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Panamá: o longo caminho do mal-estar aos protestos
O Panamá enfrenta sua maior onda de protestos em décadas. Desde março, estudantes, sindicatos, povos originários e ambientalistas se mobilizam contra as reformas previdenciárias, projetos extrativistas e acordos internacionais que, segundo denúncias, comprometem a soberania. O mal-estar tem como principal destinatário o governo de José Raúl Mulino
Publicado em: 16 de agosto de 2025
Desde o início de 2025, o Panamá tem vivido uma das maiores ondas de mobilização social desde a invasão estadunidense de 1989. As ruas se encheram de estudantes, professores, trabalhadores, povos originários e organizações ambientalistas. As consignas eram diversas, mas o mal-estar era comum: a sensação de que o país tinha sido capturado por uma elite política e econômica que gerencia seus privilégios sem prestar contas, em um contexto marcada pela desigualdade persistente, pelo retrocesso dos direitos sociais e pela ausência de mecanismos reais de participação cidadã. Os protestos se dirigiam, fundamentalmente, contra a administração de José Raúl Mulino, o presidente do país que chegou ao poder logo após Ricardo Martinelli, ex-presidente e empresário, não ter sido habilitado a participar das eleições por causa de uma condenação por lavagem de dinheiro. Desde que começou seu mandato, Mulino conduziu uma série de profundas reformas que se dirigem contra os direitos sociais e econômicos da cidadania.
O estopim imediato dos protestos foi a aprovação da lei 462, que reformou o sistema de seguridade social. Mas os protestos não se limitaram a isso. Se somaram à inconformidade previdenciária a rejeição aos projetos extrativistas, a defesa da água, a crítica aos novos acordos com os Estados Unidos sobre seguridade, a crescente tensão entre os setores populares e um modelo econômico que mostra sinais de esgotamento. Panamá, o país dos arranha-céus, também hoje é o país dos bloqueios rodoviários, das greves prolongadas e das resistências sociais.
A história econômica do Panamá não pode ser compreendida sem conhecer sua geografia. Como ponto de conexão entre dois oceanos e entre a América do norte e a América do Sul, o país baseou seu modelo de desenvolvimento no trânsito: de mercadorias, de serviços financeiros e de investimentos. Esse modelo de trânsito permitiu taxas de crescimento elevadas, mas também aprofundou as desigualdades.
Ao longo das últimas décadas, a economia panamenha se sustentou sobre três pilares: o canal, o banco e a construção. Enquanto o PIB crescia e grandes torres se erguiam na cidade do Panamá, as comarcas indígenas, as zonas rurais e os bairros periféricos continuavam marginalizados. O país constrói mais rápido arranha-céus do que uma escola. O paradoxo é o pano de fundo do mal-estar social: uma economia que cresce, mas não redistribui; um Estado que investe em infraestrutura, mas posterga o social. A isso se soma uma estrutura tributária regressiva, um baixo investimento público em saúde e educação, e uma dependência do investimento estrangeiro direto. Panamá foi qualificado por organismos como o Banco Mundial como um país de renda média-alta, mas essa classificação oculta as brechas estruturais que afetam boa parte de sua população. A desigualdade não é somente de investimento: é territorial, étnica e geracional.
Um dos temas mais sensíveis que alimentam o descontentamento popular é a administração da água e a pressão que os projetos extrativistas exercem sobre os recursos naturais. O projeto de construção de um “reservatório multifuncional” na bacia do Rio Indio, impulsionado pela Autoridade do Canal do Panamá, visa assegurar o abastecimento de água para as operações do canal. No entanto, comunidades camponesas e rurais denunciam que o projeto implica em seu deslocamento forçado e na alteração irreparável do entorno ecológico. A oposição cresceu em intensidade, com mobilizações que exigem um modelo de desenvolvimento que respeite o território e os direitos daqueles que o habitam.
Ao mesmo tempo, a mineração de metais voltou a ser o centro do debate. Apesar da Suprema Corte de Justiça ter anulado em 2023 o contrato com a empresa Cobre Panamá por inconstitucionalidade, o governo direitista de José Raúl Mulino manifestou sua intenção de reativar as operações extrativistas. Essa decisão, percebida como uma forma de ignorar tanto a decisão judicial quanto a rejeição social, reativou os protestos. Organizações ambientalistas, comunidades indígenas e setores acadêmicos advertiram sobre os impactos de longo prazo que a mineração tem sobre o ambiente, a água e a saúde pública.
Um dos pontos de conflito mais recentes tem sido a reforma do sistema de previdência social. A promulgação da Lei 462, Lei Orgânica da Caixa de Seguro Social (CSS), em março de 2025, alterou de maneira profunda o sistema de aposentadorias e as condições para a aquisição. Essa medida ocasionou uma crescente onda de protestos lideradas por sindicatos, associações de professores, estudantes e comunidades indígenas, que denunciam não somente que tais mudanças desmantelam os princípios essenciais da solidariedade e da justiça social no sistema previdenciário, mas também a falta de um processo democrático de consulta prévia para sua aprovação.
As manifestações foram reprimidas tanto nas zonas urbanas quanto nas rurais. Em vários casos, centenas de dirigentes sociais, sindicais, mulheres dos povos originários e ativistas foram presos pelas forças de segurança em operativos na província de Bocas del Toro, onde inclusive chegou-se a impor um estado de exceção. A tensão entre um modelo solidário e as propostas de contas individuais continua sendo um dos debate mais polarizadores no país.
Esse processo integra uma estratégia mais ampla que diferentes setores sociais denominaram de “fatiga social planificada”. Inspirado na “doutrina do shock”, descrita por Naomi Klein, esse conceito faz alusão ao uso deliberado de crises acumuladas ou induzidas enquanto oportunidades para avançar com reformas regressivas sem resistência organizada. Por meio do medo, da insegurança e da desinformação, busca-se provocar a desorientação e a passividade social a fim de facilitar o avanço das agendas neoliberais. A “fadiga social plenificada” teria respaldo em fatores como a instabilidade política, a perseguição sindical, a crise hídrica, o endividamento público, a migração irregular e a manipulação da mídia.
Outra causa de conflito tem sido o projeto de interconexão elétrica entre Panamá e Colômbia. Promovido como parte da integração energética regional, o projeto implica na construção de infraestrutura elétrica em territórios habitados por comunidades indígenas, em particular na região do Darién. Autoridades tradicionais e organizações de comarcas denunciam que não foram consultadas adequadamente e que a iniciativa coloca em risco a autonomia dos povos originários, uma vez que poderia implicar no deslocamento forçado, na fragmentação territorial e na violação de formas de vida ancestrais.
Tais conflitos ilustram um padrão recorrente: grandes decisões estratégicas tomadas pelo centro político e econômico do país, sem levar em consideração os direitos coletivos, nem os mecanismos de consulta prévia, livre e informada. A crescente mobilização indígena em defesa do território reflete não somente uma luta por direitos específicos, mas também uma exigência de um modelo de desenvolvimento mais inclusivo e democrático.
Paralelamente aos conflitos internos, o Panamá também é cenário de uma disputa geopolítica crescente. A assinatura, em 2025, de um Memorando de Entendimento em matéria de segurança entre o governo de Mulino e o dos Estados Unidos criou uma onda de críticas por parte de organizações sociais, acadêmicas e setores políticos. Ainda que o documento tenha sido apresentado como um acordo de cooperação técnica, suas implicações são mais amplas. Para muitos, implica na possibilidade de uma presença militar estrangeira encoberta, que contradiz o espírito dos Tratados Torrijos-Carter e vunerabiliza a soberania paramenha.
A tensão se agrava pela crescente presença da China no páis. Na última década, Pequim aumentou sua influência por meio de investimentos em infraestrutura, portos, zonas francas, convênios educativos e apoio tecnológico, tudo isso no âmbito da Iniciativa da Faixa e Rota. O país se tornou um espaço central na disputa entre potências, sem que a população panamenha tenha sido consultada sobre o rumo geopolítico que deve tomar o país. Tal disputa externalizada não é somente diplomática e comercial: têm efeitos diretos sobre as decisões nacionais.
A crise social e política que o Panamá vive em 2025 não pode ser compreendida sem se analisar o funcionamento de seu sistema político. Embora o país tenha mantido formalmente uma democracia eleitoral desde a invasão estadunidense, vários indicadores revelam uma crescente desconexão entre os cidadãos e as instituições. A baixa participação, a concentração de poder no Executivo, a opacidade na tomada de decisões e a debilidade do sistema de partidos corroem a legitimidade do regime político. A eleição de Mulino como presidente, diante da desqualificação de Martinelli, representou uma continuidade do modelo neoliberal com uma retórica de ordem e eficiência. No entanto, sua agenda tem sido marcada por decisões impopulares, reformas sem consulta e aproximações estratégicas com potências estrangeiras. Tudo isso contribuiu para um cenário em que a democracia parece mais uma forma institucional do que um processo vivo de deliberação e representação.
O Panamá enfrenta uma encruzilhada histórica hoje. A tensão entre o transitismo econômico, a pressão geopolítica e as demandas sociais internas se mostraram insustentáveis. Os protestos de 2025 não são um episódio isolado, mas a expressão acumulada de um modelo que priorizou o crescimento macroeconômico em detrimento da equidade, da justiça ambiental e da soberania democrática.
Diante desse cenário, a questão fundamental não é somente sobre como as crises são geranciadas, mas que projeto de país se quer construir. Um enclave logístico a serviço do capital global ou uma nação que garanta direitos à sua população? Um canal vigiado por potências externas ou um território governado pela soberania popular? Um democracia de fachada ou uma democracia participativa.
As respostas não são definitivas. O que parece evidente é que amplos setores da sociedade panamenha já nao estão dispostos a aceitar passivamente um rumo definido pelas elites. As ruas voltaram a ser um espaço legítimo de disputa. Embora o desfecho siga em aberto, o que está em jogo não é pouca coisa: o próprio sentido da democracia, da justiça e da dignidade no país.
Traduzido de Panamá: el largo camino del malestar a la protesta, por Paulo Duque, do Esquerda Online.
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