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“Chamei ajuda, não para matar meu filho”


Publicado em: 17 de novembro de 2025

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Coluna Saúde Pública Resiste

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

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Pedro Henrique Antunes da Costa

Herick Cristian da Silva Vargas, 29 anos, foi morto na segunda-feira, 15/09, por policiais militares de Porto Alegre, após ser baleado. A polícia foi chamada por sua família, pois Herick, diagnosticado com esquizofrenia, estava em situação de crise, atrelada ao consumo de cocaína.

“Tem que fritar esse louco”, disse um dos policiais, segundo captação das câmeras corporais. Herick foi frito, de fato; mais de uma vez com o taser. Eis a sofisticação do “tratamento” à loucura: ao invés de eletrochoques, choques de fato, por todo o corpo. Não sendo suficiente fritá-lo, ele acabou sendo alvejado múltiplas vezes.

De acordo com o delegado, houve “uso moderado da força”. Ora, fritar e matar alguém agora é moderado. Tão moderado quanto o bolsonarismo do governador Tarcísio. Estamos moderando a barbárie. A questão é que não há moderação nela. Nisso, estamos não só a normalizando, como intensificando-a.

As imagens mostram tanto a situação de crise de Herick quanto o absurdo despreparo dos policiais, que chegam no quarto e começam a conversar com Herick com a arma de taser apontada para ele enquanto ele está sentado. Existem diretrizes de acolhimento para situações de crise. Existem, inclusive, protocolos para estes casos. Nada disso foi seguido pelos policiais. Existem profissionais e equipes capacitados para ação, todos eles da saúde, mais especificamente, da saúde mental. O próprio fato de ser a polícia a atender estes casos já demonstra profundo descaso com as pessoas e suas necessidades.

Uma pessoa em crise age como uma pessoa em crise. Estando em crise, o seu normal, ao menos momentaneamente, é a crise. Por isso, que existe uma série de parâmetros, de equipamentos, um conjunto de profissionais preparados e um fluxo assistencial específico para estes casos. E nenhum deles, nenhum deles, deveria passar por uma instituição cujo normal é a violência, quando não a morte. “Chamei ajuda, não para matar meu filho”, denuncia e brada desesperada a mãe de Herick enquanto tenta acolher seu filho baleado no chão. O acolhimento que, no caso, inexistiu por parte da polícia.

Eis o estigma da loucura fazendo mais uma vítima; neste caso, fatal. Um estigma tão velho quanto forte, e que faz com que, mesmo algumas das abordagens de equipamentos da saúde, como é o caso das urgências em saúde mental atendidas pelo SAMU, não sejam por vezes atendidas ou, quando são, acabam frequentemente acompanhadas de policiais. Ora, que acolhimento que se espera quando uma arma é apontada a quem já se encontra em uma situação de crise?

Muito se fala do louco perigoso, da periculosidade do louco, mas os dados – e a realidade – demonstram que os ditos loucos é que são, em grande parte, o alvo da violência. Por exemplo, de acordo com levantamento do portal Sul21, só em 2024 e 2025, a Polícia Militar matou 40 pessoas em situação de crise em saúde mental no Brasil. Em 2024, foram 23 mortes em 57 casos, ou seja, uma porcentagem de letalidade de 40%. Até setembro de 2025, foram 17 mortes identificadas pelo portal. O caso de Herick adiciona mais um número a esta estatística.

Acabamos de ver e ainda estamos enojados com o cheiro e o gosto de sangue da chacina do Rio de Janeiro. A morte de Herick, bem como as inúmeras outras formas de violentar e de matar os ditos loucos, dizem respeito à outra ponta deste mesmo fio ou processo, ou gradiente de morte. Muitas delas, aliás, tidas como “tratamento”, como “acolhimento” (como é o caso dos manicômios em suas novas-velhas formas). O louco, o drogado, o traficante, o “de menor”, em suma, os rótulos são variados e criativos; a função social é que não tem nada de diferente. Todas elas tendem a um denominador comum de violência, de morte – simbólica e física.

Mesmo assim continuaremos a reproduzir que a violência é do louco. E assim continuaremos a violentá-los, num círculo vicioso, tautológico. Continuarão, inclusive, a matar Herick, imputando a ele a responsabilidade por sua morte, dizendo que foi merecido, ironizando sua situação, dizendo ter sido “legítima defesa”. Alguns chegarão a gozar, enquanto escrevem barbáries, digitando como quem baba, espuma ódio. Continuarão, portanto, a matar Herick e a matar um tanto mais a sua mãe e demais familiares. Eis o continuum da morte que não é da loucura, mas é contra o louco.

Nada disso é acaso; muito menos fracasso. No caso específico de Herick se trata de iniciativa eficaz, pois previne inclusive mais gastos com seu tratamento. Ora, busca-se acabar com a loucura matando os loucos, da mesma forma que se almeja acabar com a pobreza matando os pobres.

Tudo isso constitui um projeto, infelizmente; e infelizmente bem-sucedido e que avança com a intensificação do desmonte das políticas, do SUS, da Reforma Psiquiátrica; com o avanço do fundamentalismo, da intolerância, do neofascismo. No fim das contas, são muitas as mãos sujas do sangue de Herick e de tantos outros.

Justiça por Kerick!
Por uma sociedade sem manicômios!


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