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O sucesso do fracasso da política de segurança pública (e de “guerra às drogas”)


Publicado em: 3 de novembro de 2025

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Pedro Costa, de Brasília-DF

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Reprodução/Redes Sociais

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“Tirando a vida dos policiais, o resto, a operação foi um sucesso”, disse Cláudio Castro (PL), governador do estado do Rio de Janeiro, após a chacina que vitimou mais de 120 pessoas nos complexos da Penha e do Alemão. O choque com tal afirmação, inevitável para quem ainda resiste em se desumanizar por completo, reside, antes de tudo, na sinceridade dela e na frieza de quem a professa.

Sim, de fato, a suposta operação foi um “sucesso”. Não me entendam mal; eu tenho ojeriza à fala do Cláudio Castro, a tudo que ela expressa e significa, bem como à própria figura e ao seu projeto completamente desumano de sociedade. Contudo, infelizmente, sua fala está correta e ele tem razão. Ao contrário do que pode se supor, toda a política de segurança pública calcada na chamada “guerra às drogas”, se volta justamente àquilo que vimos nos dias 28 e 29, com as dezenas de corpos resgatados por moradores das comunidades, majoritariamente negros, e todos eles pobres e periféricos.

Se analisamos as coisas pelo que elas são, e não como elas se apresentam ou são apresentadas para nós, concluiremos que não existe “guerra às drogas”, sobretudo a mercadorias tão valiosas, e que se tornam ainda mais valiosas junto de seu ciclo de produção e comercialização, ao serem tonadas ilícitas. O que existe é uma instrumentalização das drogas (e de determinadas drogas) para criminalizar, prender e matar gente negra, pobre e periférica, perpetuando uma retórica destes indivíduos como inimigos internos. O principal mecanismo de perpetuação do genocídio da população negra neste país se chama “guerra às drogas”.

Li e ouvi em vários lugares e de muitas pessoas que a “operação” do dia 28 foi um fracasso, pois resultou em nada (ou quase nada), sendo pouco eficaz ou efetiva. Pelo contrário, não há fracasso algum nela, mas êxito e efetividade. O que acabamos de ver, estarrecidos, com nojo e indignação, foi uma “operação” extremamente bem-sucedida. Em poucas horas, ela matou mais de 120 pessoas negras, pobres e periféricas. Esse foi o objetivo principal da dita “operação”, tal como de toda a política de segurança pública em nosso país, a partir da perspectiva de “guerra às drogas”. O que pode ser entendido num primeiro momento como fracasso, é justamente o seu sucesso, se compreendemos ao que ela se volta, já que seu objetivo não é acabar com as drogas ou o mercado das drogas, muito menos prender traficantes ou quem lucra com o ciclo de (re)produção das drogas.

Não se trata também de medir a eficácia ou efetividade pelo número de fuzis apreendidos, de mandados de prisão concretizados… Nada disso realmente importa para a política de segurança pública. Seu foco não é esse. Se o fosse, os fuzis e demais armamentos não estariam sendo, em sua maioria, reapreendidos, já que boa parte deles é oriundo do próprio braço repressor do Estado. Além disso, temos outros exemplos, com maior quantitativo de armamentos presos e que não derrubaram nenhum corpo, nem derramaram uma gota de sangue. Não à toa, eles ocorreram em locais onde, apesar de o sangue ser igualmente vermelho, a epiderme que o encampa tem colorações distintas das dos complexos do Alemão e da Penha.

Se há algo a ser quantificado como indicativo de efetividade e eficácia, é justamente o número de corpos (negros, pobres e periféricos). Se a chacina do dia 28 é que teve o maior número de mortos na história do Rio de Janeiro, podemos afirmar que se trata do maior sucesso até então desta política de morte.

Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a ciência seria desnecessária, nos ensinou Marx. A questão é que, às vezes, aparência e essência coincidem, o que as mistifica são as leituras e interpretações que fazemos delas. As dezenas de corpos nas ruas – novamente, quase todos eles negros e todos eles periféricos – gritam. Tais corpos são essência e aparência da política de segurança pública e da tal “guerra às drogas”. Ambas se voltam para produzir o cenário grotesco que vimos e estamos vendo desde terça-feira. É como se aqueles 50 ou 60 corpos enfileirados gritassem em nossas caras e nossos ouvidos: nós somos da política de segurança pública; eis a guerra às drogas. E mesmo assim não os escutamos, não os vemos – se não todos, muitos de nós.

Tenho utilizado muito uma máxima reproduzida por Frantz Fanon, a de que se você quiser se aprofundar na estrutura de determinado país, é preciso visitar seus manicômios. Isso vale para as prisões, para as instituições socioeducativas e para as ruas ensanguentadas das favelas brasileiras. Que corpos estão ali caídos com tons de preto e de vermelho, e quais corpos não estão? Antes disso, por que as chacinas se concentram em determinadas localidades e acabam quase sempre encontrando determinados corpos, os fazendo ruir? Em hipótese alguma estamos defendendo que o que fora feito na última terça-feira deva ser reproduzido em outras localidades ou ser expandido a alguma pessoa. Só estamos tentando repetir uma obviedade que, infelizmente, precisa ser dita e repetida: de que nada disso é acaso ou falha; nem mesmo é efeito colateral. Trata-se de um projeto; um projeto gestado há mais de 500 anos, aliás, que se modifica, se sofistica, se altera e renova, mas sem mudar algo de substantivo do seu conteúdo.

Junto ao objetivo principal de morte em larga escala de determinados indivíduos, temos outros intuitos. Por exemplo, a chacina de ontem perpetua no imaginário social que tais pessoas mortas é que são o problema. Temos aqui uma lógica circular: se foram matadas, é porque mereceram; e se mereceram, que sejam matadas. Ao serem assassinadas, tais pessoas têm suas mortes justificadas. O ato de matá-las se autojustifica pelo fato de que eram pessoas matáveis. Não por acaso, elas continuam a ser matadas mesmo depois do óbito, ao terem suas mortes justificadas – e glorificadas.
Não suficiente, outra função ideológica de iniciativas como a do dia 28 é perpetuar o medo, tornando-o permanente e mobilizando-o como justificativa para mais barbárie – e medo. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, cantou Chico Buarque em Caravanas.

Nem entrarei aqui na relativização das mortes dos quatro policiais contida na frase do governador do Rio. Tirando quatro vidas… Nem mesmo as vidas que supostamente importam para o governador, justamente por serem as que matam os que merecem ser matados, escapam de serem matadas pela relativação e desumanização barbáricas que saem da boca de Cláudio Castro.

Por fim, nosso objetivo deve ser transformar o sucesso da política de segurança pública em fracasso. Para isso, devemos reconhecer que não há fracasso nela, sobretudo nas chacinas como a que estamos neste exato momento enojados, chocados, com uma mistura de mal-estar e nó na garganta. O seu êxito e sucesso é o nosso fracasso enquanto sociedade, no sentido e perspectiva humana. Dialeticamente, é também o sucesso de uma sociedade que se (re)produz e se mantém historicamente pela violência, pela produção de morte em larga escala e que se assenta sobre os mesmos corpos alvejados, decapitados e tombados no dia 28.

Pedro Costa é professor na Universidade de Brasília e militante da ResistênciaPSOL/DF.

 

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