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Em defesa das crianças e adolescentes
Contra o PDL 387/2024 que busca manicomializar crianças e adolescentes em comunidades terapêuticas!
Publicado em: 24 de setembro de 2025
Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Primeiramente, gostaria de agradecer o convite para compor esta live com referências no campo da proteção da infância e adolescência brasileira, pautada no cuidado em liberdade.
Mas, para iniciar, eu tenho o hábito de começar de forma mais pessoal, para que vocês me conheçam um pouco mais. Vou me apresentar para além do currículo Lattes que foi citado, porque, na minha opinião, mais importante que o envolvimento com a pesquisa é a trajetória que nos move até aqui.
Bom, meu nome é Sara. Nasci e cresci em cenários manicomiais no interior de São Paulo, onde minha mãe, Khadige, foi manicomializada por mais de 18 anos. Hoje, enfrentamos os resquícios de uma vida institucionalizada, de uma pessoa que ainda “pede” pela internação. Até porque estar em um manicômio, viver a institucionalização, ecoa pelo resto da vida — não somente por um “período de suposta cura”.
Apesar de uma forte rede de apoio, cresci entendendo que era preciso lutar para derrubar muros. Aos 15 anos, perdi minha outra figura de cuidado para o suicídio e, então, se confirmou que algo eu precisava gritar. Na academia, na assistência, com a escuta e enquanto pesquisadora e executora da política de saúde mental, encontrei uma saída. Uma saída difícil, porque quando se trata de criança e adolescente ainda existe uma separação: quem é a criança ou adolescente e quem é o “menor”.
Existe uma lógica ainda em vigor que tende a individualizar questões de determinadas crianças e adolescentes, excluindo o lugar de “prioridade absoluta”. Existe uma escolha ao pensar no que afeta e no que não afeta a “fase peculiar do desenvolvimento”. E existe a total ausência de protagonismo infantojuvenil.
Bom, estamos aqui para ensinar uma senadora o bê-á-bá da proteção de crianças e adolescentes, até porque ela tem um histórico de desproteção. Basta lembrar o que fez no governo anterior: não é a primeira vez que a senadora Damares Alves tenta legislar contra a infância.
Em 2019, quando Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tentou desmontar o CONANDA, atrasou sua recomposição e esvaziou seu papel.
- Inventou a narrativa macabra sobre crianças do arquipélago do Marajó que teriam dentes arrancados para exploração sexual. O MPF comprovou a falsidade da história e a União e a própria senadora foram processadas por danos morais coletivos.
- Tentou sustar também resoluções do CONANDA que garantiam acesso ao aborto legal em meninas vítimas de violência sexual, afrontando diretamente o ECA, a Constituição e tratados internacionais de direitos humanos.
- Está, neste momento, trabalhando para o aumento do tempo de privação de liberdade dos adolescentes no sistema socioeducativo.
- Insiste em legitimar as comunidades terapêuticas para “violentar” crianças, mesmo diante de dados que comprovam seu caráter de instituições de violência.
Vamos iniciar dizendo o óbvio, que me parece que em algum momento ela esqueceu: o CONANDA não é um capricho. Foi criado pela Lei nº 8.242/1991, previsto no ECA. É um órgão deliberativo, com composição paritária entre Estado e sociedade civil, que formula normas gerais da política nacional de direitos da criança e do adolescente.
Portanto, a resolução que impede crianças de serem internadas em comunidades terapêuticas não é uma decisão isolada — é o exercício legítimo da função legal do Conselho. A antiga fala “extrapolar a atuação” é uma retórica da própria senadora, pois a resolução não extrapola poder algum: apenas reafirma o que já está no ECA, na Constituição e na Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/2001). Me parece que existe um equívoco na leitura, até porque revogar essa resolução é deslegitimar a política nacional de direitos da infância e retirar a proteção mínima de quem mais precisa.
O PDL da referida senadora utiliza o Art. 49, V, da CF/88, que dá ao Congresso a competência para sustar atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Ora, o CONANDA não exorbitou: apenas reafirmou direitos já previstos em lei. Logo, o PDL usa esse artigo de forma indevida.
Sabemos que as comunidades terapêuticas não são serviços de saúde. São instituições asilares-manicomiais, privadas, majoritariamente religiosas, que se apresentam como solução rápida, baseada no que meu professor e orientador chama de “puro suco do Brasil: senzala, manicômio, prisão, fundamentalismo e violência religiosa e escravidão (laborterapia)”. Mesmo com diversas denúncias e pesquisas que mostram a realidade dessas masmorras, a senadora insiste em arriscar a vida de adolescentes a morrer incendiados, porque estão trancados, amarrados e não podem fugir.
Ora, não seria então o histórico de institucionalização de crianças e adolescentes? Parece que o Código de Menores ainda rege algumas pessoas. Mas os movimentos sociais continuam aqui para embarreirar.
Todos já sabem, mas não custa relembrar que os dados nos demonstram:
- Em fiscalização realizada em 205 CTs pelo MNPCT, 100% apresentaram violações de direitos humanos.
- A UnB registrou 251 denúncias de violações em CTs em 2023 – incluindo tortura, cárcere privado, trabalho forçado e mortes.
- Goiás, por exemplo, é hoje o estado com maior número de denúncias desse tipo, segundo levantamento nacional.
Colocar crianças e adolescentes nesse ambiente é condená-los a um regime de minoridade, violência e institucionalização forçada. A relação de crianças e adolescentes em uso de drogas justifica atitudes punitivistas, paternalistas, menoristas e, portanto, manicomiais, com a frase “prejudicial ao desenvolvimento”.
Ora, usamos essa frase para justificar as próprias ações dos adultos e não as das crianças. Usamos essa frase para justificar a internação, a contenção e a institucionalização da pobreza, do racismo e do etarismo.
Mas o que há por trás dessas justificativas? Existe uma tríade histórica de controle de crianças e adolescentes: Educação, campo psi e Segurança Pública. Ao trabalhar no campo da infância e adolescência, comumente reproduzimos o que essas três instituições de poder fazem, sem a menor reflexão. Pensamos que precisamos educar, que precisamos controlar no âmbito psi e que, portanto, precisamos moralizar ou aprisionar.
Isso está explícito na quantidade de jovens trancafiados no sistema socioeducativo por porte ou tráfico de drogas. Todos pretos, pobres e periféricos. Os mesmos que estão nas comunidades terapêuticas.
Já que toquei nesse assunto, tive a infelicidade de me deparar com um vídeo postado pela senadora ontem (17/09/2025), em que ela diz que um menino internado depende de “8 a 22 mil reais por mês para internação”, justificando que a reincidência e o alto custo deveriam sustentar maior tempo de internação, e que “banalizaram a vida e são cruéis”. Portanto, aumentar o tempo seria a solução da senadora.
Eu a convido a assistir à assembleia de hoje, quinta-feira, 18 de setembro, no CONANDA, em que, no Ceará, adolescentes estão sendo mordidos por ratos, passando por revistas vexatórias, se autolesionando na própria grade de uma prisão.
Mas vamos falar de dinheiro, já que ela usou essa justificativa dos “cofres públicos”? Fiz um levantamento bem rápido para a fala de hoje. Analisando os custos anuais, observamos que:
- Comunidades Terapêuticas: em 2024, foram destinados aproximadamente R$ 13.616.968,82 para 18 CTs no Distrito Federal.
- CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil): o custeio anual de um CAPSi no DF é de aproximadamente R$ 585.648,00.
- UAI (Unidade de Acolhimento Infantojuvenil): o valor repassado para manutenção de uma UAI infantojuvenil é de R$ 60.000,00 mensais, totalizando R$ 720.000,00 anuais.
Com os recursos destinados às comunidades terapêuticas, seria possível manter:
- 23 CAPSi com atendimento especializado e multidisciplinar.
- Ou 18 UAIs, oferecendo acolhimento temporário e proteção social.
A questão não é o dinheiro, e sim a finalidade dele. A prioridade do capital. Ora, espero que não seja novidade para todos aqui que a infância e adolescência, dentro de uma sociedade capitalista, dependente e periférica, são a população mais rentável para os empresários.
- Defende maioridade penal: adolescentes tratados como adultos para punição.
- Defende CTs para cuidados: adolescentes tratados como incapazes e expostos a violências.
- Fala em família e proteção, mas propõe afastamento e institucionalização.
- Critica custos do socioeducativo, mas repassa alto valor a CTs de baixa qualidade.
Em resumo, trata adolescentes de maneira contraditória e inconsistente com os direitos humanos.
Não se trata aqui de religião ou de opinião pessoal. Trata-se de direitos de crianças e adolescentes, que são prioridade absoluta no nosso ordenamento jurídico. O Estado brasileiro não pode transferir sua responsabilidade a instituições privadas e violadoras.
Revogar a resolução do CONANDA é voltar à lógica do século XIX, de crianças tratadas como “menores” a serem institucionalizadas. É negar todo o avanço da Reforma Psiquiátrica, da luta antimanicomial, do ECA e da RAPS.
Por isso, faço um apelo: que este PDL seja rejeitado, que se fortaleça o SUS, a RAPS, os CAPSi, os CAPSi III e as UAIs, e que se reconheça o papel legítimo do CONANDA como guardião dos direitos da infância.
Crianças e adolescentes não precisam de cárcere, precisam de cuidado. Não precisam de violência, precisam de proteção. Não precisam de retrocesso, precisam de futuro.
A resolução do CONANDA não é ideológica. É uma defesa radical da infância e da adolescência, contra o lucro com a dor e contra o retrocesso manicomial.
Portanto, esse PDL é:
1 Uma violação da prioridade absoluta da infância e adolescência (art. 227 da Constituição); ele enfraquece a proteção integral, permitindo internações em instituições já denunciadas por violações de direitos.
2 Desrespeito ao ECA (arts. 4º e 88), que coloca o CONANDA como instância central do Sistema de Garantia de Direitos.
3 Quebra do princípio da separação de poderes: não cabe ao Legislativo derrubar deliberações de um órgão colegiado previsto em lei, quando este atua dentro de suas competências.
4 Violação de tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU).
O que a senadora está tentando fazer não é corrigir um excesso. É rasgar a Constituição e o ECA para abrir a porta do manicômio às nossas crianças. Isso é um ataque direto ao Estado Democrático de Direito.
Que a gente invista nas UAIs, nos CAPSi III, nos centros de convivência. Porque, se a questão é dinheiro, podemos colocar na ponta do lápis.
Nós temos uma rede substitutiva, a RAPS, composta por trabalhadores que continuam gritando: “Prender não é tratar, manicômio nunca mais!”
Senadora, respeite nossas crianças e adolescentes!
Pelo fim das comunidades terapêuticas!
Por uma sociedade sem manicômios!
* O título deste artigo é uma referência à uma fala feita na live “Estão manicomializando nossas crianças e adolescentes! PDL 387/24 (Damares Alves) e as CTs para crianças e adolescentes”, realizada nesta quinta, 18 de setembro.
Sara Hussein Garcia de Figueiredo é psicóloga, mestra e doutoranda em Psicologia. Consultora do CONANDA, Militante antimanicomial e dos direitos de crianças e adolescentes.