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NO KINGS: quando os EUA recusam um rei, mas exportam sua coroa
Publicado em: 20 de outubro de 2025
Sob os gritos de NO KINGS, os Estados Unidos assistiram à maior mobilização popular desde a ascensão de Donald Trump. Em centenas de cidades, milhões marcharam ao mesmo tempo para impedir que a Casa Branca seja ocupada por alguém que se comporta mais como soberano do que presidente. Só em Nova York, mais de cem mil pessoas desfilaram com a palavra de ordem “Not Then. Not Now. Not Ever.” A convocatória, articulada por redes como MoveOn e Indivisible, expressou uma percepção que rompe fronteiras partidárias: Trump já não é visto como conservador barulhento, mas como alguém movido por ambição pessoal de poder capaz de transformar uma república de instituições em uma tirania plebiscitária com verniz eleitoral.
Chicago, cidade onde trabalhadores foram enforcados em 1886 por exigir jornada de oito horas, episódio que daria origem ao Primeiro de Maio no mundo inteiro, voltou ao centro da resistência. Trump a ameaçou publicamente neste ano, dizendo que “tomaria o controle” da cidade, enviando tropas federais para “restaurar a ordem”. A frase soou menos como promessa de governo e mais como declaração colonial. Mas Chicago tem memória longa. Foi ali que Fred Hampton, líder dos Panteras Negras, foi executado pelo Estado enquanto dormia. Foi ali que Angela Davis discursou ao lado de trabalhadores e movimentos negros. Não surpreende que, na onda do NO KINGS, sindicatos, comunidades negras e imigrantes marcharam juntos. Se Nova York rejeitava um rei em Washington, Chicago lembrava que toda tirania começa testando seus limites primeiro sobre os trabalhadores e os pobres.
Mas enquanto parte do povo americano rejeitava a monarquia interna, o próprio alvo dos protestos decidia projetar sua autoridade para fora. Sob o pretexto de combater o narcotráfico, Trump autorizou a mobilização de embarcações militares rumo ao Caribe. O discurso é moral, mas a geografia desmente a retórica. Segundo o relatório da ONU sobre drogas, mais de 70% da cocaína que chega aos Estados Unidos viaja pela rota do Pacífico, atravessando Colômbia, Equador e México até alcançar os portos da Califórnia e de Washington. O Caribe é marginal na rota real. Quando a rota maior é ignorada e a frota é enviada para outra, não se combate crime — reordena-se poder. A “guerra às drogas” funciona há décadas menos como política de saúde e mais como tecnologia de controle territorial, um instrumento de imperialismo logístico, para usar a linguagem de David Harvey: o controle dos corredores estratégicos por onde circulam mercadorias, energia, dados e futuros.
O primeiro passo é transformar soberanias em suspeitos. Gustavo Petro virou “líder do tráfico”. Nicolás Maduro passou a ser tratado como chefão de “organização criminosa transnacional”. O segundo passo é aceitar a morte de civis como efeito inevitável. O pescador colombiano Alejandro Carranza foi morto a tiros por militares norte-americanos enquanto trabalhava em seu barco. Nenhuma droga. Nenhuma perseguição. Apenas mais um pobre abatido para compor estatísticas de virtude.
A América Latina conhece essa gramática. O Plano Colômbia, firmado no ano 2000, foi vendido como parceria antidrogas e resultou na instalação de sete bases militares norte-americanas no território andino. A Escola das Américas, fundada no Panamá e transferida para a Geórgia, treinou oficiais envolvidos nos golpes de 1964 no Brasil, 1973 no Chile e 1976 na Argentina. A Operação Condor coordenou espionagem, sequestros e execuções entre as ditaduras do Cone Sul com apoio logístico dos Estados Unidos. Décadas depois, Edward Snowden revelou que a NSA grampeou a Petrobras e a Presidência brasileira em nome da “segurança hemisférica”. A linguagem se atualiza — “proteger”, “modernizar”, “cooperar” — mas a prática permanece: acumular poder por despossessão, retirando autonomia sob o pretexto de ordem.
Desta vez, há um elemento novo. A ofensiva ocorre no momento em que o projeto neoliberal entra em crise e precisa ser reencenado com outra roupagem. A extrema direita global se apresenta como única alternativa funcional para manter o capitalismo ocidental em funcionamento, não mais pela promessa de bem-estar, mas pela promessa de força. Trump é apenas o polo mais visível de uma rede que inclui Javier Milei na Argentina, Giorgia Meloni na Itália, Marine Le Pen na França e Viktor Orbán na Hungria. Steve Bannon, estrategista dessa frente, se refere abertamente ao seu objetivo: construir uma “internacional nacionalista”, paradoxal e real, que governe o mundo com mão de ferro sob a retórica da proteção às nações.
O conflito não é apenas político. É econômico e espacial. A China consolidou presença na América Latina por vias comerciais, tecnológicas e financeiras. O BRICS tornou-se plataforma de negociação para moedas, energia e infraestrutura. A disputa não é mais pelo controle de um território, mas pelo controle dos fluxos, de lítio, petróleo, rotas marítimas, cabos de dados, 5G, cadeias de suprimento. A soberania, hoje, não depende apenas de bandeiras, mas de redes. E quem controla as redes define quem pode ser soberano.
Nesse contexto, o NO KINGS diz muito sobre os Estados Unidos, mas diz ainda mais sobre nós. Parte da sociedade americana pressente que o perigo está dentro. Parte da elite americana sabe que o perigo está fora. Para resolver a primeira crise, Trump precisa convencer os eleitores de que ele é o único capaz de impor ordem. Para resolver a segunda, precisa demonstrar que ainda é capaz de impor ordem fora. E é aí que a América Latina volta a ser palco e laboratório.
A história mostra que nenhum discurso de proteção é neutro quando vem armado. Ontem se chamava Doutrina Monroe. Depois virou Plano Colômbia. Hoje atende por “segurança regional”. Amanhã talvez se chame “defesa das democracias”. A frase é sempre nobre. A prática, sempre a mesma.
Se até um pescador pode ser abatido em nome da “segurança americana”, que soberania nos resta de fato chamar de nossa?
🇺🇸 NO KINGS | Acontecendo agora uma onda nacional de protestos do movimento #NoKings (sem reis), nos EUA, contra o governo Trump e suas medidas autoritárias. Imagens dos protestos que ocorrem em Washington, DC pic.twitter.com/p77gPjAmfr
— Esquerda Online (@esquerdaonline) October 18, 2025
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