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A ONU em seus 80 anos: ignorada e irrelevante
Publicado em: 2 de outubro de 2025
Reprodução redes sociais
A 80ª edição da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU 80) se iniciou em 23 de setembro em Nova York. O tema deste ano é: “Melhores juntos: 80 anos e mais pela paz, desenvolvimento e direitos humanos”, enfatizando a urgência de cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e revigorar a “cooperação global”.
Quando as Nações Unidas surgiram em São Francisco, em 26 de junho de 1945, o objetivo principal dos 50 participantes que assinaram a Carta das ONU foi declarado em suas primeiras palavras: “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. Uma das primeiras realizações da ONU foi o acordo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos [1] em 1948, que estabeleceu os padrões globais para os direitos humanos. “A ONU não foi criada para conduzir a humanidade ao paraíso”, disse Dag Hammarskjold, Secretário-Geral da ONU, “mas para salvar a humanidade do inferno”. 80 anos mais tarde, o atual Secretário-Geral António Guterres não tem tais aspirações ambiciosas. “Guterres diz coisas muito ousadas. Mas agora ele está sendo descartado como lateral e não como um jogador”, disse Mark Malloch-Brown, ex-diretor do Programa de Desenvolvimento da ONU, que também foi Secretário-Geral Adjunto de Kofi Annan em 2006. “A sala de imprensa na época de Kofi estava repleta de jornalistas. Hoje é mais um mausoléu do que uma sala de imprensa”.
O declínio da ONU reflete a decadência de todas as instituições internacionais constituídas pelo acordo entre as grandes potências que venceram a Segunda Guerra Mundial, quando se reuniram em Bretton Woods, EUA. O Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, as ONU e, mais tarde, a Organização Mundial do Comércio (OMC) foram agências internacionais supostamente criadas para apoiar as nações em crise financeira, contribuir para acabar com a pobreza mundial, alcançar um comércio justo e evitar as guerras.
Mas isso sempre foi uma ilusão. Estas agências foram constituídas para atuar sob a liderança hegemônica dos EUA, com o apoio de seus parceiros nas principais economias capitalistas. Eram instituições representantes da “Pax Americana” do pós-guerra. A ONU era diferente, pois nem sempre aprovava as políticas e os interesses do imperialismo estadunidense. O Conselho de Segurança era o órgão executivo da ONU, composto pelas grandespotências do pós-guerra. E cada membro tinha um veto para bloquear qualquer ação dos EUA pela “manutenção da paz”. Isso permitiu que a União Soviética e, depois, a China maoísta pudessem barrar a expansão e o belicismo dos EUA, ainda que não constantemente – a ONU aprovou a guerra dos EUA contra a Coreia do Norte na década de 1950, uma guerra conduzida pelos EUA sob a bandeira da ONU. E muitas outras forças de missão de paz da ONU foram utilizadas para garantir o status quo a favor dos interesses ocidentais durante os últimos 80 anos. Porém, cada vez mais, por causa do veto da União Soviética e China, os EUA passaram a promover seus objetivos de guerra globalmente por fora da ONU: o Vietnã na Ásia; a intervenção da OTAN nos Bálcãs; e a ação direta dos EUA em Cuba, Granada, Líbia e em outros lugares. Os objetivos de “paz” da ONU foram cada vez mais ignorados à medida que os EUA expandiram seu poderio militar (com mais de 700 bases atualmente em todo o mundo).
Um ponto de virada foi a queda da União Soviética e de seus Estados-satélites no início da década de 1990. Parece que os EUA tinham carta branca para agir conforme seus interesses, usando do encobrimento da ONU. Mas com as duas invasões do Iraque da década de 1990 e, então, em 2003, os líderes estadunidenses entenderam que não precisavam usar a ONU para apoiar suas ambições. Em 2003, após uma série de mentiras grotescas serem apresentadas na assembleia da ONU sobre as supostas “armas de destruição de massa” de Saddam para justificar a invasão e a mudança de regime no Iraque, os EUA decidiram por ignorar a aprovação da ONU e confiar na “coalizão da vontade” – ou seja, uma aliança dos poderes imperialistas, que sempre contribuíram para apoiar as políticas estadunidenses. A nova estratégia política do imperialismo dos EUA era o Consenso de Washington, que apregoava que as “democracias” do Ocidente deveriam se aliar para enfraquecer e derrotar as potências “autocráticas” da Rússia, Irã e Ásia. As regras internacionais para a ordem mundial seriam impostas pelo núcleo imperialista, sem qualquer intervenção ou consulta à ONU.
No entanto, as tendências na economia mundial minaram o Consenso de Washington. Longe de governar economicamente, o capitalismo estadunidense estava em um declínio relativo [2]. Este declínio começou em meados da década de 1970, quando as economias capitalistas ganharam participação na indústria, seguidas pelo Japão. E, na década de 1990, a China surgiu de seu passado retrógrado e se uniu à Organização Mundial do Trabalho. Os EUA foram deixados cada vez mais apenas com a superioridade nos serviços, nas finanças e na capacidade militar – e, ainda, no controle do FMI, do Banco Mundial e de outras agências de “ajuda”. O “exorbitante privilégio” dos EUA de possuírem a moeda de reserva e transações do mundo, o dólar, foi gradualmente minando.

Este relativo declínio foi aceito de má vontade por sucessivos governos estadunidenses, enquanto a economia mundial parecia se expandir e a lucratividade das empresas estadunidenses aumentava ao longo da década de 1990 e no início da década de 2000. Mas a crise financeira global mundial e a subsequente Grande Recessão, que atingiu a todas as economias capitalistas do mundo, mudaram tudo isso. A globalização – ou seja, o crescimento exponencial do comércio mundial e dos fluxos de capital – chegou ao fim. O capitalismo estadunidense não poderia depender mais da transferência de valor por meio do comércio e dos retornos de capital para subsidiar seus déficits e dívidas – como vinha ocorrendo há décadas, desde a década de 1980. Este era um novo mundo, com novas potências econômicas resistindo às tentativas dos EUA de se apoderarem da maior parte.

Os EUA tornaram-se relutantes em usar as instituições de Bretton Woods para promover seus interesses – substituindo o internacionalismo pelo nacionalismo – culminando em Donald Trump e no MAGA. Assim, a ONU não estava apenas sendo contornada, mas, mais ainda, minada e atacada. Como famosamente sugeriu Jean Kirkpatrick, ex-embaixador dos EUA sob o comando de Ronald Reagan na ONU: os EUA gostariam de deixar a ONU, mas “não valia a pena”. Os EUA, sob o comando de Donald Trump, retiraram-se da OMS e do Conselho de Direitos Humanos da ONU, enquanto o Conselho de Segurança da ONU está paralisado diante dos conflitos na Ucrânia e em Gaza, de uma intensa guerra comercial e de uma crise de financiamento para as agências da ONU.
Nada mais ilustra melhor a irrelevância da ONU no século XXI do que a questão das mudanças climáticas. É o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC) patrocinado pela ONU, que coleta e apresenta dados científicos sobre o aquecimento global e suas previsões para o futuro do planeta e da humanidade. O IPCC emite alertas cada vez mais severos sobre os danos do aquecimento global. Mas cada reunião sobre as mudanças climáticas (COP) [3] convocada pela ONU é cada vez mais lenta para chegar a qualquer acordo sobre a redução das emissões de gases de efeito estufa e, uma vez encerrada, os governos nacionais ignoram ou rejeitam até mesmo as metas mais brandas de ação global [4].
A mudança climática está ganhando: as emissões de CO2 aumentaram 2 bilhões de toneladas desde 2020. O consumo de combustíveis fósseis aumentou 38 exajoules. A energia eólica e solar aumentaram 14 exajoules e a energia nuclear e hidrelétrica aumentaram 8 exajoules
De fato, o último relatório mostra que os governos agora estão planejando aumentar a produção de combustível fóssil nas próximas décadas do que em 2023 [5]. Este aumento vai contra os compromissos que esses países firmaram nas cúpulas climáticas da ONU para uma “transição para longe dos combustíveis fósseis” e para uma redução gradual da produção, particularmente do carvão. Se toda a nova extração planejada ocorrer, o mundo produzirá mais do que o dobro da quantidade de combustíveis fósseis em 2030 do que seria compatível com a manutenção do aumento da temperatura global em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais. A produção projetada para 2030 excede os níveis alinhados com os limites alarmantes de 1,5ºC mais do que em 120%.
Quanto ao desenvolvimento econômico para erradicar a pobreza globalmente, em setembro de 2015 a ONU concordou com um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) a serem atingidos até 2030 [6]. Todos os países supostamente se comprometeram a trabalhar juntos para erradicar a pobreza e a fome, proteger o planeta, promover a paz e garantir a igualdade de gênero. O que aconteceu nos últimos dez anos? Apenas um terço dos ODS estão no caminho certo, com pouca perspectiva de alcançar qualquer progresso significativo nos próximos cinco anos [7].
O Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2024 [8] enfatizou que quase metade das 17 metas estão apresentando um progresso mínimo ou moderado, enquanto mais de um terço está estagnada ou em retrocesso desde sua adoção. “Este relatório é conhecido como o boletim anual dos ODS e demonstra que o mundo está recebendo uma nota baixa”, disse o Secretário-Geral da ONU, Guterres, na coletiva de imprensa de lançamento do balanço abrangente [9].
Com menos de um quinto das metas estão em desenvolvimento, o mundo está falhando em cumprir a promessa dos ODS
Finalmente, quanto às guerras e às aspirações pela paz mundial da ONU, ela parece incapaz de evitar guerras ou manter a paz. Ao contrário, Donald Trump proclama que , como líder dos EUA, a potência hegemônica, ele está acabando com as guerras (sete até o momento, de acordo com Trump). Os EUA, agora, estão abertamente conduzindo negociações de “paz” globalmente, conforme lhes convém, e não a ONU. Trump foi até mesmo indicado ao Prêmio Nobel da Paz!
Junto com toda a retórica arrogante de Trump sobre acabar com as guerras, a realidade cruel é que o imperialismo estadunidense está intensificando os conflitos globalmente. Trump propôs que o Canadá se torne o 51º Estado; deseja comprar a Groenlândia da Dinamarca (apesar dos habitantes terem seu próprio parlamento autônomo); começa a cercar a Venezuela com seu poderio militar. E obviamente, acima de tudo, os EUA continuam a apoiar Israel na sua terrível destruição de Gaza, na ocupação da Cisjordânia e no assassinato de centenas de milhares de palestinos, deixando a ONU paralisada. Como apontou Sigrid Kaag, um ex-Vice-Primeiro-Ministra da Holanda, que ocupou vários cargos na ONU, incluindo o de coordenadora especial do processo de paz no Oriente Médio: “A ONU está em um momento de irrelevância. Esse é seu dilema. O sonho pode continuar vivo, mas ninguém olha para as notícias e diz: o que aconteceu na ONU?”.
A triste realidade é que a ONU está caminhando para o mesmo destino da Liga das Nações no período entre-guerras mundiais do século XX. A Liga foi fundada em 1920 e durou apenas 18 anos de paz relativa, até que os Estados fascistas na Europa e no Japão lançaram suas invasões. Agora, em 2025, os gastos militares estão aumentando rapidamente em todos os lugares [10]. Os orçamentos de defesa estão sendo duplicados, com os países da OTAN visando 5% do PIB para as forças armadas até o final desta década – um nível não visto desde a fundação da ONU. Trump mudou (apropriadamente) o nome do Departamento de Defesa dos EUA para Departamento de Guerra.

O fracasso da ONU é o símbolo organizacional do fracasso do capitalismo mundial para unir as pessoas e as nações para erradicar a pobreza globalmente, barrar o aquecimento global e o colapso ambiental, além de evitar guerras contínuas e intermináveis. Mark Malloch-Brown, um ex-diretor do Programa de Desenvolvimento da ONU, que também foi Secretário-Geral Adjunto sob Kofi Annan resumiu em 2006: “De muitos modos, a ONU é um morto-vivo”, afirma. “Nunca chega a cair, mas ainda assim é um cadáver”.
[1] https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
[2] https://thenextrecession.wordpress.com/2021/08/17/the-relative-decline-of-us-imperialism/
[3] https://thenextrecession.wordpress.com/2024/11/24/cop-out-29/
[4] https://www.theguardian.com/environment/2025/sep/22/fossil-fuels-coal-gas-oil-extraction-climate-goals-beyond-reach
[5] https://productiongap.org/
[6] https://www.un.org/sustainabledevelopment/sustainable-development-goals/
[7] https://thenextrecession.wordpress.com/2025/06/30/sustainable-development-and-unsustainable-debt/
[8] https://unstats.un.org/sdgs/report/2024/?_gl=1*1fpjouk*_ga*MjA0Mzc0NDY0MS4xNzEwNzcxODcx*_ga_TK9BQL5X7Z*MTcxOTU5ODQ5Ni40NC4wLjE3MTk1OTg0OTYuMC4wLjA.*_ga_S5EKZKSB78*MTcxOTU5ODQ5Ni4xMy4xLjE3MTk1OTg5MDUuNjAuMC4w
[9] https://unstats.un.org/sdgs/report/2024/
[10] https://thenextrecession.wordpress.com/2025/03/22/from-welfare-to-warfare-military-keynesianism/
Texto original: https://thenextrecession.wordpress.com/2025/09/23/the-un-at-80-ignored-and-irrelevant/
Tradução: Paulo Duque, do Esquerda Online
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