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Os perigos do politicismo


Publicado em: 26 de setembro de 2025

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Coluna Henrique Canary

Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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"Sobre a cidade", Mark Chagal, 1918

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Essa dialética entre o mediato e o imediato, o histórico e o presente, o abstrato e o concreto, é sintetizada e unificada quando o partido revolucionário consegue liderar o movimento operário rumo à conquista do poder. Mas, para alcançar essa superação da contradição, é necessário percorrer diferentes etapas da luta de classes; etapas que são sempre concretas, imediatas e presentes, até se tornarem históricas, isto é, até que a luta imediata do movimento de massas se torne a tomada do poder, a grande tarefa histórica.
Nahuel Moreno, O Partido e a Revolução, 1973

Toda organização política é uma complexa articulação de diferentes camadas. Na superfície, temos a política: as palavras de ordem, as iniciativas, a definição de quem são os aliados e adversários na atual conjuntura, a propaganda e a agitação da linha, as articulações e negociações etc. Essa é a engrenagem mais dinâmica, mais visível e com efeito mais imediato. Mas nenhuma política se sustenta sem uma estrutura material por trás. Por isso, em um próximo nível, temos a organização em si: os núcleos, a direção nacional, as sedes, os congressos, as finanças, a comunicação interna, a divisão de tarefas entre os quadros, a cadeia de discussão, decisão e comando. Trata-se do esqueleto da corrente, aquilo que permite a ela se mover. Em um nível mais profundo, temos o programa: Qual a estratégia da organização em última instância? Qual seu objetivo final? Por que ela se funda? São os alicerces, a base mais estável (ainda que não imutável). Por fim, temos uma última camada, quase invisível, mas que está sempre lá: a teoria ou visão de mundo. Quais as bases teóricas mais profundas da corrente? Marxista? Anarquista? Liberal? Stalinista? A teoria não é votada, não precisa ser unânime, mas existe e importa. É a sua camada mais etérea e abstrata; uma espécie de campo magnético que a envolve e lhe dá um sentido mais geral.

Cada um desses níveis da organização implica também uma atividade específica: a atividade política, mas também a atividade organizativa, a disputa ideológica em torno do programa e a discussão e formação baseadas na teoria. Nenhuma organização viva consegue um equilíbrio perfeito entre essas atividades. Isso é normal. O próprio caminhar é uma sucessão constante de perda e ganho de equilíbrio. Mas aquele que não coloca o pé na frente do corpo ao jogar o tronco adiante cairá de cara no chão. Então, mesmo que só exista no campo ideal, a busca pelo equilíbrio entre as distintas atividades deve ser constante em uma organização. Nem todas conseguem: há organizações excessivamente propagandistas, com pouca ou nenhuma agitação e atividade política, isoladas em si mesmas em um mundo de revistas, artigos teóricos e cursos internos; há organizações que menosprezam os fatores internos organizativos e se convertem em movimentos amorfos, sem uma estrutura definida, e portanto incapazes de uma ação política mais contundente; há organizações que, ao contrário, vivem em função da vida interna, tornando-se uma espécie de comunidade à parte, sectária e autorreferenciada; e há, por fim, aquelas que sofrem de um desequilíbrio que poderíamos chamar de “politicismo”, ou seja, uma absolutização da atividade política e um menosprezo pelos outros aspectos da ação revolucionária. Concentremo-nos nestas últimas.

O que é o politicismo?

Em primeiro lugar, é preciso afirmar que a atividade política é o fim último de qualquer organização socialista. É para fazer política que existimos. Para uma organização socialista, fazer política é intervir na correlação de forças a favor do proletariado e seus aliados, empurrar um pouquinho que seja a conjuntura para o lado da revolução socialista. A tarefa de qualquer organização revolucionária é se preparar para a crise revolucionária, ou seja, aquele momento em que a tarefa histórica de luta pelo poder aparece sob a forma de uma tarefa imediata: Todo o poder aos sovietes! Fora as tropas estrangeiras! Abaixo o governo! Greve geral! etc. São as grandes lutas que definem tudo. Existimos em função delas. Não é possível prever qual é a máscara conjuntural que a tarefa histórica de luta pelo poder vai vestir quando a hora chegar. O que se pode saber ao certo é que cada conjuntura importa. Cada vitória (e também cada derrota!) constitui um aprendizado, um acúmulo de forças, e portanto um passo na preparação da organização para o seu momento definidor, a sua prova final.

Portanto, não se pode culpar uma organização por fazer “excesso de política”. Política nunca é demais. Mas em que consiste, então, o politicismo? Basicamente, no abandono de fato das outras atividades que devem compor a ação geral de uma organização. Politicismo não é fazer muita política. É fazer só política. É ignorar a propaganda ideológica, o trabalho de organização, as finanças, a disputa programática, a formação teórica da militância.

Não é difícil cair no politicismo. A atividade política é aquela com resultados mais imediatos: Ganhamos um sindicato! Elegemos um parlamentar! Fizemos um bom ato! Deslocamos uma aliado para nossa luta! Convenhamos: fazer política é o máximo. Quer-se viver no mundo da política. Mas a política deveria ser somente uma parte do nosso mundo. Assim, o combate ao politicismo é central para um funcionamento saudável de qualquer organização. Sem diminuir a importância da política, é preciso encontrar um equilíbrio entre as mais diversas atividades.

Sintomas do politicismo

O politicismo começa com um pequeno mal-estar, e depois avança para crises mais fortes. A organização tem quadros, mas todos estão “esgotados” pela atividade política imediata; ninguém tem tempo para nada; não há nomes para a construção, organização, finanças, formação. Começam os improvisos. Os organismos até funcionam, mas não conseguem discutir mais do que a pauta da semana. Os debates de fundo ficam para trás. As atividades de formação são raras ou inexistentes e, mesmo quando acontecem, não conseguem mobilizar o conjunto da militância. Estabelece-se um certo desprezo pela teoria, principalmente entre os dirigentes mais antigos. Esse desprezo é rapidamente percebido e reproduzido pelas gerações mais jovens. O saudável empirismo leninista se torna ecletismo e falta de referências. O problema não é que tudo se resolva pela prática (isso até deve ser assim). É que tudo se resolve por uma teoria que não é nomeada, e muito menos explicada.

Essa é a fase do mal-estar. Depois, começa a crise. Os organismos param de funcionar, a arrecadação financeira decai. E o que talvez seja pior porque ameaça a própria unidade da corrente: as discussões tático-políticas adquirem uma dimensão desproporcional. Perde-se o senso das proporções. Tudo é decisivo, tudo é para ontem, é sempre tudo ou nada. Se é assim, qualquer divergência política mais importante justifica a ruptura.

Toda organização humana, ao recrutar um novo membro, busca introduzi-lo na sua visão de mundo: é assim com a Igreja, com uma empresa, com o Estado. Você entra e começa a fazer cursos, assistir a palestras, ler livros. Mas a organização politicista não faz isso. Ela integra o novo membro apenas na atividade política prática, na agenda da semana. Curso? Discussão de finanças? Fica para uma outra oportunidade. O resultado é que os recrutamentos são frágeis, superficiais, se perdem na primeira diferença, na primeira crise subjetiva.

Combatendo o politicismo

Seria errado combater o politicismo com um desequilíbrio simétrico no sentido oposto: abandonar a política e se dedicar à propaganda abstrata, ao fetichismo organizativo ou à formação desligada da prática militante. Não há uma receita de antemão porque cada organização politicista é politicista à sua maneira. Mas alguns mecanismos gerais podem ser nomeados.

É preciso, em primeiro lugar, uma correta divisão de responsabilidades. As tarefas de formação, elaboração e organização precisam ser assumidas pelos quadros centrais da corrente. É preciso criar um certo clima, uma certa opinião pública interna que valorize a formação teórica, a leitura, a disputa ideológica, a organização, as finanças. “A palavra convence, mas o exemplo arrasta”. A militância deve ver seus dirigentes fazendo outras atividades para além da política: dando e fazendo cursos, reunindo em núcleos de base, pagando suas cotizações disciplinadamente, conduzindo pequenos círculos de estudo e recrutamento de novos militantes.

A atividade política é e sempre será o centro, mas isso não quer dizer que existam atividades “menores”. Se um dirigente realiza uma atividade, é porque ela é importante. É isso que a militância entende. E é essa a verdade.

O aprofundamento de um desequilíbrio politicista ameaça o sentido estratégico de uma organização. Porque se o nosso objetivo é transformar a tarefa histórica em tarefa imediata, ligar esses dois pontos tão distantes, é preciso saber que tarefa histórica é essa, cultivá-la, lembrá-la, tê-la sempre no horizonte, abordá-la, construirmo-nos também em base a ela. Sem isso, corremos o risco de não percebê-la, mesmo quando ela estiver diante do nosso nariz.


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