
“o racismo – enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas – denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas.” (Gonzalez, 2020, p. 35).
A classe trabalhadora brasileira tem gênero e tem raça
Há de se duvidar de qualquer análise da classe trabalhadora brasileira que não tenha a raça e o gênero como elementos centrais na sua conformação. A ânsia pela reprodução de um trabalhador tipicamente europeu impede a compreensão do que significa sermos um dos últimos países a abolir a escravização. Isso se dá porque o escravismo no Brasil não é apenas uma fase de desenvolvimento que foi superada por outra, e sim o principal sistema de acumulação que tornou possível o desenvolvimento capitalista no nosso país.
Após a chamada abolição, esse grande contingente de população africana e afrodescendente foi jogado à sua própria sorte. Ao invés de ser integrado ao processo de desenvolvimento do mercado de trabalho livre, teve que assistir a políticas de Estado, como a de imigração de trabalhadores brancos, para ocupar o seu lugar no mercado de trabalho. Dessa forma, a inserção da classe trabalhadora negra se deu majoritariamente por meio de relações marcadas pela precariedade, como o subemprego, a informalidade e o trabalho doméstico.
Para Lélia Gonzalez, o processo de formação da figura do trabalhador livre típico do capitalismo no Brasil passou por “fatores deformadores”, nos quais as relações étnico-raciais e de gênero integram o capitalismo e o beneficiam. A intelectual nos dá um raio X do Brasil, e nele, principalmente as mulheres negras ocupam posições mais precárias, pois coube a elas, imediatamente quando se sucedeu a abolição,frente às dificuldades da inserção dos homens negros, arcar com a condição de viga mestra de sua comunidade, ocupando trabalhos precários e de reprodução social, como o trabalho doméstico.
Portanto, não à toa, são pessoas negras, em sua maioria, que precisam se submeter à escala 6×1. Afinal, o racismo contribui para que grande parte dos trabalhadores negros permanecesse afastada do mercado formal de trabalho e, quando não, em postos degradantes, atravessados por um desemprego estrutural. A formação do capitalismo brasileiro se deu pela existência de uma força de trabalho racialmente inserida em condições sociais, econômicas e políticas significativamente mais precárias, mesmo no interior da própria classe trabalhadora.
O fim da escala 6×1 é uma luta antirracista
A escala 6×1 é a escala de trabalho em que se tem o direito à folga em apenas um dia, predominante nos setores de comércio e serviços, e hoje ocupa de 2/3 dos empregos formais. Os relatos dos trabalhadores dessa jornada exaustiva, está repleto de assédios de diferentes natureza, pressões por resultados crescentes, insegurança financeira e a ausência de tempo para realizar coisas básicas da vida que explicam porque uma das queixas que mais atravessam esses trabalhadores é o adoecimento mental.
A luta pelo fim da escala 6×1 se intensifica no Brasil a partir de 2023, com o surgimento do VAT- Movimento Vida Além do Trabalho. Apesar dessa ser uma discussão histórica da esquerda por se tratar da redução da jornada de trabalho, esse tema volta a movimentar a sociedade brasileira a partir de um protagonismo de uma juventude negra, que expressa seu perfil na principal figura pública desse movimento, o atual vereador Rick Azevedo. Além disso é de relevante importância como essa luta se deu principalmente pelo uso das redes sociais.
O Brasil possui uma das mais altas jornadas anuais do mundo. Segundo levantamento da OCDE (2022), ocupamos a 4ª posição entre 46 países, com uma média anual de 1936 horas trabalhadas. A existência da escala 6×1, diferente dos argumentos da burguesia, representa o aspecto mais arcaico do mercado de trabalho brasileiro, e não seu avanço. O fim da escala 6×1 é o que pode nos aproximar das experiências bem-sucedidas de implementação de jornadas laborais abaixo das 40 horas semanais existentes em diversos países. Nesse sentido, é importante pontuar que a existência dessa escala representa a permanência de um regime de trabalho de assimilação escravocrata.
Uma pesquisa feita pelo Sindicato dos Comerciários do Rio de Janeiro (SECRJ) junto ao Observatório do Estado Social Brasileiro (OSB) mostra que 63% dos trabalhadores da escala 6×1 são negros; desses, 43,7% são mulheres e, entre elas, as mulheres negras representam 89,7% das operadoras de caixa, justamente o cargo com os menores salários. Por isso, Lélia Gonzalez afirma que o que se observa no Brasil é um racismo que “leva tanto algozes, como vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral, e a negra em particular, desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa.” (Gonzalez, 2020, p. 42).
A escala 6×1 reforça desigualdades históricas, que sempre reservaram às populações negras os trabalhos mais precarizados. Enfrentar essa escala desumana significa, portanto, combater uma lógica que mantém corpos negros submetidos à exaustão cotidiana e à limitação de seus direitos básicos, como o acesso ao lazer, à convivência familiar e ao cuidado de si. Por isso, se Lélia Gonzalez estivesse entre nós, não tenho dúvida de que denunciaria essa escala e a veria como uma luta antirracista que deve ser abraçada pelos movimentos negros. Devemos seguir pressionando o governo Lula e o Congresso pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/25, de autoria da deputada Erika Hilton, e ocupando as ruas pelo fim da escala 6×1.
Sobre Lélia Gonzalez (1935–1994): Intelectual, antropóloga, professora, militante do movimento negro e uma das principais referências do feminismo negro no Brasil e na América Latina. Mineira radicada no Rio de Janeiro, foi fundadora do MNU (Movimento Negro Unificado) e atuou na universidade, nos movimentos sociais e na política, sempre articulando raça, gênero e classe para denunciar as desigualdades estruturais do país.
Referência Bibliográfica:
GONZALEZ, Lélia. Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020 [1982]. p. 25-44.
O que esconde a escala 6×1 (livro eletrônico): roubo de tempo e cotidiano dos trabalhadores precarizados. Goiânia: Ed. dos autores, 2025. PDF. Disponível em: https://wordpress-direta.s3.sa-east-1.amazonaws.com/sites/860/wp-content/uploads/2025/03/28131840/Ebook-O-que-esconde-a-escala-6×1-roubo-de-tempo-e-cotidiano-dos-trabalhadores-precarizados.pdf
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