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Resistência diária na Cisjordânia. Um relato exclusivo do campo de Dheisheh

Stathis Kouvelakis realizou uma entrevista com C.P., habitante do campo de Dheisheh, campo de refugiados palestinos localizado ao sul de Belém (Cisjordânia). Trata-se de um relato da difícil vida cotidiana que passam as comunidades palestinas que resistem à ocupação, à repressão e à precariedade, mantendo a esperança e a luta pela liberdade


Publicado em: 30 de junho de 2025

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Stathis Kouvelakis, do Portal Contretemps

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Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O horror da ofensiva genocida em Gaza muitas vezes nos faz esquecer que um jogo igualmente decisivo está acontecendo atualmente na Cisjordânia. O exército Israelense, flanqueado por colonos superarmados e fanáticos, continua implacavelmente os ataques, cujo objetivo declarado é a limpeza étnica desse território para “construir um Estado judeu israelense sobre o terreno”, segundo declarou o Ministro da Defesa de Israel em 30 de maio [1]. Portanto, é essencial ouvir as vozes daqueles que vivem esta outra guerra diariamente e demonstram uma determinação inabalávia diante do ocupante sionista. Tivemos a oportunidade de conhecer e conversar com um deles, C.P., um ativista do campo de Dheisheh.

Em primeiro lugar, algumas palavras sobre a história desse lugar. O campo de Dheisheh está ao sul da Cisjordânia, próximo de Belém. Foi criado em 1949 para abrigar temporariamente famílias palestinas expulsas durante a Nakba de 45 aldeias a oeste de Jerusalém e Hebrom. Inicialmente previsto para acolher 3.000 pessoas refugiadas, agora conta com cerca de 18.000 residentes. A superlotação e a má qualidade das moradias construídas pela UNRWA [Agência das Nações Unidas para Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo] a partir do final da década de 1950 para substituir as tendas de campanha que inicialmente abrigavam as famílias, explicam o duplo movimento que confere a Dheisheh sua atual configuração: a construção de moradias pelos próprios residentes e a saída do campo por famílias que não podem pagar por elas e que se instalam em seus arredores.

Sob o controle da Jordânia durante sua criação, Dheisheh está sob a ocupação israelense desde 1967. Entre 1967 e 1995, quando passou a estar sob a jurisdição da Autoridade Palestina (AP), o campo ficou sob toque de recolher em média 3,5 dias por mês, até por 84 dias consecutivos em um certo momento. Importante centro da resistência popular, fortaleza da esquerda palestina, Dheisheh se levanta massivamente durante as Intifadas [2] e enfrenta uma feroz repressão israelense, que continua até hoje.

Nesta entrevista, C.P. nos dá seu testemunho sobre a vida diária que os e as residentes do campo enfrentam, uma vida diária que se converteu em um verdadeiro calvário desde 7 de outubro de 2023. Também nos fala da evolução da situação política no território formalmente controlado pela AP e no movimento nacional palestino, bem como sobre são percebidos pela população do campo e, de modo mais geral, da Cisjordânia. C.P. decidiu preservar seu anonimato pelos motivos que são óbvios ao ler esta entrevista: uma palavra livre e independente, a fortiori de esquerda, é impossível de manter-se de modo aberto em um território sujeito ao duplo controle do ocupante sionista e de uma Autoridade Palestina mais inclinada a colaborar com ela do que apoiar a luta pela libertação do povo que supostamente representa.

Stathis Kouvelakis – Para começar, falemos da história de Dheisheh e do que representa para a luta do povo palestino
C.P. – Deisheh é o terceiro maior campo de refugiados da Cisjordânia. Sua população é de mais de 18.000 pessoas e se encontra na região de Beit Laham, próxima de Belém, na parte sul da Cisjordânia. Dheisheh é conhecido por ser um campo em que os partidos de esquerda mantém uma forte presença, ainda que outras forças também estejam ativas. Tem sido um bastião da resistência popular desde a década de 1980 e da primeira Intifada, mas já estava ativo mesmo antes disso. É um lugar que tem muitas pessoas com alto grau de formação e que compartilham de uma forma de pensar revolucionária. Por isso, sempre foi um objetivo para o exército israelense.

Completar a limpeza étnica da Cisjordânia
Stathis Kouvelakis – Quais formas a escalada da repressão exercida pelos israelitas desde 7 de outubro assume?
C.P. – Após 7 de outubro, os israelenses invadiram Dheisheh em diversas ocasiões. Por vezes, nos atacam uma vez por semana; por vezes, duas ou três vezes por semana. Quase 800 pessoas do acampamento foram encarceradas no último período, mas nem todas ao mesmo tempo. São presas em grupos de 10 a 20, detidas, logo liberadas e detidas novamente com outras pessoas. Também temos 21 pessoas condenadas à cadeia perpétua. Estão na prisão há 25 anos, desde a Segunda Intifada. Quatro ou cinco delas foram liberadas recentemente graças ao intercâmbio de prisioneiros entre o Hamas e os israelenses.

Dizemos a nossos filhos e filhas que não devem atirar pedras nos jeeps israelenses porque não é efetivo. Mas quando os israelenses entram no acampamento, começam a gritar insultos em voz alta. Provocam os jovens, os animam a atirar pedras porque seu objetivo é matar a maior quantidade possível. Até agora, quatro de nossos filhos foram assassinados a tiros dentro do acampamento. Um deles, muito jovem, foi detido e assassinado na prisão. Os soldados atacam às casas, destroem os móveis e tudo o que tem dentro. Não tem um horário certo para seus ataques. Às vezes, chegam às 2 da madrugada, pela noite, às 10 da manhã ou pela tarde. Às vezes, permanecem desde a manhã até à noite e colocam seus franco-atiradores por toda parte. São muito numerosos quando entram no acampamento e é realmente aterrorizante para as crianças, para os jovens, para as mulheres.

Antes de 7 de outubro, os israelenses respeitavam certas regras, digamos ponto hoje em dia, já não há mais regras. Antes, não se atreviam a atacar uma mulher idosa, agora o fazem com total impunidade. O comportamento dos soldados se tornou ainda mais radical. Os colonos também nos atacam. Cercam um acampamento e atacam o único espaço de lazer que temos. Se trata da área Suleiman, equipada com uma piscina. Levamos nossos filhos ali para tomarem ar e jogar. Agora já não podemos ir porque é atacada pelos colonos todos os dias, sob a proteção do exército israelense. Dizem que o lugar já não é para os palestinos, que é uma área para os colonos.

Também observamos que, devido à falta de soldados israelenses desde o início da guerra contra Gaza, os que se unem ao exército hoje não têm recebido um verdadeiro treinamento militar. São principalmente colonos. Às vezes, se pode observar em seu uniforme que não são soldados israelenses normais. Colocamos câmeras por todos os lugares para podermos acompanhar suas conversas. Negociam entre eles, dizem “segue-me, não faça isso, faça o que te digo” etc. Têm medo porque não são treinados, o que os torna ainda mais perigosos. Um soldado normal sabe como reagir quando é pego de surpresa. Mas esses não sabem, abrindo fogo diretamente. Isso se tornou agora a norma na Cisjordânia, especialmente na parte norte.

Stathis Kouvelakis – Os objetivos dos israelenses na Cisjordânia no período atual?
C.P. – Seu principal objetivo sempre foi conhecido. Querem esvaziar a Cisjordânia palestinos e palestinas. Mas como podem fazer isso, essa é a questão. Antes, falavam de uma “transferência tranquila” e tornam nossa vida cada vez mais difícil. Mas agora passaram de um cenário de “transferência tranquila” a um cenário de “transferência dura”, com os colonos na Linha de Frente. Na Cisjordânia, Especialmente no norte, os colonos fazem coisas terríveis. Matam pessoas, atacam o gado, se apoderam da terra, destroem plantações, queimam carros. Inclusive nos arredores de nosso acampamento, em Nahalin, um povo próximo de Belém, deteram um carro com sete pessoas dentro. Jogaram gasolina e o queimaram, com as pessoas dentro. Quatro passageiros morreram, os demais tiveram queimaduras graves. Em Jenin, Tulkarem e outros lugares, centenas de casas foram destruídas pelo exército. Em alguns lugares próximos de Belém, como Beit Jala e Beit Sahur, onde vivem nossos irmãos e irmãs cristãos palestinos, formando a maioria dos habitantes, os israelenses mobilizam a polícia para fazer com que a ocupação pareça normal e menos violenta aos olhos da população.

Também temos mais de 750.000 palestinos na Cisjordânia que possuem um documento de identidade jordaniano. São da Palestina, mas seus pais ou avós se converteram em refugiados na Jordânia e conseguiram um “cartão amarelo” [jordaniano]. Antes de 1967, toda a Cisjordânia estava sob o controle jordaniano. Hoje, os israelenses dizem a essas pessoas e a todos os que têm dupla nacionalidade para irem embora. tudo isso é parte do plano para transferir a população e completar a limpeza étnica da Palestina.

A vida quotidiana sob a ocupação
Stathis Kouvelakis – Falemos da vida quotidiana sob a ocupação israelense. Como as pessoas se organizam para tornar suas vidas sustentáveis?
C.P. – A resposta mais simples é dizer que é impossível fazer planos, seguir um horário, programar uma atividade. Em termos mais gerais, não se sabe o que vai acontecer na hora seguinte. É impossível ter uma vida social nessas condições. Outro exemplo: tenho família em Hebrom. Não pude vê-los desde o começo da guerra. Consegui ir para lá duas vezes, mas me arrependo porque fiquei preso no posto de controle das 22h às 8h da manhã do dia seguinte. Assim, não farei isso novamente.

Se tornou impossível ir trabalhar. O sistema educativo não funciona devido às constantes e incursões do exército. Não mando meus filhos à escola se souber que os israelenses entraram no campo. Às vezes, permanecem 10 ou 20 minutos e vão embora, mas é muito tarde e já decidimos não deixá-los ir à escola. Portanto, as pessoas não podem ter uma vida normal. Não se pode falar com os israelenses. Em qualquer país normal, o cidadão dispõe de uma forma de recurso legal. Mas em Israel, o agressor é o mesmo que o juiz. De qualquer modo, você não será escutado.

Stathis Kouvelakis – Qual é a situação econômica da Cisjordânia?
C.P. – A economia palestina está destruída, nossos principais recursos provêm da ajuda internacional. Todas as nossas exportações devem passar por Israel. Produzimos, por exemplo, verduras suficientes para nosso próprio consumo local, mas não podemos exportar o excedente porque levaria semanas para chegar no porto e os produtos apodreceriam. Portanto, com exceção de alguns produtos como as tâmaras e o azeite, que se conservam bem, não existem exportações.

A ajuda internacional chega pela Autoridade Palestina (AP), pelas organizações não governamentais ou pela UNRWA. Então, esses três setores distribuem uma parte ao setor privado, às sociedades e às empresas palestinas. Existe muito complô nesse nível, especialmente entre a AP e algumas empresas privadas. A AP também arrecada impostos sobre as importações. A princípio, os israelenses arrecadam as receitas desses impostos e entregam parte delas à Autoridade Palestina. Mas já faz alguns anos, inclusive antes de 7 de outubro, que isso não funciona. Os israelenses estão se retraindo. E a ajuda da UE, dos EUA e de outros países é obviamente insuficiente e, além disso, é alocada de acordo com critérios políticos. No final, não recebemos o dinheiro que devíamos receber.

É necessário acrescentar que uma das fontes de renda mais importantes provinha dos salários das e dos palestinos, algo em cerca dos 200.000, que trabalhavam no chamado Israel, a parte da Palestina ocupada desde 1948. Essa fonte de renda desapareceu desde 7 de outubro. Esses trabalhadores perderam seu emprego, exceto alguns em postos altamente qualificados que exigem uma demanda urgente, como as profissões médicas Mas isso é menos de 2% do total.

Stathis Kouvelakis – Quais são as consequências desse bloqueio econômico na satisfação das necessidades básicas, a começar pela alimentação?
C.P. – Os preços subiram muito. A principal explicação, Como já foi falado, é que não existem exportações, nem fontes de renda, exceto a ajuda estrangeira. E, como não podemos exportar e estamos privados de reservas de liquidez, também não podemos importar. Gostaria de poder comprar um pouco da carne que chegou aqui no supermercado para a Palestina. O que custa 13 euros em Paris, custa uns 45 euros na Palestina. A maior parte de nossa vida está nas mãos dos israelenses. Produzimos galinhas, por exemplo, mas dependemos de Israel para obter ovos, o que resulta em uma escassez permanente de ovos. Os israelenses também impõem muitos impostos em todos os produtos importados. O transporte também se tornou mais caro devido aos postos de controle. Antes de 7 de outubro, era possível encher um caminhão de verduras em Jenin e levá-lo a Belém, o que custava entre 200 e 300 euros. Agora, esse caminhão é detido diversas vezes e muitas vezes os produtos devem ser transferidos a outro caminhão. Isso tem um impacto nos preços e, com muita frequência, devido aos atrasos, os produtos estragam.

Há também o declínio da produção local. Jenin, por exemplo, é o principal lugar de produção de hortaliças da Cisjordânia. Mas, nos últimos três ou quatro meses, já não podem produzir nada porque o exército ocupa a cidade. As pessoas não podem ir aos campos ou para as estufas. Faz três meses que os tomados custavam 20 shekels [cerca de R$ 32,00], o que era muito barato, enquanto hoje custam 60 shekels [cerca de R$ 97,00], três vezes mais.

Stathis Kouvelakis – Qual o impacto da atual ofensiva israelense no sistema de saúde?
C.P. – Nosso sistema de saúde foi afetado, talvez nem tanto como em outros setores, mas existe uma escassez constante de medicamentos. Os medicamentos são importados de Israel, mas os israelitas retêm os estoques até a data de vencimento. Então, nos levam às clínicas da UNRWA, quando não podem mais ser utilizados. Nos campos de pessoas refugiadas, o sistema de saúde é gerenciado pela UNRWA. Desde que Israel a qualificou como “organização terrorista”, as pessoas mais afetadas são as refugiadas.

O papel da Autoridade Palestina
Stathis Kouvelakis – Passemos agora à dimensão política da situação. Como compreende o papel da AP e como evoluiu desde 7 de outubro?
C.P. – A posição da AP é parecida, digamos, com a da Tanzânia… Não tem posição, tem permanecido em silêncio. Condenaram o 7 de outubro porque dizem estar sob forte pressão em nível internacional e por parte de Israel. Falam dos massacres em Gaza, dizem que isso têm que parar, mas nunca fazem nada. A AP aparece como uma espécie de instituição neutra, que não defende concretamente as e os palestinos.
Hoje em dia, as negociações acontecem diretamente entre os estadunidenses e o Hamas. Hussain Al-Sheikh, o vice-presidente da AP, declarou que não se pode chegar a um acordo sem a aprovação da AP. Qual é seu objetivo? querem que as pessoas sigam sofrendo ou que a AP seja parte da solução? A AP pode fazer acordo de tempos em tempos para conseguir ajuda e negociar certas coisas com os israelenses, mas, em geral, seu papel é muito negativo.

Stathis Kouvelakis – Existe uma colaboração entre Israel e a AP para reprimir a resistência palestina?
C.P. – Sim. O ato mais recente de sua cooperação aconteceu há dois dias. Um palestino atacou colonos em Qalqilya. Ficou muito claro que o Shabak (os serviços de inteligência israelenses, também conhecidos como Shin Bet) estavam trabalhando em conjunto com os serviços de inteligência palestinos para encontrar os agressores e conseguiram detê-los. Sem o apoio dos serviços de segurança da AP, não poderiam ter feito isso tão rapidamente.
Ontem, Jibril Rajoub, um dos líderes da AP e do Fatah, também ex-chefe de segurança na Cisjordânia, viajou para Israel para cuidar de seu filho hospitalizado. A mídia israelense debateram longamente como conseguiram entrar em Israel sem que as autoridades políticas soubessem. A resposta é que foi o resultado de uma cooperação direta entre o Shabak e o serviço de inteligência palestinos, sem passar pelo nível político. O mesmo aconteceu com o primeiro-ministro da AP, Mohammad Mustafa. Há duas semanas, viajou para Jerusalém para tratar de alguns hospitais e administrações sob o controle da AP. Também entrou sem nenhuma autorização em nível político.

Stathis Kouvelakis – Qual é a percepção da AP pela população? Qual é a popularidade de seu presidente Mahmoud Abbas?
C.P. – Muito em populares. Inclusive as pessoas que trabalham para a AP, incluindo as personalidades de primeiro nível, estão irritadas. Mas não falam abertamente com a mídia e não podem fazer muita coisa. A crítica é impossível, é uma espécie de ditadura. Muitas pessoas tentaram fazer algo e foram demitidas. Inclusive aqueles que não fazem parte da AP ou pertencem a outros partidos são vigiados. Por exemplo, quando Moustapha Barghouti (líder da Iniciativa Nacional Palestina) [3] interveio na política geral, sofreu ataques de pessoas pagas pela AP.

Se fossem realizadas eleições justas e livres, o que é muito pouco provável em um futuro próximo, a AP não conseguiria mais do que 25 ou 30% dos votos. Porém, por outro lado, Israel, as potências ocidentais e os demais estão nos chantageando, dizendo que sem a AP não conseguiremos nada. É por isso que as pessoas tentam manter a AP, porque facilita o emprego, as escolas, o sistema de saúde etc. Mas se, em nível internacional, fosse tomada a decisão de organizações eleições realmente livres, de permitir que outras forças, como o Hamas, assumissem o poder, acredito que essas outras forças conseguiriam entre 65 e 70% dos votos. E, nesse momento, acredito que o Hamas é a mais popular entre essas forças.

A percepção do Hamas
Stathis Kouvelakis – Isso nos leva a falar do papel do Hamas. Como a população da Cisjordânia o percebe desde 7 de outubro?
C.P. – O 7 de outubro causou um grande impacto na Cisjordânia. Nos surpreendeu que o Hamas tenha lançado esse ataque, porque estávamos sujeitos a uma propaganda que repetia continuamente que o Hamas tinha vendido a Palestina aos israelenses e que tinha se convertido em algo parecido com a AP, uma instituição corrupta, cujos recursos beneficiam os filhos dos líderes etc. Porém, hoje, as pessoas compreendem que o dinheiro era utilizado para outras finalidades. Por exemplo, os hospitais do Hamas conseguem funcionar até serem completamente destruídos pelos israelenses. Sem os bombardeios, funcionariam muito bem. Se ataques semelhantes ocorressem na Cisjordânia, nada funcionaria durante mais de uma semana. O Hamas utilizou o dinheiro para se preparar para tempos difíceis. Por isso estamos muito impressionados com o que tem feito.

Certamente, não podemos julgar em um nível geral porque não estamos em uma situação comparável à de Gaza. A pergunta deveria ser feita primeiro aos habitantes de Gaza: Estão satisfeitos com o Hamas ou se voltaram contra ele? Com todos esses massacres e destruições, as pessoas normalmente deveriam odiar o Hamas e pensar que ele é responsável pelo que está acontecendo. No entanto, sabemos que ninguém, nem um exército, nem uma guerrilha, nem um partido, pode permanecer em pé, como o Hamas está atualmente em Gaza, sem o apoio da população. Outra prova de que os habitantes de Gaza apoiam o Hamas é que não querem que a AP ou Israel tomem o poder no território. Os serviços de inteligência da AP enviaram a Gaza cerca de 200 pessoas armadas e treinadas para tomar o controle, mas foram capturadas por pessoas que as entregaram ao Hamas.

Na Cisjordânia, se tivéssemos eleições, não menos que 70% dos eleitores votariam no Hamas. Inclusive os cristãos apoiam o Hamas. Temos amigos, vizinhos que são cristãos [4]. Conversamos com eles e disseram que votariam no Hamas. O mesmo acontece com as universidades. Fatah gastou muito dinheiro e empregou todo tipo de truques para evitar que o Hamas participasse nas eleições. Está proibindo hastear bandeiras do Hamas nas ruas. As pessoas são presas e intimadas. Como se sabe, as questões de honra, especialmente para as meninas e mulheres, são de grande importância na sociedade palestina. Portanto, as famílias recebem mensagens dizendo para não deixar sua filha sair para expressar seu apoio ao Hamas, porque algo aconteceria com ela. E, no entanto, o Hamas participa do jogo político. Pode não ser a maioria onde se realizam as eleições, nas universidades, nos sindicatos, em alguns municípios, mas compete com o Fatah, obtêm de 35 a 50% dos votos, o que é um milagre nessas condições. De fato, o Hamás é o partido palestino mais popular de todos os tempos.

Qual papel a esquerda palestina desempenha?
Stathis Kouvelakis – Você disse anteriormente que existia uma tradição de esquerda no acampamento de Dheisheh. As forças de esquerda, como o FPLP [Frente Popular para a Libertação da Palestina] e o FDLP [Frente Democrática para a Libertação da Palestina], seguem ativas na Cisjordânia?
C.P. – Tem dois problemas principais com a esquerda. O primeiro se encontra em um nível internacional. Com a queda da União Soviética, a esquerda se viu profundamente afetada e ficou debilitada em todo o mundo. Na Palestina, se esforçou para continuar a luta na medida do possível, mas, e esse é o segundo problema, se encontrou dividida em diferentes correntes. Uma dessas quer seguir sendo parte da OLP [Organização para a Libertação da Palestina]. Isso significa que os executivos conseguem postos e salários, mas devem permanecer dentro do marco da AP. Outra parte da esquerda tem ficado em silêncio. Não quer se submeter à AP, mas não têm os meios para resistir concretamente ou tentar outra coisa. Por último, existe uma terceira corrente, fortemente atacada pelos israelenses e até mesmo pela AP antes de 7 de outubro. A maioria deles foram encarcerados durante anos e muitos ainda estão.

Entre os jovens e até mesmo entre os muito jovens, de 12 anos ou mais, muitos se sentem atraídos pela esquerda, especialmente no campo de Dheisheh. As pessoas não gostam do Fatah e o Hamas é bastante fraco no campo, porque muitos deles vão, por exemplo, para partidos como o FPLP. Mas são atacados, a partir dos 12 ou 13 anos, são detidos. A repressão faz com que a atividade política na Cisjordânia seja quase impossível.

Stathis Kouvelakis – Inclusive para o Hamas?
C.P. – Estão organizados na clandestinidade e mostram uma grande inteligência. Aproveitam acontecimentos como os funerais para aparecer publicamente. Mas também fazem muito trabalho social parecido com o de ONGs e é assim que mantém seu vínculo com a população.

Stathis Kouvelakis – No norte da Cisjordânia, em cidades como Jenin e Tulkarem, uma nova geração forma grupos de resistência armada. O exército israelense responde ocupando cidades, assaltando campos de refugiados, destruindo casas e matando pessoas. O que exatamente acontece?
C.P. – Desde 2006, quando a AP organizou um golpe de Estado contra o Hamas e o Hamas respondeu tomando o controle de Gaza [5], as atividades do movimento estão proibidas na Cisjordânia, especialmente no nível militar. Como disse antes, inclusive no nível político, é muito complicado para eles. Portanto, o Hamas chegou a acordos com setores do Fatah, jovens que não gostam das políticas da liderança e da AP, e outros que querem ser ativos na resistência. Em Jenin, Tulkarem, Nablus, centenas de pessoas foram assassinadas sem motivo, até mesmo antes de 7 de outubro. As pessoas começaram a decidirem por si mesmas que iriam morrer de qualquer jeito e que, portanto, tinham que resistir. Formaram pequenos grupos, que inicialmente vinham principalmente do Fatah. O Hamas tem apoiado economicamente esses grupos e lhes proporcionado seus conhecimentos. O movimento tem se convertido, assim, na principal força no norte da Cisjordânia. Até mesmo Ibrahim Al-Nabulsy [6] (um dos líderes das Brigadas Al-Aqsa, a ala militar do Fatah, assassinado pelos israelenses em agosto de 2022) [7], que desempenhou um papel importante nesse processo, disse repetidamente: “somos homem de Mohammed Deif” [8] (o líder militar do Hamas, assassinado pelos israelenses em julho de 2024). Mas esses grupos sofreram fortes ataques israelenses e foram quase completamente aniquilados.

O momento da libertação está próximo!
Stathis Kouvelakis – Última pergunta, provavelmente a mais difícil: Como encara a perspectiva de libertação da Palestina?
C.P. – Acredito que isso acontecerá em breve, mais cedo do que muitas pessoas pensam. Em todo o mundo, as pessoas têm visto a verdadeira face de Israel. Por isso, as manifestações são tão numerosas desde o 7 de outubro. Inclusive em Nova York, em Washington, em todo os Estados Unidos, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas, com uma participação massiva da comunidade judia. Também acredito que Israel não poderá fazer frente a esta guerra durante muito tempo. Sem o apoio do Ocidente, Israel teria perdido faz muitos anos. Hoje, os Estados Unidos estão começando a pensar em si mesmos. Ontem, vi uma reportagem sobre quanto os Estados Unidos têm que pagar para atacar os Houthis no Iêmen. Por que continuar pagando para Israel? É o povo mais odiado do mundo.

O truque de equiparar a oposição a Israel ao antissemitismo já não funciona mais. Agora, as pessoas podem se informar e ver o que está acontecendo em tempo real. Também acredito que haverá mudanças importantes na região em geral, antes do que muitos imaginam, na Jordânia e até mesmo na Arábia Saudita. Na Síria, existe grande descontentamento com o novo regime porque chegou ao poder sob a proteção dos Estados Unidos, a fim de implementar uma política de amizade com Israel com o pretexto de que a paz é melhor que nada. Mas as coisas não permanecerão como estão.
Da próxima vez, no próximo ano, espero que nos encontremos na França. Mas, no ano seguinte, será na Palestina, eu lhe prometo. A libertação chegará logo, Inch’Allah!

A entrevista foi realizada em 15 de maio de 2025. Foi traduzida ao francês por Status Kouvélakis e do francês ao espanhol por Faustino Eguberri. Traduzido do espanhol para o português por Paulo Duque, da equipe do Esquerda Online.

[1] https://www.lemonde.fr/international/live/2025/05/30/en-direct-guerre-a-gaza-israel-et-le-hamas-tres-proches-d-un-accord-selon-donald-trump_6608186_3210.html?_staled_=1
[2] No artigo publicado em novembro de 2020 no Le Monde Diplomatique, “Dias comuns no acampamento de Dheisheh”, a jornalista palestina Mouna Hamzeh-Muhaisen oferece um comovente testemunho da vida no acampamento durante a Segunda Intifada. https://www.monde-diplomatique.fr/2000/11/HAMZEH_MUHAISEN/2567
[3] https://fr.wikipedia.org/wiki/Moustafa_Barghouti
[4] Cerca de 50.000 palestinos que vivem na Cisjordânia são cristãos.
[5] Em janeiro de 2006, nas únicas eleições celebradas na Cisjordânia e em Gaza até a presente data, o Hamas ficou em primeiro lugar com 44,5% dos votos, seguido pelo Fatah (41,4%) e os partidos de esquerda FPLP (4,2%), FDLP (2,7%) e a Iniciativa Nacional Palestina de Moustapha Barghouti (2,7%). O Hamas obteve uma maioria absoluta dos assentos e seu líder, Ismail Haniyeh, foi nomeado primeiro-ministro pelo presidente da AP, Mahmoud Abbas, em fevereiro de 2006. Anunciava a formação de seu governo no mês seguinte. Mas a AP, incitava e apoiada pelos Estados Unidos e pelas potências ocidentais, realiza um golpe de Estado contra o governo de Haniyeh e lança uma ofensiva militar contra o Hamas. O resultado é uma partição entre a Cisjordânia, onde a AP mantém seu controle, e Gaza, controlada pelo Hamas, e uma divisão da qual o movimento nacional palestino ainda não se recuperou. Em 2008, a revista estadunidense Vanity Fair revelou documentos que detalham o plano da administração Bush de derrotar o Hamas, um plano diretamente inspirado naquele implementado com os “contras” na guerra contra o governo sandinista na Nicarágua. [https://www.vanityfair.com/news/2008/04/gaza200804]
[6] https://fr.wikipedia.org/wiki/Ibrahim_Al-Nabulsi
[7] https://samidoun.net/fr/2023/08/hommage-a-ibrahim-al-nabulsi-le-lion-de-naplouse/
[8] https://fr.wikipedia.org/wiki/Mohammed_De%C3%AFf

Original em https://vientosur.info/resistir-en-el-dia-a-dia-en-cisjordania-un-testimonio-exclusivo-del-campo-de-dheisheh/


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