brasil
O golpe, a resistência e os caminhos da educação pública
Série “Universidade e o povo” Parte 3
Publicado em: 8 de novembro de 2025
Tânia Rêgo/Agência Brasil
O avanço da democratização do acesso à universidade pública no Brasil encontrou limites e obstáculos importantes a partir de 2016. O golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff não pode ser entendido como um evento isolado; ele fez parte de um contexto político complexo, marcado pela mobilização de setores da extrema direita, insatisfação de parcelas da classe média e críticas ao próprio governo do PT. Esse período abriu caminho para políticas de orientação neoliberal e autoritária que impactaram diretamente o ensino superior, promovendo cortes orçamentários, restrições a programas de permanência estudantil e ataques às políticas de inclusão que haviam transformado o perfil dos estudantes universitários.
Mesmo diante desses ataques, a resistência se manteve firme dentro das universidades. Institutos federais, universidades estaduais e federais, professores e estudantes se organizaram para garantir que a educação pública não fosse destruída. Movimentos estudantis, sindicatos, coletivos acadêmicos e partidos de esquerda desempenharam papel decisivo na defesa de políticas de cotas, bolsas, moradia estudantil e permanência estudantil. Essa resistência evidenciou que a universidade não é apenas um espaço de ensino, mas também um território de luta social, onde a defesa da democracia e da justiça educacional se articula com a proteção do conhecimento e da ciência.
No entanto, o povo de forma mais ampla não se mobilizou da mesma maneira. Historicamente, a universidade permaneceu distante da vida cotidiana da maioria da população, em contraste com a escola pública, que está inserida nas comunidades e reconhecida como parte do cotidiano da classe trabalhadora. Essa distância reforçou a percepção de que os ataques não afetavam diretamente a vida da população. Essa experiência histórica mostra que é fundamental aproximar a universidade da sociedade, tornando-a um espaço que o povo reconhece como seu e se sente motivado a defender.
>> Leia também: O acesso avançou, mas os muros seguem de pé
O período de restrições também evidenciou o comprometimento de diversos professores com a função social da universidade. Em várias instituições, como a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Estadual de Londrina (UEL), a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), foram criadas disciplinas, cursos e seminários dedicados a analisar o golpe de 2016 e seus impactos na democracia, na educação e nas políticas públicas. Essas iniciativas mostram que, mesmo em um período de ataque e retrocesso, professores buscaram refletir criticamente sobre o contexto político, aproximando a universidade da realidade social e reforçando seu papel como espaço de debate, resistência e formação.
O golpe de 2016 e os anos seguintes evidenciaram também a lógica neoliberal que orientou as políticas educacionais e a atuação da extrema direita, que continuou articulando narrativas contra a universidade pública, a ciência e o sistema de justiça. Cortes orçamentários, mudanças no ensino médio e no ENEM, e ataques às políticas de inclusão buscaram enfraquecer o acesso da população trabalhadora a cursos estratégicos e prestigiosos. O Novo ENEM, implementado no governo Temer, exemplifica essa estratégia: enfraqueceu o ensino médio público, reforçou a atuação de grandes conglomerados privados de educação e aprofundou desigualdades históricas.
Mesmo com todas essas adversidades, a luta não foi em vão. Os cursinhos comunitários continuaram a desempenhar papel estratégico na preparação de jovens de escolas públicas para o ENEM e vestibulares. Eles funcionam como ponte entre a escola e a universidade, oferecendo orientação acadêmica, apoio emocional e incentivo à organização política e social. O CPOP, programa do governo Lula, vem reforçar e reconhecer essas iniciativas, subentendendo o papel das políticas públicas na democratização do acesso. Esses espaços de aprendizagem coletiva tornam evidente que a conquista da universidade é uma luta que ultrapassa o individual, envolvendo comunidades inteiras.
Outro ponto crítico revelado pelo período de retrocessos é a persistência da elitização em cursos estratégicos, como Medicina e Direito. Apesar do aumento do acesso de jovens da rede pública a diversas universidades, a ocupação desses cursos permanece restrita a uma minoria. A questão é estruturante: como avançar para garantir que estudantes da escola pública e de territórios periféricos tenham chances reais de ingressar em cursos que formam profissionais essenciais para a saúde, a justiça e a soberania nacional? A resposta passa pela articulação entre governo, movimentos sociais, partidos de esquerda e movimento estudantil, construindo políticas que não se limitem a abrir portas, mas que também direcionem oportunidades estratégicas.
A eleição de 2022 representou uma nova oportunidade para retomar políticas de inclusão e fortalecer a educação pública. O governo Lula retomou investimentos em programas de permanência estudantil, fortalecimento de bolsas e iniciativas de acesso, mas os desafios permanecem. A extrema direita, embora derrotada nas urnas, continua atuante na Câmara, no Congresso e na mídia, construindo narrativas que questionam o papel da universidade, ameaçando os avanços obtidos e tentando enfraquecer programas de inclusão. É nesse contexto que a resistência precisa ser estratégica, coletiva e permanente, envolvendo governo, professores, movimentos sociais e estudantes.
A universidade brasileira é um espaço de conflito social, político e econômico. A defesa da educação pública exige reconhecer sua importância estratégica para o país, não apenas como lugar de formação acadêmica, mas como território de construção de cidadania, justiça social e soberania nacional. Cada vitória em políticas de acesso, cada aprovação de estudante da rede pública em cursos prestigiosos e cada conquista de permanência estudantil representam passos concretos na transformação social.
O período pós-golpe mostra que o acesso à universidade é necessário, mas não suficiente. É preciso consolidar políticas de permanência, fortalecer cursinhos comunitários, apoiar professores e criar mecanismos que permitam aos estudantes da rede pública ocupar cursos estratégicos, reduzindo desigualdades históricas. A resistência e a mobilização social são indispensáveis para garantir que as políticas públicas não sejam apenas simbólicas, mas efetivas na promoção de equidade.
A história recente do ensino superior brasileiro revela que avanços foram conquistados, mas que a luta continua. A resistência frente a governos neoliberais e autoritários, o fortalecimento de cursinhos comunitários e políticas como o CPOP, e a mobilização de movimentos sociais, professores e estudantes mostram que é possível manter viva a perspectiva de uma universidade para o povo. Consolidar essas conquistas exige ousadia, articulação política e compromisso coletivo.
Top 5 da semana
mulheres
Em meio ao Novembro Negro, o Congresso aprova na surdina a “PL da Pedofilia”
colunistas
Algo muda no direito ao aborto legal no Brasil a partir do PDL 3/2025?
brasil
Polícia para quem precisa
brasil
O ENEM e o sonho da universidade pública
brasil










O acesso avançou, mas os muros seguem de pé