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O que a Lei Anti-Oruam significa para a luta de classes


Publicado em: 6 de abril de 2025

Negras e Negros

Por Pedro Lourenço, Mc marginal e Igor Augusto, do Vale do Paraíba (SP)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

Negras e Negros

Por Pedro Lourenço, Mc marginal e Igor Augusto, do Vale do Paraíba (SP)

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No último mês, a cena artística do Vale do Paraíba no interior do Estado de São Paulo se deparou com novas investidas da direita e do conservadorismo no poder público contra a cultura de rua e o hip hop. A tradicional Batalha do Rezende, em Jacareí (SP), foi interrompida pela Guarda Civil Municipal sob o atual comando do governo do prefeito Celso Florêncio (PL). O incidente, que poderia ser compreendido como mais um episódio rotineiro de opressão policial, reflete a nova agenda reacionária contra os movimentos de rua. A criminalização da cultura periférica por meio da força do Estado não é uma novidade, mas agora compõe um método de disputa da opinião pública impulsionado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), com a adesão do prefeito da cidade de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e da base legislativa bolsonarista.

O projeto apresentado pela vereadora Amanda Vettorazzo, do MBL, na Câmara de São Paulo, conhecido como “Lei Anti-Oruam”, reflete a nova pauta preferida pela extrema-direita em todo o país. A proposta foi replicada em 12 capitais e já existem reivindicações semelhantes em cidades do interior, inclusive no Vale do Paraíba. Em Guaratinguetá, cidade vizinha, o projeto foi apresentado pelo vereador Fabrício da Aeronáutica (MDB) e aprovado por 7 votos na Câmara Municipal. A PL, que se apresenta como um dispositivo contra a criminalidade, é, na verdade, um mecanismo que fortalece as bases do fascismo no país, a hegemonia social e consequentemente, dando o nome a cultura hip hop como sempre se pensou historicamente. Como inimigos.

Essa coluna, é a tentativa de se organizar o debate acerca do triste episódio em Jacareí e como isso se mistura na conjuntura nacional.

Quem é Amanda Vettorazzo e o que é a Lei Anti Oruam?

Antes de mais nada, é fundamental traçarmos a compreensão de que a vida do Rapper Oruam, em nada contribui para a análise dos fatos. Dito isso, deixemos o moralismo de lado.

Amanda Vettorazzo foi uma vereadora eleita na capital paulista em 2024, aglutinando ao todo 44.000 votos. Sua campanha agiu em cima de pautas que visavam polemizar contra movimentos e grupos minoritários, no mesmo formato usado pelo deputado cassado, Arthur do Val, também do MBL ( Movimento Brasil Livre), um grupo reacionário que tomou muito espaço nas redes nos últimos anos graças ao seu método de disputa política. A Pl surge com o objetivo de proibir o uso de recursos públicos em eventos que façam apologia ao crime, violência e drogas, de uma maneira exclusivamente voltada à cultura hip hop.

A proposta da vereadora em partir para debates midiáticos passa longe de ser algo inédito, se organizando em uma dinâmica hoje muito bem estabelecida.

No início de 2023, a ala de oposição ao governo Lula articulou um processo de criminalização da luta pela reforma agrária por meio da CPI do MST. A empreitada contou com o deputado Kim Kataguiri (MBL) na vice-presidência da comissão, além do apoio do ex-ministro do Meio Ambiente e do Agronegócio do governo Bolsonaro, Ricardo Salles, como delator. A tentativa de imputar atividades criminosas aos sem-terra ficou marcada como um dos episódios mais vergonhosos da extrema direita nos últimos anos, com um relatório inconclusivo que não alcançou o impacto esperado na opinião pública, dialogando apenas com os já convertidos.

Esse foi o primeiro experimento de uma série de políticas que o MBL tentaria aplicar posteriormente, apostando no pânico moral para criminalizar lutas e movimentos sociais com o apoio da opinião pública. Ainda em 2023, o Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) foi alvo de uma CPI sobre transição de gênero, que também não encontrou irregularidades. O processo foi duramente inflamado e polemizado por Guto Zacarias, deputado do MBL na Alesp. O mesmo ocorreu com o vereador Rubinho Nunes, que tentou imputar crimes ao trabalho do Padre Júlio Lancellotti, acusando-o de pedofilia sem provas. A lista é imensa.

Se em 2018 e 2022 o bolsonarismo inaugurou o que ficaria conhecido como Gabinete do Ódio, ainda como uma espécie de experimentação, a campanha de Marçal aperfeiçoa essa metodologia como jamais visto antes. Uma campanha virtual em um ritmo industrializado de conteúdos apostando em hostilizar grupos e movimentos populares. A postura ainda mais a ultra-direita foi um dos destaques das eleições a nível municipal e sendo espelhada muito para além das capitais, com vereadores das capitais e regiões interioranas replicando o método em todo o país

A militarização da segurança pública em Jacareí e no Vale do Paraíba-SP

Com o apoio do Governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), prefeituras de todo o estado se empenharam ainda mais em investir na Polícia Militar como um mecanismo de retaliação contra os mais pobres e periféricos. Inúmeras tentativas de remover a obrigatoriedade do uso de câmeras, somadas a várias dramatizações públicas em coletivas de imprensa quando questionado sobre irregularidades por parte da corporação, deram a cara de como o Estado de São Paulo discutiria sobre a segurança pública. Parte dessa política em Jacareí e em todo o Vale do Paraíba já vem sendo implementada ao longo dos últimos governos por meio da ROMU (Ronda Ostensiva Municipal), um dispositivo que militariza a atuação da Guarda Civil. Por princípio, a Guarda Civil deveria ser empregada exclusivamente na proteção do patrimônio público e da população, de maneira auxiliar. No entanto, a ofensiva aplicada à Batalha do Rezende na noite de 28 de fevereiro, um movimento orgânico articulado pela juventude em uma cidade de longo histórico de cultura de rua como Jacareí, é um grave sintoma de como a cena artística pode vir a ser compreendida, sobretudo com a lei anti oruam se articulando ao longo do interior.

A criminalização do samba e a nova lei ANTI-ORUAM como expressão do racismo estrutural

A nova lei ANTI-ORUAM, que visa criminalizar movimentos culturais como o hip hop e o funk, traz à tona uma discussão urgente sobre o racismo estrutural e a repressão histórica às expressões culturais negras no Brasil. Para entender o impacto dessa lei, é fundamental traçar um paralelo com a criminalização do samba no século XIX, analisando como as manifestações culturais afro-brasileiras foram e continuam sendo alvo de perseguição e marginalização.

No século XIX, o samba, assim como outras expressões culturais de matriz africana, foi criminalizado e associado à desordem e à marginalidade. Como aponta Muniz Sodré (1998), o samba era visto com desconfiança pelas elites brasileiras, que buscavam controlar e reprimir as manifestações culturais de negros escravizados e libertos. O Código Penal de 1890, por exemplo, criminaliza práticas como o batuque e os sambas, visando manter a população negra sob controle e marginalização. A pesquisa de Danilo Ramos ( 2022) revela que, apesar das proibições, o samba resistiu e se transformou em um símbolo de identidade e resistência cultural. Ainda assim, a repressão aos sambas era constante, com prisões frequentes de participantes desses eventos.

A lei ANTI-ORUAM, que criminaliza o hip hop e o funk, repete o mesmo padrão de repressão visto no século XIX. Esses gêneros musicais, assim como o samba, são expressões culturais que emergem das periferias e das comunidades negras, refletindo a realidade social e política desses grupos. Criminalizá-los é uma forma de silenciar vozes que denunciam a desigualdade, o racismo e a violência policial.

Como destaca Juarez Dayrell (2001), o rap e o funk desempenham um papel crucial na socialização dos jovens das periferias, oferecendo um espaço de expressão e construção de identidade. Esses estilos musicais não apenas refletem a realidade desses jovens, mas também proporcionam um senso de pertencimento e autoestima, em um contexto marcado pela exclusão social e pela falta de oportunidades.

A Importância do Rap e do Funk na Socialização dos Jovens

O rap e o funk são mais do que gêneros musicais: são ferramentas de resistência e transformação social. Desde seu surgimento, o hip hop tem como função social transformar o foco da violência e da delinquência juvenil em arte, dança e música. Jovens nova-iorquinos decidiram, em vez de se enfrentarem em brigas de gangues, resolver suas diferenças por meio da dança (o break), da arte (o graffiti) e da poesia (o rap).

O funk brasileiro é uma vertente do hip hop, como o próprio Afrika Bambaataa já afirmou diversas vezes em palestras. Assim como o “passinho”, gênero de dança que incorpora elementos do break, do balé e do funk atual, esses estilos permitem que jovens das periferias se reconheçam como sujeitos ativos, capazes de produzir cultura e refletir sobre sua realidade (Dayrell, 2001).

Muitos desses jovens vivem em contextos onde a escola é desestruturada e desinteressante. Além disso, ingressam no mercado de trabalho desde muito jovens, seja por necessidade de sobrevivência, seja para garantir um mínimo de lazer e maior autonomia em relação às suas famílias. O trabalho, nesses casos, possibilita a própria condição juvenil (Dayrell, 2001). No entanto, esses empregos alienantes não trazem significado algum para a juventude, sendo cada vez mais precários e mal remunerados, como ilustra Dayrell:

“Como evidenciam inúmeras pesquisas, o trabalho juvenil não pode ser compreendido apenas pelo contexto de pobreza em que vivem os jovens. Ele também aparece como condição para maior autonomia e liberdade em relação à família, pela possibilidade do consumo de bens e pela garantia de um mínimo de lazer. Enfim, é o trabalho que possibilita a vivência da própria condição juvenil. Mas o que poderia ser visto como uma etapa inicial tornou-se uma constante em suas trajetórias no mercado de trabalho. Nenhum deles conseguiu se qualificar em alguma profissão, e todos sobrevivem de bicos e empregos precários. Expressam o contexto de uma crise pela qual passa a sociedade brasileira, o que afeta as instituições clássicas responsáveis pela socialização. Essa crise se manifesta na desestruturação do mercado de trabalho e no aumento do desemprego juvenil, atingindo mais diretamente os jovens pobres”. (Pochmann, 1998).

Dessa forma, o mundo do trabalho não se apresenta como um espaço de escolhas para esses jovens. Ao contrário, nenhum deles gosta do que faz, não vendo nessas atividades nenhuma centralidade além da renda. Para muitos, o envolvimento com a música implica uma tensão entre o tempo do trabalho e o tempo dedicado à música. Como relata Pedro, um rapper de 24 anos: “Chegava dentro de uma firma, e minha cabeça não era pra aquilo lá. Trabalhei em muitos lugares, cara, mas minha cabeça não aceitava… era aquele trauma, ficava nervoso porque eu pensava: ‘Pô, eu tenho de fazer é música, o meu negócio é aquilo lá, é só com isso que eu me entretenho, é nisso que eu tenho uma vontade, cara!'”

É feito uma dissociação entre o emprego atual e a carreira musical: um é visto como uma obrigação instrumental, enquanto a outra representa a possibilidade de um trabalho que traz satisfação pessoal e criatividade. Como diz um deles: “Gostar de trabalhar eu até gosto; a questão não é de não gostar de trabalhar, é de fazer o que não gosto…”

Podemos entender a postura desses jovens como uma recusa das condições que a sociedade lhes oferece para sua inserção social. Por meio da música, eles experimentam a possibilidade de uma atividade com sentido e não aceitam a sujeição às alternativas que lhes são impostas. Assim, o trabalho não constitui uma fonte de expressividade, reduzindo-se a uma obrigação necessária para a sobrevivência mínima, perdendo os elementos de uma formação humana que derivam de uma cultura organizada em torno do trabalho.

Esses jovens são, em grande parte, os menos contemplados pela escola. A maioria foi excluída do sistema educacional em vários estágios, muitos antes de completar o ensino fundamental, com trajetórias marcadas por repetências, evasões esporádicas e retornos, até a exclusão definitiva. Apenas quatro dos jovens mencionados continuam estudando, alguns no ensino fundamental e outros no ensino médio. Para aqueles que ainda frequentam a escola, ela aparece como uma instituição distante e pouco significativa. Como afirma Flavinho, um funkeiro de 17 anos: “Antes eu não gostava da escola de jeito nenhum… Agora, tipo assim, eu tive que gostar porque é uma coisa que eu dependo dela, tipo assim, eu aprendi a gostar porque eu sei que preciso… mas se desse pra viver sem escola, eu preferia viver sem escola…”

A criminalização do hip hop e do funk pela lei ANTI-ORUAM repete um padrão histórico de repressão às expressões culturais negras, assim como ocorreu com o samba no século XIX. No entanto, assim como o samba resistiu e se tornou um símbolo da cultura brasileira, o rap e o funk continuarão a ser vozes de resistência, transformação e classe. É fundamental reconhecer a importância desses gêneros musicais na socialização da juventude e lutar contra qualquer forma de censura ou criminalização que vise silenciar essas vozes. O ocorrido com a Batalha do Rezende em Jacareí e a forma como o tema tão pouco foi abordado na cidade, é apenas mais uma confirmação de como o movimento é compreendido pela superestrutura, inclusive a nível municipal. Felizmente, via uma mediação com a fundação cultural, a Batalha do Rezende alcançou uma resolução favorável à continuidade do movimento. Porém, é fundamental ressaltar que essa vitória em uma cidade onde Juex Santana, uma figura que tem como carro chefe a violência e repressão a pobres e periféricos da cidade, se tornou vereador, é pouco se comparado a todos os desafios que entraremos no próximo período. Jacareí não é a cidade do Coronel Leitão. É nossa, dos trabalhadores, artistas e tantos outros companheiros que dedicam suas vidas à construção do movimento popular. Vida longa a Batalha do rezende e a toda a cultura hip hop de todo o Brasil! Não desistiremos.

Referências:
• (MUNIZ SODRÉ, 1998): “O samba é o encontro de diversas práticas de matriz africana, resultado de processos históricos complexos, marcados pela diáspora africana, pela escravidão e pela construção de uma identidade negra no Brasil.”
• (DANILO RAMOS, 2022): “A proibição do samba, embora muitas vezes não explícita, visava controlar e marginalizar a população negra, mas não impediu que o samba se mantivesse vivo como símbolo de resistência.”
• (JORNAL DIÁRIO DE NOTÍCIAS DO PARÁ, 1888): “Todos foram detidos por estarem participando de um samba.”
• (JUAREZ DAYRELL, 2001): “O rap e o funk assumem uma centralidade na vida dos jovens das periferias, proporcionando práticas, relações e símbolos por meio dos quais criam espaços próprios e constroem identidades positivas.”

Revisão: Maria Clara Soares
Arte e fotografia: Nicholas Dias


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