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Antirracismo e luta de classes: uma perspectiva marxista


Publicado em: 7 de julho de 2025

Negras e Negros

Gabriel Rocha, da Coordenação do Seminário Antirracismo e Luta de Classes

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Gabriel Rocha, da Coordenação do Seminário Antirracismo e Luta de Classes

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Nos dias 16, 17 e 18 de maio de 2025, militantes da Resistência e da Insurgência, correntes internas do PSOL, participaram do Seminário Antirracismo e Luta de Classes que ocorreu na Escola Nacional Paulo Freire, na Capital do Estado de São Paulo. O evento teve entre os objetivos principais: fomentar o debate teórico e político sobre a questão racial na luta de classes, contribuir na construção do campo marxista que atua no movimento negro, e favorecer a reflexão e a ação antirracistas nos diversos setores em que se localiza a militância de esquerda, tais como o próprio partido, coletivos, movimentos, sindicatos, associações etc. O seminário teve caráter formativo, na medida em que buscou contribuir com a formação teórica e política de nossa militância em torno da questão racial. Contudo, essa formação trouxe consigo a intenção programática de construir uma visão comum sobre o problema do racismo, a qual se desdobre em práticas antirracistas alinhadas às lutas da classe trabalhadora e dos diversos grupos oprimidos em nossa sociedade.

O Seminário surgiu de uma proposta da militância negra da Resistência, aprovada no II Congresso da corrente em dezembro de 2023. No ano seguinte, 2024, formamos a Equipe de Coordenação que organizou os temas, bibliografia, metodologia, cronograma de atividades, escolha de convidados, contatos etc. Estabelecemos 3 eixos temáticos que orientaram nossos estudos: 1) Formação social brasileira: da escravidão ao capitalismo dependente; 2) Mulher, raça e classe: do movimento de Mulheres Negras ao feminismo Negro; 3) O protesto negro: estratégias para a revolução brasileira.

O processo de formação ocorreu em duas etapas. A primeira consistiu em uma fase preparatória, uma etapa de estudos na qual realizamos 7 encontros virtuais e discutimos temas relacionados a cada eixo do Seminário. Para cada encontro sugerimos a leitura prévia de textos selecionados de autores como Karl Marx, Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Cristiane Sabino, Dennis de Oliveira, Asad Haider e outros. A segunda etapa consistiu no encontro presencial, com mesas de debates, para o qual convidamos intelectuais e militantes de outras organizações, ativistas que são referências na luta antirracista, seja na atividade política, na produção de conhecimento ou em ambas as esferas.

Nesta etapa presencial, no dia 16 de maio, na atividade de abertura e saudações contamos com a presença de Gerson Oliveira (MST), Lilian Fernanda (Primavera Socialista), Joselicio Júnior (Editora Dandara e Ação Negra), Renato Freita (Dep. Estadual, PT/PR), Maurício Costa (Periferia é o Centro), Regina Lúcia (MNU), Dayanna Louise (Insurgência), Nathalia Santana (Bancada Feminista-PSOL/SP) e Regina Lucia (MNU). A atividade também contou com a intervenção cultural de MCs do coletivo Batalha da Matrix. Ainda no dia 16 de junho, na mesa 1, sobre Formação Social Brasileira, participaram Cristiane Sabino (IELA/UFSC), Marcio Farias (PUC/SP), Well Leal (PSOL/RR) e Lucas Brito (UNB).

Na manhã do dia 17 de maio tivemos a mesa 2, Do movimento de mulheres negras ao feminismo negro, as participações de Rhaysa Ruas (Fórum Popular de Segurança Pública/RJ), Winnie Bueno (Ialorixá, feminista negra) e Luciana Araújo (Marcha das Mulheres Negras/SP e MNU). À tarde, tivemos a mesa 3, Protesto negro: resistências do século XXI, da qual participaram Deivison Faustino (USP), Felipe Choco (Pesquisador e ativista), Flávia Rios (USP), Sandra Vaz (UFF). À noite, tivemos uma roda de conversa com Regina Lucia e Milton Barbosa, ambos do MNU.

A última mesa ocorreu no domingo de manhã, 18 de junho, com o tema Protesto negro: estratégia para a revolução brasileira, na qual contamos com a participação de Matheus Gomes (Dep. Estadual, PSOL/RS), Fabio Nogueira (UNEB), Orlando Silva (Dep. Federal, PT/SP) e Simone Nascimento (Codep. Estadual Bancada Feminista, PSOL/SP). Encerramos o evento com uma atividade cultural do grupo de Jongo Nzungu.

Tanto na escolha da bibliografia, quanto na de convidados, priorizamos autores e ativistas que debatem a questão racial do ponto de vista marxista, ou que tenham afinidades com o marxismo. Entendemos que o racismo – como todo fenômeno humano – é síntese de múltiplas determinações (econômicas, sociais, políticas, culturais), é um problema histórico cuja compreensão, e a busca por soluções, nos remetem à uma teoria e uma práxis que considere a totalidade social. O materialismo histórico é o método que nos auxilia em nossa busca de interpretação e superação do racismo, na medida em que também lutamos por uma sociedade justa e igualitária.

Iniciamos a fase de estudos no primeiro semestre de 2024, a princípio com o objetivo de realizarmos o encontro presencial em junho do mesmo ano. Porém, a calamidade das enchentes no Rio Grande do Sul entre abril e maio nos impôs a urgência de prorrogarmos o encontro presencial para 2025 e, na ocasião, voltarmos parte de nossos esforços na ajuda humanitária para o povo gaúcho, somando forças com nossa militância naquele Estado. A retomada do Seminário neste ano contou com a colaboração da Insurgência que desde então se somou na construção das atividades presenciais que ocorreram na ENPF. Finalmente, concretizamos esse importante projeto cujo embrião surgiu em 2023, no II Congresso da Resistência. Reiteramos nosso obejtivo em colaborar com a luta antirracista no campo marxista, para tanto, consideramos importante compreender a relação entre racismo e capitalismo.

A luta antirracista na “batalha das ideias”

No contexto atual, na “batalha das ideias”, travamos o debate tanto com “neofreyrianos”1 que consideram “identitário” tudo o que não é “branco, masculino e heterossexual”, quanto com “antirracistas neoliberais” que vêem o marxismo como “ideologia eurocêntrica” e reduzem o debate antirracista à noções de “representatividade” e “lugar de fala”. Por um lado, há “neofreyrianos” na esquerda (e na direita) que – por ignorância ou desonestidade – acusam todo o movimento negro de ser “identitário”; geralmente o fazem tomando como exemplo discursos de “influenciadores” alinhados ao que chamamos de “antirracismo neoliberal”. Por outro lado, “antirracistas neoliberais” respaldam sua acusação de que o “marxismo é eurocêntrico”, ou que a “esquerda é racista”, tomando como exemplo o desapreço dos “neofreyrianos de esquerda” pela luta antirracista. Ambas posições se orientam por uma visão que separa o problema do racismo da luta de classes. Se orientam por noções abstratas e essencialistas tanto de “raça” como de “classes”.

Enquanto marxistas, entendemos que tomar a ideia de raça sem considerar sua historicidade, seu papel na divisão social do trabalho, e consequentemente na estratificação social, é reduzir o racismo à sua dimensão simbólica e subjetiva, e perder de vista sua concretude, sua materialidade, ou mesmo sua razão de existência, suas implicações econômicas e sociais no funcionamento do capitalismo. Do mesmo modo, ignorar o racismo como um fator que opera na própria formação e no interior das classes, ou reduzi-lo a uma pauta menor, é perder a dimensão concreta da categoria de classe, tornando-a abstrata e vazia. É negar a história e reduzir a luta de classes a um jargão.

A falsa dicotomia entre raça e classe gera debates desgastantes, insolúveis, muitas vezes, absurdos. Em outras palavras: mais confunde do que explica a realidade, e impõe-se como um obstáculo nas lutas sociais da classe trabalhadora. Combater todas as formas de opressão que conformam a formação e a dinâmica do capitalismo – dentre as quais as opressões racial e de gênero – é um dever de todos que lutam por uma sociedade igualitária, e pela emancipação humana2.

Para nós, a análise da questão racial amplia o entendimento da luta de classes em sua concretude, e torna mais coerente a caracterização do marxismo como ciência da totalidade, conceito este fundamental no pensamento de Marx, como ressaltou Lukács: “Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue decisivamente o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade”; e “a primazia da categoria da totalidade é portadora do princípio revolucionário da ciência”3. Ao considerarmos o papel da raça – assim como, do gênero e da sexualidade – nas relações sociais capitalistas, entendemos a classe para além de um conceito abstrato e vazio, mas como uma categoria dinâmica que contém frações e contradições em seu interior. O capitalismo não pode ser apreendido em sua totalidade sem levar em conta o racismo como uma de suas dimensões, seja na relação entre as diferentes nações no âmbito internacional, seja na dinâmica interna das diferentes sociedades, sobretudo em países “racialmente” complexos como o Brasil.

A dimensão estrutural do racismo no capitalismo

Entendemos que a luta antirracista deve estar entre as pautas centrais e decisivas de um projeto socialista. O racismo está no DNA do capitalismo, desde a chamada acumulação primitiva que teve entre seus alicerces a escravização em massa de africanos e indígenas, através da qual enriqueciam as classes dominantes europeias e seus congêneres nas colônias. Ainda que formas de preconceito e discriminação entre povos existam desde tempos mais remotos da História, o colonialismo e o escravismo colonial (a partir do século XVI), erigiram um sistema de dominação e superexploração da força de trabalho baseado na racialização em dimensões nunca antes conhecidas na humanidade. A exploração racializada da força de trabalho, através da escravidão e outras formas de servidão, nas antigas colônias no continente americano promoveram a acumulação de capitais nas metrópoles europeias. A Revolução Industrial na Inglaterra que impulsionou a mundialização do capitalismo é fruto de séculos de colonialismo, escravidão e racismo4.

Na etapa imperialista e neocolonial do capitalismo nos séculos XIX e XX os Estados europeus, através de seus agentes coloniais, também tiveram na violência e no racismo suas principais técnicas de extração de valor de populações colonizadas. A rapina de recursos dos territórios dominados na África e na Ásia, se utilizou da superexploração da força de trabalho das populações locais, reguladas por legislações que conferiam status inferior às populações locais, e pelo uso da violência.

No Brasil as classes dominantes têm seu ancestral sociológico no proprietário de escravizados, e fazem jus ao legado colonial e racista de seus antepassados. Como “sócios menores” do grande capital internacional, identificam seus interesses com as burguesias europeias e estadunidense, e mantém enorme desprezo pelo povo. Mais do que identificação com os interesses econômicos, buscam a imagem e semelhança das classes dominantes dos países do Norte-Global: no Brasil é comum que pessoas de estratos sociais privilegiados ressaltem com orgulho e algum sentimento de superioridade – nem sempre disfarçado – a ascendência europeia diante de um povo majoritariamente “não branco”. Comportamento frequentemente imitado por setores médios que projetam seus ideais nos valores das classes dominantes.

Ao modo dos antigos colonos portugueses, as classes dominantes de hoje operam com um“capitalismo extrativista”. Continuam vendo o Brasil não como uma sociedade, mas um negócio, uma grande fazenda, ou zona de mineração a ser explorada. São incapazes de ter qualquer empatia com a população (56% preta e parda), não os vêem como seres humanos, apenas fonte de trabalho vivo e extração de valor. E o racismo orienta essa extração de valor em nível de superexploração5, sobretudo, quando se trata de trabalhadores racializados, os quais compõem majoritariamente os setores mais precarizados na esfera da produção, e têm menos chances de mobilidade social ascendente. A renda de trabalhadores negros também tende a ser menor do que a de trabalhadores brancos com o mesmo nível de qualificação, segundo relatório do IBGE de 20226. O racismo orienta o extrativismo da burguesia e organiza as desigualdades sociais no Brasil. Esse caráter racista e extrativista da burguesia brasileira faz com que nosso país seja o único entre as 10 maiores economias do mundo (no ranking do FMI) que está também na lista dos 10 países mais desiguais segundo o coeficiente Gini7.

Portanto, combater o racismo radicalmente (ou seja, desde às raízes) implica em lutar contra o capitalismo, e travar essa luta em todas as frentes possíveis. Inclusive na luta por direitos na luta da classe trabalhadora e de setores oprimidos da sociedade. A luta por direitos é tática, a superação do capitalismo é estratégia. Uma não exclui a outra. As políticas de ações afirmativas, que buscam reduzir as desigualdades entre brancos, negros e indígenas nas universidades e serviços públicos, são uma conquista importante do movimento negro que deve ser defendidas por nós. Do mesmo modo que nossa luta passa pela defesa do SUS, da educação pública de qualidade em todos os níveis, de políticas que visem o pleno emprego, de uma previdência social digna, do aumento real de salários, da taxação de grandes fortunas, da reforma agrária, de políticas sociais para a habitação, pelo direito à cidade etc. Tais políticas e direitos impactam diretamente as populações racializadas, majoritariamente na classe trabalhadora.

Neste sentido, a luta antirracista converge com a luta pelo fim da escala 6×1, pela taxação de quem ganha mais de R$ 50 mil por mês e pela isenção de impostos para quem ganha até R$ 5 mil. Contudo, mais do que conquistar direitos, lutar contra o racismo é decisivo no processo de emancipação humana.

1 Referência a Gilberto Freyre, cujo livro mais citado talvez seja Casa Grande & Senzala. O conceito de “antagonismos em equilíbrio” que orienta sua obra desde os anos 1930, foi fundamental na formulação do que posteriormente veio a ser denunciado pelo movimento negro como “mito da democracia racial”. No entanto, o termo “democracia racial”, propriamente, não aparece nos principais textos de Freyre. Ver: GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Classes, raças e democracia (2012).
2 Discutimos esse tema em outro artigo, Raça e classe: a falsa dicotomia e as “assim chamadas pautas identitárias”. Disponível em: https://contrapoder.net/artigo/raca-e-classe-a-falsa-dicotomia-e-as-assim-chamadas-pautas-identitarias/. Acesso em: 19 jun. 2025.
3 LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: estudos sobre a dialética marxista. 2ª ed.. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p.21.
4 Ver: Clóvis Moura, Rebeliões da Senzala (Capítulo 1); Eric Williams, Capitalismo e Escravidão; Karl Marx, O Capital (Capítulo 24).
5 Sobre a relação entre capitalismo dependente, superexploração e racismo, ver: SOUZA, Cristiane Sabino L. Racismo e luta de classes na América Latina (2020).
6 IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, 2022. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101972 Acesso em: 19 jun. 2025.
7 Essa observação é feita por Helio Santos no prefácio do livro A sociedade desigual (2022), de Mário Theodoro. Sobre o Brasil no ranking das 10 maiores economias ver: https://www.terra.com.br/economia/brasil-cai-para-10-maior-economia-do-mundo-em-ranking-do-fmi-veja-lista,cb04bbdbf279c0b24d728b2fced0fd15m77zidhy.html. Sobre o Brasil entre os 10 países mais desiguais ver: https://www.estadao.com.br/internacional/quais-sao-os-paises-com-maior-desigualdade-social-do-mundo-qual-a-posicao-do-brasil-no-ranking-nprei/?srsltid=AfmBOooIXUfQkTuvIxmqahI_5Q7eDPFbuDB8j8KZI6LeNzprekX13mv7. Acesso de ambos em 19 jun. 2025.


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