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O que os giros táticos de Lenin podem nos ensinar hoje
Há 155 anos nascia o líder da Revolução Russa, Vladimir Lenin. Ele provou seu brilhantismo estratégico ao saber lidar com a flexibilidade tática - e essa é a grande lição que a esquerda deve aprender na luta contra a atual acensão da extrema direita.
Publicado em: 22 de abril de 2025
A clareza estratégica de Lenin se expressou em quatro giros táticos no intervalo dramático entre fevereiro e outubro de 1917. Primeiro com a defesa das teses de abril, reposicionando o bolchevismo na linha de independência e exigências ao governo provisório – Pão, Paz e Terra – e todo o poder aos sovietes. Segundo se posicionando contra a tentativa precipitada de derrubada do governo Kerensky nas Jornadas de Julho. Terceiro girando para a Frente Única com Kerensky contra o golpe de Kornilov. Quarto, ao defender a necessidade da insurreição.
Lenin utilizou as quatro “marchas do motor do carro” em função do traçado de uma estrada que tinha muitas curvas, subidas e descidas, não era uma linha reta. Muda a conjuntura, muda de tática. Defende avançar em abril, defende manter posições em julho, defende recuar em agosto, e coloca a quarta marcha para acelerar em setembro, depois do fracasso do pré-parlamento. Leninismo não é avançar, avançar, avançar, a qualquer custo, não importando os riscos. Mas não é tampouco quietismo, cuidado, cuidado e mais cuidado.
É flexibilidade tática: capacidade de manobra, inteligência ardilosa, fazer unidade com os que estão á sua direita em um momento, ou com os que estão à sua esquerda em outros, aproveitar uma brecha, explorar possibilidades, sem nunca perder a independência, mas tampouco sem deixar de aproveitar os acordos necessários.
Estava em uma situação revolucionária, quando o relógio da história se acelera e a experiência de semanas substitui a de anos, e os meses valem por décadas. Tem o momento de paciência para manter a independência e fazer pressão pela esquerda sobre o governo provisório de Kerensky de abril a julho, tem o momento de evitar aventuras e guardar posições sem capitular ao ultra esquerdismo nas Jornadas de Julho, quando ainda não havia condições de lutar pelo poder, tem o momento do recuo e frente única com o governo contra Kornilov e, finalmente, o momento de contra-ataque em toda a linha para a insurreição. A linha leninista real, sem romantizações simplificadas, nunca foi “nenhum acordo com os reformistas”, mas “rompam com a burguesia”.
A partir deste posicionamento por exigências concretas que dialogavam com a maioria popular que ainda confiava nos mencheviques e esseristas, a linha leninista teve diferentes inflexões, movimentos, curvas. As duas mais “espetaculares” foram o giro para a defesa da tática de Frente Única Operária ou de Esquerda contra o perigo do golpe korniloviano ou fascista, e o giro para a insurreição. O primeiro inspirou depois as decisões da III Internacional, nos seus Terceiro e Quarto Congressos.
Hoje ainda temos alguns leninistas que concordam com o segundo e terceiro giro, a contenção nas Jornadas de Julho e o bloco com Kerensky, mas não com o primeiro e quarto, que consideram sectários. Mas, em reciprocidade temos os que defendem o legado das teses de abril e da insurreição de outubro, mas não muito o segundo, a resistência à radicalização de julho e o papel de freio contra a aventura esquerdista, e tampouco com a unidade com os reformistas contra Kornilov. Mas só são leninistas os que concordam com todos eles.
A flexibilidade tática é a arte da política. Ela deve se apoiar na análise das possibilidades limitadas pela análise da relação de forças, desde que ancorada na firmeza de princípios. Estamos mal, quando o que prevalece é a rigidez tática e a desfaçatez estratégica. Diante do perigo da extrema direita o terceiro giro é o mais importante. Porque foi decisiva a disposição para a frente única nos sovietes com a maioria que ainda sustentava Kerensky que abriu o caminho para a transformação dos bolcheviques em maioria. Na Rússia foi tudo muito acelerado em função da gravidade e urgência imposta por uma situação objetiva extrema: as consequências desesperadoras da derrota militar diante do Exército alemão.
A importância da conjuntura
A russificação da III Internacional favoreceu uma universalização de modelos e políticas que contaminou as próprias análises, porque são muito tentadoras fórmulas inspiradas na ideia de que existem padrões que se repetem na história. Sim, existem padrões. Mas o que foi universal e o que era peculiar, específico, ou até exclusivamente russo? O perigo é considerar como universal o que era estritamente russo. E perder de vista o que de fato foi universal.
O que se convencionou reconhecer como universal? A tática insurrecional apoiada na dualidade de poderes precipitada pela autoridade dos sovietes em uma situação revolucionária. Até a restauração capitalista na URSS esta estratégia prevalecia na esquerda radical mundial como paradigma.
Mas com o fim da URSS a maioria da esquerda mundial descartou essa possibilidade porque teria sido expressão de uma excepcionalidade russa: uma revolução contra uma ditadura tirânica e anacrônica, à frente de um império decadente que oprimia dezenas de nações como colônias internas, um imenso continente euroasiático agrário, mas que era, também, a quinta potência industrial do mundo. A revolução russa teria sido única.
Acontece que, nos países centrais, em especial na Europa, se consolidaram, para resumir uma longa história, regimes democrático-liberais há várias gerações. Em alguns, como Portugal, Espanha e Grécia, mais tardios, mas agora com meio século. Diante desta realidade a atualização da estratégia passou a ser incontornável. Surgiram muitas e diferentes hipóteses, umas mais prometedoras, outras menos. Foram conclusões lúcidas.
Mas, há sempre um perigo quando subestimamos o peso da nossa própria inércia mental depois de tantas décadas. E se estamos sendo vítimas de auto-engano? A pergunta que podemos ou devemos nos colocar é se os regimes democráticos estão, seriamente, ameaçados pelo avanço avassalador da extrema direita em geral, e a influências de correntes neofascistas dentro delas. Não estamos diante de situações revolucionárias, mas reacionárias. Não há possibilidade alguma de ultrapassar pela esquerda o governo Lula, porque não há sequer uma onda de lutas parciais, na verdade, quase não há greves. Nesse contexto, não devemos defender os governos liderados pela esquerda moderada e reformista do cerco da extrema direita?
Entre a revolução socialista ou ditadura contrarrevolucionária
Olegado leninista para o marxismo é imenso. Mas no que remete ao debate de tática na luta contra a extrema direita a questão decisiva parece ser que na Rússia nunca esteve colocada a possibilidade real de estabilização de um regime democrático-liberal. A alternativa real colocada foi Lenin ou Kornilov, revolução socialista ou ditadura contrarrevolucionária. Esta conclusão não deve ser usada para concluir que a mesma disjuntiva está hoje colocada diante de nós. Não está. Mas não porque não haja perigo de regimes bonapartistas de extrema direita. O que não estamos é diante de uma etapa de “iminência” da revolução.
Não foi a burguesia russa que se lançou à insurreição para derrubar o Estado semifeudal dos Romanov em fevereiro de 1917, mas foi ela quem impediu o governo provisório do Príncipe Lvov de fazer a paz em separado com a Alemanha: os capitalistas russos demonstraram-se demasiado frágeis para, por um lado, romper com seus parceiros europeus, e por outro, para garantir a sua dominação através de métodos eleitorais na República que nascia pelas mãos da insurreição proletária e popular. Não foi um descuido que não tenham lutado para convocar eleições para a Constituinte. Foi um cálculo.
Não foi a burguesia quem mandou os seus filhos para as trincheiras da guerra serem massacrados, mas era ela quem apoiava Kerensky, quando este insistia em lançar os camponeses fardados em ofensivas suicidas sobre o exército alemão. A pressão de Londres e Paris exigia a manutenção da frente oriental, mas a pressão de um proletariado poderoso e combativo – proporcionalmente a uma burguesia com pouco “instinto de poder” pela submissão à monarquia – exigia o fim da guerra; as correntes mais fortes da esquerda socialista – mencheviques e esseristas – recusavam-se a assumir o poder sozinhas, porque não queriam romper com a burguesia, porém os bolcheviques, minoritários até setembro, recusavam-se a integrar o governo de colaboração de classes e romper com as reivindicações populares. Mas tampouco estavam dispostos, inconsequentemente, a derrubá-lo. Não estavam dispostos a aventuras enquanto não tivessem conquistado maioria entre os trabalhadores em escala nacional. E este posicionamento foi decisivo, em especial durante as Jornadas de Julho.
Quando Kerensky perdeu o apoio nas classes populares, a burguesia russa apelou ao general Kornilov para resolver com as armas o que não podia ser resolvido com eleições. A hora das eleições para a Constituinte tinha passado. A burguesia russa perdeu a paciência com Kerensky e rompeu com a democracia, dois meses antes do proletariado perder a paciência com os seus líderes, e recorrer a uma segunda insurreição para terminar com a guerra.
O fracasso do putsch selou o destino da burguesia russa. O proletariado e os soldados encontraram nos bolcheviques, nas horas terríveis de agosto, o partido disposto a defender com a vida as liberdades conquistadas em fevereiro. Sem o apoio da burguesia e sem o apoio das massas, suspenso no ar, o governo de Kerensky – com seus aliados reformistas – procurou socorro no pré-parlamento, mas a legitimidade da democracia direta dos sovietes superava a representação indireta de qualquer assembleia: o tempo para as negociações com a Entente tinha se esgotado, a oportunidade histórica para a república burguesa tinha sido perdida. Era tarde demais.
A engrenagem da revolução permanente empurrava os sujeitos sociais interessados no fim imediato da guerra – a maioria do Exército e dos trabalhadores – para uma segunda revolução e operava a favor dos bolcheviques que, no espaço de poucos meses, viam sua influência se agigantar. O proletariado e os camponeses pobres precisaram dos meses que separaram fevereiro de outubro para perderem as ilusões no governo provisório, no qual os partidos que depositavam suas esperanças, mencheviques e esseristas, eram incapazes de garantir a paz, a terra e o pão, e entregar sua confiança aos sovietes onde a liderança de Lênin e Trotsky se afirmava.
Martov, líder dos mencheviques internacionalistas e Kautsky, líder da social-democracia alemã, insistiram, nos anos seguintes, que o mês de outubro teria sido uma aventura voluntarista. Acusaram os bolcheviques de golpistas por terem feito a revolução: queriam que os bolcheviques construíssem o regime democrático-liberal, quando a burguesia russa tinha apoiado os métodos da guerra civil para defender a propriedade privada.
Quis a ironia da história que, na Rússia de 1917 – antecipando um movimento histórico que depois se generalizou à Europa – os partidos menchevique e Socialista Revolucionário (SR) – que nasceram como organizações operárias e populares, transfiguraram-se nos porta-vozes da pequena-burguesia e das incipientes classes médias urbanas: um colchão de amortecimento da luta de classes entre o capital e trabalho, e os últimos advogados de um regime democrático-liberal, mesmo depois que a burguesia tinha abraçado o plano da ditadura fascista, que poderia ser adornada com uma coroa monárquica. Os camponeses, cansados de enterrar seus mortos, finalmente, giraram à esquerda.
Mais razoável, entretanto, seria concluir que uma hesitação bolchevique em outubro, ou a sua derrota na guerra civil entre 1918/1920, teria levado ao poder – apoiado pelas democracias de Washington e Londres – um fascismo russo, e ninguém deveria querer imaginar o que poderia ter sido um “Hitler” no Kremlin.
A ameaça neofascista hoje com a ascensão da extrema direita
Devemos procurar hipóteses para explicar porque o melhor da esquerda marxista mundial subestima o neofascismo. Como todo problema complexo, certamente são muitos fatores. O dogma que herdamos, em nossa variedade de heranças, é que o apoio de frações burguesas ao fascismo surge como uma resposta ao perigo real e iminente de uma crise revolucionária. O perigo de revolução. Se não há perigo de revoluções, porque existiria um perigo neofascista?
Não estaríamos exagerando? Será que existe um objetivo comum de Bolsonaro e Milei, ou o Chega em Portugal, o Vox no estado espanhol, Le Pen na França e Trump nos EUA? Não seria urgente considerar que estamos diante de uma onda de movimentos de extrema direita que obedece a um projeto estratégico que é incompatível com os regimes democráticos, porque está disposto a uma corrida armamentista contra a China?
E se a extrema direita pode evoluir para o neofascismo, sem que haja perigo de revolução? E se esta fórmula “clássica”, herdada dos anos trinta do século passado – o perigo de novos outubros- não for correta, ou tenha deixado de ser em função das mudanças enormes que aconteceram nos últimos mais de trinta anos, desde a restauração capitalista?
E se ela for uma conclusão unilateral inspirada pela autoridade do “modelo bolchevique”, o peso da herança histórica? E se não for somente quando há perigo de revolução que o neofascismo passa a ter apoio de uma fração burguesa? E se não for preciso tanto, algo tão grave como uma revolução?
E se a necessidade de subversão autoritária dos regimes democráticos responder a necessidade de ajustes que reduzam ou até anulem as conquistas sociais das gerações anteriores? E se o objetivo estratégico da ultradireita for a destruição das reformas conquistadas nos países centrais nos trinta anos do pós-guerra? Alguns direitos que chegaram a alguns países da América Latina muito atrasados, e com descontos, mas foram conquistas da luta duríssima contra as ditaduras dos anos sessenta e setenta? E se a crise do capitalismo ocidental, e a rivalidade com a ascensão chinesa, impõe um movimento de rotação do capital mais rápido, uma acumulação mais acelerada para garantir taxas de investimentos maiores?
Consideremos esta hipótese. E se a uma fração da burguesia mundial chegou á conclusão que com os regimes democrático-eleitorais não é possível levar adiante até ao fim os ajustes econômico-sociais necessários para que a Tríade – EUA, União Europeia e Japão – mantenha a liderança no sistema internacional de Estados? E se têm mais medo da China do que do proletariado mundial?
Leninismo hoje
Décadas de golpes de Estado pareciam dar razão ao prognóstico de Trotsky nas conversas com Mateo Fossa, o líder sindical argentino, nos anos trinta, alertando que era improvável estabilização de regimes democrático-eleitorais duradouros, memo na América Latina, nem pensar na África e na Ásia. Além do dogmatismo, devemos ter a coragem de nos perguntar, se esta subestimação do perigo da extrema direita não repousa, também, na idealização da estabilidade dos regimes democráticos. Eles estão em crise e podem sucumbir. Mas não diante de revoluções anticapitalistas. O perigo é serem deslocados por dentro pela extrema direita.
Havia boas razões para duvidar nos anos setenta e, mesmo até o final dos anos oitenta, da possibilidade de regimes democráticos liberais duradouros na América Latina. Durante décadas, a história parecia dar razão ao prognóstico de Trotsky. No entanto, estes regimes, desde os anos oitenta, se estabilizaram, mais ou menos. Mais na Argentina que no Brasil, mais no Brasil que no Peru ou Bolívia. Não será que agora deveríamos abrir a cabeça e arejar a mente, ou seja, abraçar um saudável empirismo leninista? Trotsky apreciava demais as fórmulas e modelos teóricos. Lenin era mais lento em retirar conclusões e cuidadoso com as previsões.
Tivemos o antecedente de Fujimori, em função do levante do Sendero Luminoso, nos anos noventa, que venceu as eleições, e depois fez um “autogolpe” para impor um regime bonapartista. Mas, depois em sequência avassaladora golpes institucionais em Honduras, Paraguai e muito mais grave, no Brasil. O último no Peru.
Não podemos concluir que há, pelo menos, o esboço ou possibilidade de um padrão? Brasil é um exemplo de máxima gravidade. Porque o lugar do Brasil no mundo é importante. Sem o golpe que assumiu a forma “legal” de impeachment do governo Dilma Rousseff, depois de quatro vitórias sucessivas do PT nas presidenciais e a provável vitória de Lula em 2018, não é possível compreender a vitória de Bolsonaro. E durante os quatro anos de mandato trabalhou tanto com a hipótese golpista quanto com a tática de reeleição.
A questão que, portanto, nos desafia parece clara: um leninismo para o nosso tempo não deve priorizar a emergência da luta contra a extrema direita? Evidentemente, não podemos deixar de fazer campanhas denunciando o perigo do aquecimento global. Não podemos deixar de fazer campanhas denunciando o massacre genocida que o Estado de Israel faz em Gaza. Não podemos deixar de fazer campanhas de solidariedade com as lutas populares que estão em curso em nossos países. Não podemos deixar de denunciar as ameaças racistas, machistas e LGBT’s fóbicas que nos cercam.
Aonde a extrema direita se aproxima, perigosamente, do poder, não podemos deixar de fazer a luta política para derrotá-los. O neofascismo nos coloca diante de uma emergência.
Não há nada mais leninista que defender Lula, em muitos momentos até de si mesmo, contra o cerco da extrema-direita – e isso passa hoje pela campanha Sem Anistia.
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