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Dez notas sobre os Brics


Publicado em: 24 de setembro de 2025

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Valério Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Valério Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

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Foto: Ricardo Stuckert/PR

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Quem não tem cão, caça com gato
Provérbio popular português

1. O que são os Brics? O Bloco Brics surgiu da iniciativa da China, Rússia, Índia e Brasil que, originalmente, o compuseram em 2009 na reunião de Ekaterinburgo, aos quais se uniu a África do Sul em 2011. Mas a sigla, curiosamente, não. A ironia da história é que a primeira referência à sigla Brics foi de um operador financeiro do Banco Goldman Sachs em 2001.[1] Uma análise realista deve concluir que os Brics são, por enquanto, uma rede diplomática e acordo comercial que surge na sequência da crise econômica internacional de 2007/08. Não é um acordo de livre comércio, embora se procure redução de barreiras e elevação da cooperação em diferentes níveis. É isso o que temos, nem mais, nem menos. Mas cumpre um papel progressivo diante da brutal ofensiva norte-americana pela defesa da supremacia de Washington no mundo, em especial, contra a China. Cumpre um papel progressivo defensivo para o Brasil por três razões principais: (a) porque à frente da maior potência mundial está um governo de extrema-direita com um programa nacional-imperialista que ameaça a recolonização da América Latina; (b) porque as relações econômicas com os Brics diminuíram a dependência histórica do Brasil diante dos investimentos e demanda dos mercados dos EUA, da Europa e do Japão; (c) porque só a sinalização de uma desdolarização gradual já é uma iniciativa que enfraquece o poder dos EUA. São um acordo comercial que se fundamenta no volume e proporção das transações e investimentos que desdobraram na fundação do Banco de Xangai. A China é de longe o maior parceiro comercial tanto do Brasil, como da Rússia e, em menor medida, da Índia.[2]

2. A investida internacional tarifária irrestrita do governo Trump, no primeiro semestre de 2025, não deve ser subestimada. Ficou claríssima a disposição de Washington de subverter as relações comerciais, até com os países da Tríade, forçando União Europeia, Reino Unido e Japão a aceitarem custos mais elevados de acesso ao mercado interno dos EUA. Esta avalanche protecionista veio associada às ameaças políticas contra a independência do Canadá, de anexação da Groenlândia, de apropriação do Canal do Panamá, de invasão das fronteiras do Mexico, portanto, de um domínio imperialista hemisférico sobre todo o continente americano. Mas seria imperdoável, em especial, diminuir a gravidade das sanções comerciais contra o Brasil. Sem a compensação de novos mercados as exportações brasileiras teriam desabado, o saldo da balança comercial teria invertido, e o déficit na balança de pagamentos teria disparado, provocando uma abrupta desvalorização do real, e uma onda inflacionária que desestabilizaria o governo Lula, e deixaria a disputa das eleições de 2026 muito mais perigosa. Mais grave foi que o ataque tarifário dos EUA contra o Brasil foi justificado pelo processo judicial do núcleo crucial golpista liderado por Bolsonaro. Trata-se de uma ofensiva política indivisível do cerco contra o governo Maduro na Venezuela, e sinaliza que o pior ainda está por vir. O papel tático defensivo dos Brics foi, nesse contexto, importante, apesar das imensas desigualdades internas, em especial entre China/Rússia de um lado, e Brasil/África do Sul por outro. Tanto mais que há uma crise de longa duração no Mercosul, agravada após a eleição de Milei em Buenos Aires. As exportações brasileiras para o bloco caíram mais de 29% entre 2011 e 2024, e permanece um impasse sobre a Tarifa Externa Comum. O Mercosul é um Acordo de Livre Comércio entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, criado em 1991, alguns anos depois do ciclo de ditaduras militares no Cone Sul. A adesão da Bolívia é iminente e Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname são Estados associados. A integração aduaneira latino-americana, inclusive na perspectiva de uma moeda comum, deveria ser a aposta estratégica central da esquerda brasileira.

3. Nas suas origens mais remotas ocorreu uma negociação muito positiva entre a Índia e Brasil, associados à África do Sul, pela quebra de patentes de fármacos indispensáveis para o tratamento de Aids, à margem da Organização Mundial do Comércio. Os Brics surgem em 2009, mas evoluíram com a fundação do Novo Banco de Desenvolvimento de Xangai para financiamento de obras de infraestrutura, sem as condicionalidades dos critérios do FMI que exigem ajustes fiscais neoliberais. Desde então, negociações não conclusivas exploram a possibilidade de comércio entre os parceiros com suas divisas nacionais, contornando o uso do dólar norte-americano, uma experimentação de sistema de pagamentos internacionais paralelo ao Swift, e um acordo de reservas para situações emergenciais. Estas iniciativas são progressivas porque desafiam a imensa superioridade financeira da Tríade, em especial, dos EUA, e favorecem o crescimento econômico dos países da periferia em condições menos desfavoráveis. Apesar de não existir uma “institucionalidade” do Bloco, os Brics já são um polo político, porque expressa países que concentram mais de 40% da população mundial, e algo em torno de 37% do PIB. por paridade de poder de compra.

4. Quatro mudanças qualitativas no mercado mundial, nos últimos vinte anos, aceleraram transformações que provocaram um relativo debilitamento da Tríade, e explicam o contexto de oportunidade da formação dos Brics: (a) a estagnação econômica na Tríade pós-2008, agravada pelo impacto da pandemia; (b) o crescimento econômico acelerado na Ásia, em especial da China, com façanhas de obras de infraestrutura e inovação científica, que elevou a demanda por commodities; (c) uma inversão, ainda que parcial, nas condições das relações de troca na periferia, com a valorização de commodities no início do século XXI, que favoreceu, entre outros, Rússia e Brasil; (d) o agravamento da crise ambiental e o início, mesmo que titubeante, de uma transição energética. Mas, embora indiquem uma tendência, nenhuma destas transformações foi, por enquanto, estrutural ou irreversível. Está ocorrendo uma acelerada corrida de investimentos em novas tecnologias – nanotecnologias de microprocessadores, biotecnologias e inteligência artificial – que irão produzir reestruturações produtivas. Simultaneamente, estamos diante de uma nova corrida armamentista mundial.

5. Os Brics surgiram, em grande medida, de uma tática exploratória sem definição de projeto estratégico. Uma analogia histórica possível seria com o Movimento dos Não Alinhados da Conferência de Bandung na Indonésia em 1955, no auge da primeira etapa da guerra fria entre os EUA e a URSS. Mas as diferenças não são menos importantes. Em Bandung não surgiu um campo anti-imperialista, mas uma articulação que buscava neutralidade entre Washington e Moscou. Os Brics são ainda menos: somente uma aliança econômica e financeira. A expansão recente dos Brics com a incorporação de mais seis países aos cinco iniciais – Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia – aumentou mais a heterogeneidade política interna. A exclusão da Venezuela, o principal alvo da ofensiva dos EUA na América Latina, bloqueada pelo Brasil, foi um grave revés. Não deve nos surpreender que a corrente neofascista defenda um alinhamento incondicional com os EUA, e a ruptura com os Brics. A esquerda deve defender a permanência do Brasil.

6. Há variadas interpretações exageradas sobre os Brics. A mais ingênua, mas não menos idealizada, herdeira nostálgica de fantasias campistas do papel da URSS no passado, é que os Brics seriam uma articulação de governos de esquerda ou socialistas. Não são, nem remotamente. Rússia e Índia são governadas por partidos de extrema-direita. Putin consolidou um regime político autoritário bonapartista que, embora tenha popularidade interna, não respeita as mais elementares liberdades democráticas. Modi domina com uma ideologia nacional hinduísta. A mais sectária, herdeira de posições antidefensistas da URSS no passado, considera que os Brics seriam uma iniciativa chinesa de afirmação de um imperialismo em ascensão, e defende a necessidade de independência do Brasil diante tanto de Washington, quanto de Pequim. Dessa caracterização errada resultaria a defesa de ruptura do Brasil com os Brics. Mas é unilateral porque a China não tem interesse em tencionar as relações com Washington, e tem respondido de forma firme, porém cuidadosa, aos rompantes de Trump. Por último, herdeiros tardios de ilusões “terceiro-mundistas” abraçam a posição de que os Brics seriam o instrumento de uma idealizada Frente do Sul Global. Se compreendemos Sul Global como sinônimo da histórica periferia de países que foram colônias dos países centrais imperialistas, ou seja, América Latina, África, sobretudo, subsaariana e Sudeste Asiático, não é assim. A Rússia não é um país da periferia do capitalismo, mas um Estado imperialista, uma potência militar excluída pela Tríade. A Índia é um Estado com escudo nuclear e, apesar de ter sido atingida duramente por sanções tarifárias de Trump, mantém relações estreitas com Washington. A China é a segunda potência econômica mundial e, apesar de excluída do G-7, tem interesse em manter acesso aos maiores mercados internacionais.

7. Entre as interpretações equivocadas, talvez a mais difundida seja a que defende os Brics como um bloco anti-imperialista. Trata-se de um excesso. Os Brics são uma rede independente, mas não uma alavanca de apoio às lutas contra Washington. Não são por três razões: (a) a China aposta em uma estratégia defensiva de ganhar tempo e acumular forças, uma coexistência pacífica a qualquer preço, porque precisa manter acesso aos mercados europeu, norte-americano e japonês para escoar sua capacidade produtiva fundamentada em exportações, e não tem interesse em desafiar a Tríade; (b) a Índia tem disputa de hegemonia regional, e até conflito de fronteiras com a China, e mantém relações estratégicas com os EUA e o Reino Unido, desde o desenvolvimento de sua indústria nuclear via Israel, em função da rivalidade com o Paquistão; (c) o Brasil defende uma estratégia diplomática de ambiguidade estratégica pela influência dos EUA na América Latina. Não deveria nos surpreender que os Brics não tenham ido além de declarações diplomáticas diante do genocídio de Israel na Faixa de Gaza, impotentes diante do imperativo de ruptura de relações diplomáticas.

8. Enganam-se, também, aqueles que consideram que já existe algum tipo de multipolaridade no mundo. A supremacia dos EUA tem sido debilitada, mas não ruiu. Mantém-se uma ordem imperialista dirigida pelos EUA, apoiada, na União europeia e Japão, ainda que em crise interna.  As transições de papel hegemônico no sistema internacional de Estados são processos históricos complexos que são condicionados por muitos fatores. Nunca aconteceu passagem de poder para um novo Estado sem vitória na guerra. Londres só conquistou supremacia no século XIX depois da derrota de Napoleão em Waterloo. Os EUA já eram a maior economia capitalista no início do século XX, mas foi só depois da Segunda Guerra Mundial que sua supremacia se afirmou. Nunca é monocausal, apesar da importância da força econômica. O lugar de cada país no mundo só pode ser compreendido considerando seu papel no mercado mundial, mas em outro grau de abstração, seu lugar no sistema de Estados, e eles não coincidem, necessariamente. O sistema internacional de Estados é muito mais rígido que as variações de peso relativo dos países no mercado mundial. Apesar de um grau maior de desordem, o sistema mantém um centro, e não mais do que um, a Tríade, com os EUA no papel de potência hegemônica, pela esmagadora superioridade militar, e pela força de gravitação de seu sistema financeiro ancorado no dólar como principal moeda de entesouramento. Quando considerados estes e outros fatores a hegemonia norte-americana permanece. Os Brics não desafiam esta posição porque são somente uma trincheira defensiva, ou uma aliança diplomática necessária diante de uma relação de forças adversa, como demonstrado diante da guerra de genocídio de Israel contra os palestinos, e na recente guerra dos EUA e Tel Aviv contra o Irã.

9. A avaliação da relação de forças entre Estados é só uma variável para entender o mundo. Marxistas consideram, também, e principalmente a luta de classes. A relação social de forças entre capital e trabalho, as duas forças sociais mais poderosas no mundo contemporâneo, permanece desfavorável para os trabalhadores e as massas populares. Estamos em uma etapa histórica ainda condicionada pelas derrotas da restauração capitalista e do fim da URSS. No último meio século não triunfou nenhuma revolução socialista. Revoluções políticas democráticas aconteceram, derrubando regimes pela mobilização popular. Explosões de fúria popular incontível com greves gerais, ocupação de prédios públicos, libertação de presos políticos, manifestações de milhões nas ruas produziram cisões nos aparelhos repressivos, dividiram algumas vezes até as Forças Armadas e derrubaram governos odiosos na América Latina, na África e na Ásia. Mas não ameaçaram a ordem capitalista. Foi assim no Sahel, no Sri Lanka, em Bangla Desh e, recentemente, no Nepal. Mas não ameaçaram a ordem capitalista. Ao contrário, não são as ideias anticapitalistas que aumentaram influência, mas um programa desesperado de extrema-direita ultracapitalista. As organizações revolucionárias de diferentes tradições resistem em condições muito difíceis. O neofascismo chegou ao poder nos EUA e aumentou em muito sua força na Europa. Vivemos um contexto de redução de direitos, não de expansão de conquistas. Ainda que os níveis de miséria tenham sido reduzidos, a desigualdade social permanece intacta na maioria dos países. Não fosse o bastante, a ameaça colocada pelo aquecimento global coloca o desafio de uma transição energética em crise porque o Tratado de Paris caducou. Esse quadro explica porque a presença do Brasil nos Brics obedece a um cálculo defensivo irredutível.

10. As assimetrias entre os países do Brics são preocupantes, e têm importância estratégica incontornável, porque o Brasil é um dos elos mais fracos. Não é um acordo entre iguais. Nação, Estado e país são conceitos indivisíveis, mas não são sinônimos. Uma nação é um povo que amadureceu o bastante para ter uma visão de si mesmo como uma comunidade com um destino compartilhado em um espaço definido. Um Estado, desconsiderando a variedade de regimes políticos, mais democráticos ou mais autoritários, é um aparelho político-militar que exerce o poder porque tem o monopólio do uso da força, e sua natureza é definida pelo grupo social que o controla. Um país resulta da síntese entre uma ou mais nações sob a autoridade de um Estado, portanto, uma sociedade que se explica pelas relações de classe que prevalecem, e pelo seu lugar no mundo. O mundo é complicado: há nações sem Estado, como palestinos e curdos, e Estados sem nação, como o Monaco, um híbrido de Las Vegas e paraíso fiscal, Andorra, uma zona franca nos Pirenéus ou o Vaticano, sede da Igreja Católica. Um país pode ser capitalista, mas sem que o Estado seja burguês, como parece ser a excepcionalidade chinesa. Rússia, Índia e China são países nos quais vivem diferentes nações, e são Estados independentes, já o Brasil, não. O que se deve concluir destas premissas é que os interesses do Brasil são distintos dos outros Estados. China, Rússia e Índia ocupam um lugar, qualitativamente, distinto e superior ao do Brasil. Quais são os critérios para entender o lugar de cada Estado no sistema internacional? As quatro variáveis chaves são a história, a economia, a política e as relações internacionais: (a) a inserção histórica na etapa anterior, ou seja, a posição de cada Estado em um sistema extremamente hierarquizado e rígido é vital, e o Brasil, embora tenha conquistado uma independência formal há mais de duzentos anos, permaneceu semicolônia inglesa até os anos trinta do século XX, depois foi uma semicolônia privilegiada dos EUA, e, se hoje está em uma localização semiperiférica, ainda é um país dependente, enquanto a China protagonizou uma da maiores revoluções sociais da história, a  Rússia é uma das  duas maiores potências militares do planeta, e a Índia, ainda um país em que a maioria da população é pobre, tem um grau de independência pelo arsenal nuclear; (b) a dimensão de sua economia, ou seja, os estoques de capital acumulado, a capacidade de manter soberania monetária, os recursos naturais – como o território, as reservas de terras, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc. – e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural da nação – assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria, ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial o que explicita a inferioridade em toda a linha do Brasil; (c) a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência, ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra, outros fatores que confirmam a debilidade qualitativa do Brasil; (d) as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que fazem parte, ou seja, sua rede de coalizão. Rússia e China fecharam acordo de colaboração estratégica, e Pequim acabou de realizar uma reunião da Organização de Cooperação de Xangai, com a presença da Índia, fortalecendo sua iniciativa para a Ásia. Na América Latina a OEA é dirigida pelos EUA, e a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), a Comunidade Andina de Nações (CAN) e a  Unasul (União de Nações Sul-Americanas)  são Fóruns sem densidade, o Mercosul está em crise e a ALBA em suspenso, senão enterrada.


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