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COLUNISTAS

A pandemia da Gripe de 1918

Por Henrique Carneiro
Wikimedia Commons

Hospital militar de emergência em Camp Fuston, Kansas, EUA, durante a pandemia da Gripe de 1918.

A pandemia de gripe Influenza H1N1 durou cerca de dois anos, entre 1918 e 1920, e foi a mais mortífera da história humana. A peste negra, de 1348, matou proporcionalmente mais gente. Mas, em números brutos, a maior letalidade foi entre esses dois anos, com um total de mortes de cerca de 50 a 100 milhões de pessoas, sendo que metade delas faleceu entre setembro e dezembro de 1918.

As causas e consequências da pandemia e as atitudes dos governos daquela época trazem paralelos inevitáveis com a situação atual.

A primeira evidência notável de semelhança é a atitude negacionista dos governos. Sob o pretexto de não causar alarme nem pânico, o que ocorreu em 1918 foi um escamoteamento do problema, uma tentativa de impedir sua divulgação, inclusive com censura.

Em 2020, novamente, os governos dos EUA, do Reino Unido e, especialmente, do Brasil se dedicaram a minimizar a pandemia, comparando-a com um simples resfriado.

Este artigo resenha, em grande parte, um dos livros de maior êxito em escrever a história da pandemia de 1918, The Great Influenza. The Story of the Deadliest Pandemic in History, de John M. Barry (New York: Penguin Books, 2004).

Nessa obra, Barry afirmou que “o mais difícil será conseguir que o governo diga a verdade sobre a doença. Esta é a maior lição de 1918, e é uma lição não aprendida”[1].

O maior risco não é o do excesso de preocupações, mas, ao contrário, a minimização e omissão da gravidade do problema: “a mídia e os responsáveis públicos ajudam a criar o terror não pelo exagero, mas minimizando a doença em suas tentativas de assegurar o público”[2].

A única forma das autoridades manterem a confiança do povo e poderem orientar corretamente nas melhores formas de se combater uma pandemia é dizer a verdade, mesmo que ela seja dura e aterrorizadora: “as autoridades devem manter a confiança pública. A maneira de fazer isso é não distorcer nada, não embelezar nada, não tentar manipular ninguém (…) um líder deve tornar concreto todo o horror existente. Somente assim o povo terá a capacidade de vencê-lo”[3].

Talvez o horror da pior pandemia da história tenha ajudado a obliterar o seu registro histórico, pouco enfatizado para as gerações seguintes. Ainda mais, diante da vergonhosa atitude dos governos, especialmente dos EUA, que insistiram em que “não havia razão para alarme”, “não passava de uma velha e conhecida gripe”, “o medo mata mais do que a doença”. O lema de “não fique apavorado” (Don’t Get Scared) era estampado pela imprensa e levantado como principal slogan do governo.

O presidente dos EUA no período, Woodrow Wilson, apesar de ter contraído a gripe em 1919 nas negociações do tratado de paz de Versalhes, nunca emitiu nenhuma declaração pública oficial sobre a pandemia.

As origens

A pandemia de 1918 é um resultado direto da Primeira Guerra Mundial. Não simplesmente porque as condições de miséria e destruição causadas pelo conflito tivessem ajudado a sua disseminação, mas porque foram as condições das inéditas concentrações humanas provocadas pela guerra que criaram o meio de contágio ideal para a doença.

Os EUA entraram na guerra tardiamente, apenas em 1917, e tiveram que preparar um exército de milhões de soldados de um momento para o outro. Os acampamentos militares que reuniam os recrutas e os treinavam foram o vetor mais importante da propagação inicial da epidemia, que apesar do nome de “gripe espanhola” surgiu, na verdade, nos EUA.

Como escreveu Barrry, “nunca antes na história americana, e possivelmente na história de qualquer país, houve tantos homens mantidos juntos dessa maneira”[4].

Diante dessas massas humanas concentradas, a ação do governo e das autoridades militares foi o de ocultar a gravidade e manter os envios de tropas para a Europa, mesmo a guerra já estando no fim.

Quando começou a se espalhar pela população civil das cidades, a guerra novamente impôs sua prioridade. Em Filadélfia, uma cidade que se tornou um foco de contágio e mortes, houve uma enorme parada de apoio aos bônus civis, em 28 de setembro, para o esforço de guerra. A Liberty Loan Parade era anunciada como a maior manifestação da história dessa cidade e, assim, foi mantida. Alguns dias depois, os hospitais já estavam lotados e os cadáveres começaram a se acumular.

O prefeito de Filadélfia, Philip Doane, preferiu culpar “agentes alemães” que teriam, a partir de submarinos, espalhado a doença nos Estados Unidos.

Os maiores assassinos nas guerras sempre foram doenças, muito mais do que os combates. No caso da Primeira Guerra Mundial, foi a situação criada pela guerra que facilitou e intensificou a difusão da pandemia para toda a população.

A pandemia e a Primeira Guerra Mundial

O mundo parecia estar doente de várias maneiras naquele momento. Primeiro, pela insanidade da guerra, a mais mortífera até então conhecida na Europa. Quando o presidente estadunidense Woodrow Wilson embarcou para a França, onde permaneceu por quatro meses participando das negociações para o tratado de paz que deveria encerrar a guerra, havia ainda uma esperança de que seus princípios enunciados para a criação de uma Liga das Nações, como o respeito à democracia e a autonomia e autodeterminação nacionais pudessem permitir a reconstrução de um mundo melhor no pós-guerra.

Mas, durante as tratativas, que incluíam os três grandes – Wilson, pelos EUA; Lloyd George, pelo Reino Unido; e Georges Clemenceau, pela França – as concessões feitas por Wilson às propostas francesas que humilhavam a Alemanha derrotada acabaram por decepcionar as expectativas de uma reconciliação tolerante e deixaram as sementes da próxima crise e do novo conflito.

Keynes, que participara da delegação britânica, disse que Wilson era “a maior fraude na terra” e que “nunca na vida da atual geração o elemento universal na alma humana ardeu de maneira tão fraca”[5].

Apesar de ocultar a pandemia do publico estadunidense, o presidente Wilson foi vitimado por ela, o que o deve ter contribuído para que, quatro meses depois, ele viesse a sofrer também um AVC que o deixou ainda mais debilitado, até sua morte alguns anos depois, em 1924.

Os remédios

O agente patogênico da pandemia de 1918 não era conhecido e foi erroneamente identificado como um bacilo, ou seja, uma bactéria, Bacillus influenzae, contra o qual se realizou um enorme esforço inútil de fabricação de soros sem nenhuma efetividade. Foi apenas em 1931 que o agente causador foi corretamente identificado por Richard Shope como um vírus, após sua identificação também em porcos.

Não havia, assim, nenhuma terapia específica contra a gripe, restando apenas os tratamentos paliativos e contra as complicações pneumônicas. O tratamento padrão, segundo o manual de Osler, era: aspirina, ficar de cama, gargarejos e ópio (Dover’s powder). No caso de complicações pulmonares, se usava digitalis, cafeína e estricninca como estimulantes cardíacos e para todo o corpo.

O padrão britânico de tratamento, publicado no The Lancet, era brometo de potássio, opiáceos e oxigênio.

O desespero da situação, entretanto, levou a serem retomados os métodos já superados da medicina catártica do passado, com uso de sangrias e, ainda pior, inúmeros meios fraudulentos de curandeirismo.

O uso da aspirina se tornou um remédio muitas vezes pior do que a doença. A crença numa eficiência quase milagrosa desse fármaco levou ao seu uso desmedido, em dosagens que iam de 8 a 30 gramas diárias, levando a muitos casos de intoxicação fatal, que foram estudados apenas décadas mais tarde[6].

Os opiáceos, como o próprio ópio em pó ou líquido ou seus alcaloides como a morfina, a codeína e a heroína, tinham efeitos benéficos tanto no apaziguamento da tosse como na melhora da dor e do mal-estar.

Os resultados

Após o impacto da pandemia, muitas cidades nos EUA começaram a tomar medidas desesperadoras.

O uso de máscaras faciais, que havia sido introduzido pelo enfermeiro Joseph Capps, com um artigo publicado no JAMA em 10 de agosto de 1918, passou a se tornar obrigatório em muitos lugares. Em Nova Iorque, tossir ou espirrar sem cobrir a face podia ser punido com um ano de prisão. Em Prescott, Arizona, se tornou ilegal apertar as mãos em cumprimento. Na capital do Arizona, Phoenix, a suspeita de que os cães transmitiam a enfermidade levou à matança de quase todos os animais na cidade.

O número de vítimas foi em torno de 675 mil mortos nos EUA nos dois anos da epidemia. No México foi muito pior, com a morte de 2,3% de toda a população, sendo que em Chiapas essa cifra chegou a 10%. Na Índia, houve ao menos 20 milhões de mortos. No Irã, morreu 7% da população. Em áreas indígenas da América do Norte ou da Oceania, a devastação foi ainda pior. Morreu um terço dos habitantes do Labrador e 20% em Samoa.

Dos países europeus, a Itália foi o que mais sofreu, com cerca de 1% da população tendo falecido. O Brasil foi atingido com relativa suavidade, pois morreram apenas 35 mil pessoas, entre as quais o presidente eleito da República, Rodrigues Alves.

O total de entre 50 e 100 milhões de vítimas fatais já havia sido proposto por MacFarlane Burnet em 1940, o que representaria uma mortalidade de ao redor de 5% da humanidade na época, quando havia 1.8 bilhões de habitantes no mundo. Ou seja, bem mais do que os 20 milhões de mortos, metade civis, ao longo dos quatro anos da primeira grande guerra.

Os vírus do tipo Influenza ou Coronavírus coexistem com a humanidade há milênios. Sua existência em animais, como aves ou porcos, faz com que a sua ameaça seja sempre presente, pois os tipos mais brandos e conhecidos podem ser superados por novos vírus ou novas mutações que venham a provocar novas pandemias.

As ciências médicas não conseguiram até hoje tratamentos específicos efetivamente eficientes e as vacinas precisam ser adaptadas a cada nova cepa ameaçadora. As condições sociais e sanitárias de insalubridade, de grandes concentrações humanas ou de conflitos bélicos facilitam a ação desses micro-organismos e podem permitir que eles venham a sair dos nichos em que se originaram.

Por isso, em 1997, a irrupção do H5N1, em Hong Kong, levou a que 1,2 milhões de aves para alimentação humana fossem sacrificadas. Alguns anos depois, em 2003, outra cepa virótica, a H7N7, que surgiu nos Países Baixos e Alemanha, levou a que fossem mortas mais 30 milhões de galinhas.

Desde o surgimento, com Pasteur, em 1860, da teoria dos germes como causadores das doenças infecciosas, a a ciência vem conseguindo combater alguns dos piores inimigos da humanidade como a varíola, a peste bubônica, a cólera, o sarampo, a febre tifoide, a febre amarela. Foram criadas vacinas e remédios para essas doenças graves e mortíferas. Mas, para as gripes, apesar de haverem vacinas, continua a não existir um remédio específico.

Hoje em dia, entretanto, globalmente a gripe comum já é a doença transmissível que mais mata e, quando surgem formas especialmente letais como o H1N1, essa taxa pode se multiplicar muito.

O movimento de saúde pública, que surgiu em grande parte no combate às doenças transmissíveis, estabeleceu princípios humanitários e deontológicos de atendimento médico universal que foram corroídos pela onda privatista neoliberal do final do século XX. A manutenção destes princípios e destes sistemas públicos, como o SUS brasileiro ou o NHS britânico, é o pressuposto fundamental para poder se enfrentar as ameaças pandêmicas do futuro.

As pandemias são inimigos naturais da humanidade, mas é a forma pela qual os governos decidem gerir estas crises que leva às maiores catástrofes. A de 1918 deveria ter nos deixado lições. Mas, infelizmente, parece que foram pouco aprendidas.

Notas

[1] “more difficult, will be getting governments to tell the truth about the disease. This is the biggest lesson of 1918, and it is a lesson not yet learned”, John M. Barry, op. cit., p.459.

[2] “The media and public officials helped create that terror – not by exaggerating the disease but by minimizing it, in their attempts to reassure the public”. Idem, p.462.

[3] “Those in authority must retain the public’s trust. The way to do that is no distort nothing, to put the best face on nothing, to try to manipulate no one (…) A leader must make whatever horror exists concrete. Only then will people be able to break it apart”. Idem, p.462.

[4] “Never before in American history – and possiblyin any coutry’s history – had so many men been together in such a way”, op. cit., p. 145.

[5] “Never in the lifetime of men now living has the universal element in the soul of man burnt so dimly”, Apud Barry, op. cit., p.388.

[6] R.M. Starko. “Salicylates and pandemic influenza mortality, 1918-1919 pharmacology, pathology, and historic evidence”, Clin Infect Dis. 2009 Nov 1;49(9):1405-10. doi: 10.1086/606060.