Pular para o conteúdo
BRASIL

Lógica escravista: Decreto de ‘lockdown” do Pará considera trabalhadora doméstica como “essencial”

Governador Helder Barbalho, empregada doméstica é “essencial” para quem?

Ariane Raiol* e Gizelle Freitas*, de Belém, PA

A pandemia do coronavírus, assim classificada, pela Organização Mundial de Saúde, instaurou uma crise humanitária global. No Pará, os dados divulgados pela Secretaria de Saúde Pública (SESPA), no dia 05 de maio, mostram que há 4.756 casos confirmados e 375 óbitos. O estado, que teve crescimento no índice de mortes de covid-19 acima da média nacional e esteve entre os mais afetados entre os dias 24 e 30 de abril, vive o colapso na saúde e no sistema funerário.

Medidas mais restritivas para garantir o isolamento social começaram a ser tomadas por alguns governadores. Tal cenário culminou na adoção da medida de ‘lockdown’, anunciada pelo governador do Estado do Pará – Helder Barbalho (MDB) – durante uma live na noite desta terça (dia 5). Durante a transmissão, uma pergunta de uma participante chamou atenção: “a minha faxineira vai poder vim trabalhar?”. Diante de um Estado em situação caótica, as prioridades e preocupações de setores da classe média e da elite paraense evidenciam a desvalorização da vida da classe trabalhadora.

Quando o decreto extra foi publicado no Diário Oficial, notou-se que na lista de atividades essenciais deste documento consta, de maneira propositalmente quase imperceptível, na posição 58, serviços domésticos, ou seja, as empregadas domésticas não estão obrigatoriamente dispensadas, terão que ir trabalhar.

As empregadas domésticas não estão obrigatoriamente dispensadas, terão que ir trabalhar.

E, tudo começou assim, o primeiro óbito por covid-19 noticiado no dia 19 de março, estampava que a primeira vítima no país era uma doméstica (63 anos de idade), que trabalhava no Alto Leblon, bairro da zona sul do Rio que tem o metro quadrado mais valorizado do país. Pegou coronavírus da patroa, que voltava de viagem recentemente da Itália e não teve cuidado de preservar a trabalhadora.

O decreto também é questionável por não restringir essencial somente às atividades laborais de: saúde; alimentação; segurança e abastecimento. São listadas 59 atividades com sentido mais amplo que o considerado estritamente necessário para um período de pandemia. Nesse sentido, Helder também atende aos interesses dos seus parceiros do setor empresarial/industrial e do comércio.

Lógica com traços escravistas

O Governador Helder Barbalho corrobora com tal lógica ao permitir que esse trabalho seja considerado essencial, quando deveria ser garantido a essas trabalhadoras direito ao isolamento social remunerado, exatamente como reivindicou o Manifesto do coletivo Pela Vida das Nossas Mães lançado nas redes sociais pelas/os filhas/os das empregadas domésticas. E não é uma reivindicação absurda, uma vez que se entende que se essa empregada foi contratada já havia um planejamento financeiro para arcar com o salário desta. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de novembro de 2019, 6,356 milhões de brasileiras/os trabalham como empregadas/os domésticas/os, reflexo da construção de relações sociais de caráter servil. As pesquisas oficiais também demonstram que essas empregadas domésticas são, em sua maioria, mulheres negras, pobres e com poucos anos de estudo formal. Assim, a medida de enfrentamento à pandemia adotada pelo governo do estadual do Pará, revela a necropolítica do Estado, evidenciando a desigualdade social estrutural proveniente de um sistema capitalista de barbárie, que, caracterizado por suas facetas genocidas e anti-pobre, põe valor às vidas conforme a classe, o gênero, e a raça.

Sem direito a quarentena e sem a consciência dos patrões, as empregadas domésticas lidam com um cenário devastador. Na balança, de um lado, a necessidade de garantir a sobrevivência, do outro, o medo da contaminação.
Portanto, denunciamos a medida absurda do Governador que atende às pressões de um segmento da sociedade paraense, a dispensa remunerada dessas trabalhadoras é o mínimo diante anos e anos que elas passam cuidando dos afazeres domésticos e das famílias de seus patrões, em alguns casos, sem os direitos trabalhistas firmados. Com divisão consciente do trabalho doméstico entre todos os moradores da casa é possível “sobreviver” sem a “terceirização” desse trabalho.

Governador Helder Barbalho, é inadmissível que seu decreto siga colocando em risco a saúde e vida das empregadas domésticas, por puro capricho de quem acredita que é status ter uma “funcionária do lar”. Um Decreto que coloca serviços domésticos como essenciais evidencia que o valor da vida da população pobre, é determinado pelo Estado e mediado por condições de exclusão, miserabilidade e privação de direitos.

 

*Ativista da Resistência Feminista * Assistente Social e Mestra em Serviço Social.

 

LEIA MAIS

Torcidas antifas do Pará cobram ampliação do isolamento social