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Lô Borges, o trem de doido e a crítica aos manicômios


Publicado em: 5 de novembro de 2025

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Coluna Saúde Pública Resiste

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

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Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde.<br /> <br /> Ana Beatriz Valença: Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;<br /> <br /> Jorge Henrique: Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;<br /> <br /> Karine Afonseca: Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;<br /> <br /> Lígia Maria: Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;<br /> <br /> Marcos Filipe: Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;<br /> <br /> Rachel Euflauzino: Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;<br /> <br /> Paulo Ribeiro: Técnico em Saúde Pública, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e doutorando em Serviço Social na UFRJ;<br /> <br /> Pedro Costa: Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

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Por Pedro Costa

No longo passado-presente dos manicômios e da violência manicomial em nosso país, Minas Gerais tem ocupado um papel de destaque. Tanto que, durante os anos 1960 e 1970, em que se expande e se consolida a chamada “indústria da loucura”, é justamente em Minas Gerais que teremos uma das regiões com a maior concentração de manicômios do país. Trata-se do chamado “corredor da loucura”, que ia da Belo Horizonte a Juiz de Fora, passando por Barbacena.
Para atravessar este corredor, aproveitou-se da malha ferroviária existente na própria região. Os trens que transportavam fundamentalmente ouro e as demais riquezas extraídas do solo mineiro, também eram utilizados como meios de transporte dos despejos deste mesmo território, para que fossem asilados em depósitos de gente, por meio de viagens que geralmente só possuíam o bilhete de ida.

Numa ironia do destino, o estado dos trens metafóricos, em que qualquer substantivo-coisa vira “trem”, é o mesmo estado dos trens literais, responsáveis por transportar coisas humanizadas (e valorosas) e gentes substantivizadas na forma de coisas (e sem valor). Eis os trens de doidos. Os trens, aliás, como continuações de meios de transporte que remontam aos navios negreiros, e se renovam em camburões e afins.

Em outra ironia do destino, coube a um jovem, em uma esquina deste cinturão, compor uma das mais importantes denúncias a esta dinâmica coisificadora e mortificadora; uma das mais belas críticas antimanicomiais de nosso país. A música é “Trem de Doido”, presente no incontornável álbum Clube da Esquina; e o compositor a quem nos referimos é Salomão, ou Lô, Borges, junto de seu irmão Márcio Borges.

Em Holocausto Brasileiro, livro também incontornável para se entender a história do manicômio em nosso país, Daniela Arbex (2013) narra a importância dos trens de doidos, no abastecimento da indústria da loucura, ao revistar e dissecar a história de um dos principais manicômios do país, o Hospital Colônia, que ficava em Barbacena. Segundo a autora:

“A parada na estação Bias Fortes era a última da longa viagem de trem que cortava o interior do país. Quando a locomotiva desacelerava, já nos fundos do Hospital Colônia, os passageiros se agitavam. Acuados e famintos, esperavam a ordem dos guardas para descer, seguindo em fila indiana na direção do desconhecido. Muitos nem sequer sabiam em que cidade tinham desembarcado ou mesmo o motivo pelo qual foram despachados para aquele lugar”.
Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão “trem de doido” surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época, marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno.

“O simbolismo da loucura nos contos de Guimarães Rosa indica que, assim como Marlene, um dos mais famosos escritores do país conhecia a realidade do Colônia. O romancista e contista foi médico voluntário da Força Pública durante a Revolução Constitucionalista de 1932, ingressando, um ano depois, como oficial médico, no 9º Batalhão de Infantaria, em Barbacena. No conto ‘Sorôco, sua mãe, sua filha’, do livro Primeiras estórias, lançado em 1962, o autor resgata a situação dos trens que chegavam apinhados de gente à capital brasileira da loucura, em busca de tratamento psiquiátrico” (pp. 27/28).

Hiram Firmino, em Nos porões da loucura (1982), livro em que compila uma série de reportagens para o Estado de Minas também sobre o Hospital Colônia, nos permite entender um pouco melhor a gênese deste processo.
“Durante o período do sanatório, por comodidade de transporte e para evitar o contágio da tuberculose, foi criada uma estação ferroviária na encosta do morro. Lá eram desembarcados todos os doentes. A esse respeito corre a versão de que, por não haver vagas suficientes no sanatório ou mesmo por descaso, muitas vezes os doentes eram deixados na plataforma, no momento da partida do trem. Ali ficavam abandonados, até que um enfermeiro os recolhesse aos pavilhões. A Estação do Sanatório ainda hoje está em funcionamento e tem o nome de ‘Bias Fortes’” (p. 82).
Como se vê, a passagem e transformação de sanatório para hospital psiquiátrico, ou melhor, Hospital-Colônia, denotando não só o caráter manicomial, mas exploratório, já que se tratava de um regime moral e de trabalho forçado enquanto colônias agrícolas, também implicou a sofisticação do processo de transporte e abastecimento de tais instituições. O que não se alterou foi o meio de transporte: os trens, agora de doidos.

Voltando ao Trem de Doido dos irmãos Borges, temos que “Depois que esse trem começa andar, andar / Deixando pelo chão os ratos mortos na praça / Do mercado”. Como mencionado, nos trens de doidos, havia somente passagem de ida. Alguns dos doidos (ou dos ratos) ficavam inclusive pelo meio do caminho, morrendo mesmo antes de serem matados nos manicômios, e sendo largados nas praças desta grande indústria (ou mercado) da loucura.

No entanto, como toda denúncia traz consigo dialeticamente um anúncio, na forma de sua negação imanente, os mesmos Borges afirmam: “Muito além do céu, nada a temer, nada a combinar / Na hora de achar o meu lugar no trem e não sentir pavor”. No estado dos trens, mas também dos clubes, dos cinturões e das esquinas, das altas concentrações de manicômio, mas também da luta antimanicomial, Lô, Márcio, Milton e outros amigos aprenderam e apreenderam que nada será como antes, amanhã, e que, ao fim e ao cabo, é tudo que conseguimos ser… ou nada.
Das inúmeras formas que Lô Borges permanece vivo, uma delas é pela necessidade de superação dos trens de doido que ele denunciou.

Viva Lô Borges!
Viva Clube da Esquina!
Por uma sociedade sem manicômios!


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