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As feridas narcísicas do trotskismo


Publicado em: 27 de março de 2025

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Coluna Henrique Canary

Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

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Eco e Narciso (fragmento), John William Waterhouse

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Meu coração tropical está coberto de neve, mas
Ferve em seu cofre gelado
E a voz vibra e a mão escreve mar.
Corsário, João Bosco e Aldir Blanc

Em um pequeno artigo de 1917 intitulado “Um dificuldade no caminho na psicanálise”, Sigmund Freud expôs o que considerava serem as três grandes feridas narcísicas da humanidade. O que é uma ferida narcísica? Tomando o mito de Narciso como referência (o belo jovem que se apaixonou por seu próprio reflexo em um lago e morreu afogado ao tentar possuí-lo), uma ferida narcísica é um acontecimento intelectual de larga escala que fere o amor próprio do ser humano, sua noção de domínio, exclusividade e superioridade.

Segundo Freud, a primeira ferida narcísica da humanidade teria sido causada por Nicolau Copérnico (1473-1543) e seu livro Da revolução de esferas celestes. Nessa obra, Copérnico demonstrava que a Terra gira em torno do Sol. A proposta do astrônomo polonês, aperfeiçoada mais tarde por Johannes Kepler, arrancou nosso planeta (e portanto o ser humano) do centro do universo e colocou-o na periferia do sistema, abalando nossa noção de uma localização especial na obra da criação.

A segunda ferida narcísica foi causada por Charles Darwin (1809-1882) e seu A Origem das Espécies, de 1859. Nela, o naturalista britânico demonstrou a unidade do ser humano com o conjunto da natureza e o fato de que sua evolução não apresentava nada de especial em comparação com a evolução de todas as outras espécies. É conhecida a imensa repercussão de sua obra e os ataques que ela sofre até os dias de hoje por fanáticos fundamentalistas. A obra de Darwin retirou o ser humano de seu pedestal biológico, constituindo um duro golpe em sua percepção de exclusividade.

A terceira ferida narcísica da humanidade teria sido causada pela própria psicanálise e talvez fosse, segundo Freud, a mais dolorosa. A psicanálise teria mostrado ao ser humano que nem mesmo dentro do reino de sua mente (se considerarmos que tal coisa existe) ele consegue ser senhor. O ego, a consciência não dominam totalmente as ações. Há uma série de desejos, instintos, paixões e impulsos que não estão sob controle da razão. Freud comparava a mente humana a um iceberg, onde o que vemos e controlamos é apenas uma parte infinitamente pequena, estando todo o resto sob o poder do inconsciente. A descoberta do médico vienense provocara um novo destronamento do ser humano, desta vez especificamente sua ideia romantizada de razão e consciência.

Mas e o trotskismo? Temos também nossas “feridas narcísicas”? Ou seja, aqueles momentos particularmente dolorosos em que nossas bases teóricas e ideológicas foram sacudidas por este ou aquele fato e abriram uma importante crise em nossa autopercepção? O termo “ferida narcísica”, claro, não deve ser interpretado aqui no sentido de um conceito estrito, mas apenas como imagem. Nosso objetivo não é estabelecer um diagnóstico, e sim provocar a reflexão.

A revolução do pós-guerra

O processo revolucionário que se desencadeou no mundo após a Segunda Guerra Mundial foi certamente o maior e mais importante da história. Nele, a burguesia foi expropriada em um terço do globo terrestre, uma ordem social e econômica pós-capitalista foi implantada na Europa Oriental e Bálcãs, o Oriente finalmente se uniu à revolução mundial com a China e o socialismo chegou à América Latina com a Revolução Cubana de 1959. Outros países, principalmente na África e Ásia, não chegaram à expropriação da burguesia, mas se libertaram de suas metrópoles por meios revolucionários, iniciando uma transição à independência que abria grandes possibilidades.

Mas esse grandioso processo foi também, para o movimento trotskista, fonte de confusão, rupturas e desagregação. Em 1940, em seu “Manifesto da IV Internacional Sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial”, Trótski afirmara que a Segunda Guerra Mundial terminaria com a vitória da revolução socialista no mundo inteiro, com o desmascaramento da direção stalinista e o triunfo da IV Internacional como nova direção do proletariado mundial: “a revolução mundial implicará inevitavelmente na desaparição da oligarquia do Kremlin(1). A parte dessa previsão relativa à eclosão de um processo revolucionário mundial se confirmou parcialmente com os levantes do pós-guerra. Mas o velho revolucionário russo excluía de antemão que o stalinismo pudesse cumprir o papel de direção desses processos, o que faria com que a tarefa de sua condução caísse nas mãos da IV Internacional. 

E no entanto isso não ocorreu. As “democracias populares” instaladas na Europa Oriental caminharam para a ruptura com a burguesia e se tornaram ditaduras do proletariado, mas permaneceram ligadas a Moscou. Na China, Mao Tsé-Tung conduziu o Partido Comunista Chinês na Longa Marcha que terminou na expulsão dos japoneses e posteriormente também na instauração de uma ditadura proletária no país. Ou seja, a maior revolução socialista da história, um processo dez ou vinte vezes mais importante que a Revolução Russa, acabou passando por fora do trotskismo. 

Esse fato teve efeitos nocivos sobre o nosso movimento, que tardou em entender a verdadeira natureza das revoluções do pós-guerra e mergulhou em uma dinâmica de rupturas e dispersão. Em primeiro lugar, a demora em reconhecer o signo revolucionário daqueles processos. Apenas em 1951, em seu III Congresso, a IV Internacional reconheceu o caráter operário dos novos Estados e passou a considerá-los uma conquista do proletariado mundial. Na Iugoslávia, as coisas foram um pouco mais mediadas. Ali o exército guerrilheiro de Tito se encontrava no poder desde a derrota das forças de ocupação nazistas. Tito tinha atritos com Stálin e aplicava uma política relativamente independente, que incluía até algumas ações internacionalistas, como o apoio aos comunistas gregos que enfrentavam a dominação inglesa. Neste caso, os trotskistas chegaram a organizar brigadas de ajuda à Iugoslávia como forma de romper o isolamento da IV Internacional, mas sem grandes resultados. De uma maneira ou de outra, os processos revolucionários do pós-guerra acabaram fortalecendo o stalinismo. Isso gerou reações das mais desmedidas no interior do trotskismo, desde a proposta do “entrismo profundo” ou “entrismo sui generis” nos partidos stalinistas (Pablo) como forma desesperada de se ligar ao fenômeno, até o não reconhecimento (por um certo tempo, é verdade) do caráter operário dos novos Estados, como em Mandel.

Assim, as revoluções do pós-guerra frustraram as pretensões dos trotskistas de superação do stalinismo como direção majoritária do movimento de massas. Ao contrário, a pressão stalinista no imediato pós-guerra foi avassaladora, incidindo sobre o próprio trotskismo. Era muito difícil militar em um mundo no qual Stálin aparecia para o conjunto do movimento operário mundial como o responsável pessoal pela derrota de Hitler. Isso acentuou algumas características negativas de nosso movimento, como a refração sectária e uma certa tendência a construir organizações enrijecidas e pouco permeáveis à realidade e às diferenças políticas. A partir daí, as rupturas se multiplicaram, desde aquelas necessárias e justificadas, até as mais deletérias e dispersivas. O trotskismo se consolidou como um movimento em grande medida marginal, fora do centro dos grandes acontecimentos mundiais. Em um ou outro caso, essa dinâmica era combatida por uma política mais aberta, flexível e agregadora de uma ou outra corrente, mas em geral predominavam o isolamento, a busca pelos traidores e a autoproclamação de tom messiânico. Descobrimos que a revolução podia passar por fora do nosso movimento. Essa foi nossa primeira ferida narcísica.

O fim da URSS

Em 1989 caiu o Muro de Berlim e dois anos depois, em 1991, se dissolveu a União Soviética. Esses dois fatos também incidiram de maneira dramática sobre os destinos de nosso movimento. Desde 1936, Trótski levantara o programa da revolução política, quer dizer, da derrubada revolucionária da burocracia stalinista pela classe operária arregimentada em novos organismos de tipo soviético e em um novo partido bolchevique renascido dos escombros do stalinismo. Embora os processos do final dos anos 1980 tivessem muito pouca coisa em comum com as previsões de Trótski, uma parte significativa das correntes trotskistas insistia em ver neles a concretização da revolução política preconizada em A Revolução Traída

Essa análise não poderia estar mais equivocada. O regime stalinista na URSS e Europa Oriental caiu levando consigo a maior parte das conquistas daqueles Estados: a planificação econômica, ainda que burocrática; a propriedade estatal dos principais meios de produção; o monopólio estatal do comércio exterior; o sistema de garantias sociais fornecidas pelo Estado. Mesmo assim, no calor dos acontecimentos e imediatamente depois deles, muitas organizações trotskistas insistiram em ver nesses processos a possibilidade de regeneração revolucionária daquelas sociedades. Investiram, viajaram, enviaram quadros, trouxeram representantes do movimento operário da Europa Oriental para palestras e cursos. Demoraram a ver que os anos 1990 caminhavam exatamente no sentido da restauração capitalista e não da revolução política. As consequências foram, novamente, as mais daninhas: organizações que comemoraram como vitória aquilo que era uma derrota monumental; outras que abriram mão de qualquer perspectiva revolucionária e se adaptaram à democracia burguesa, que parecia emergir vitoriosa e única da falência da URSS. Mais rupturas, mais diferenças, mais dispersão. 

É preciso que se diga que nem todo o movimento trotskista permaneceu fechado em si mesmo. Figuras como Daniel Bensaïd buscaram interpretar a nova etapa mundial de maneira aberta e não dogmática, tentando uma tão necessária quanto difícil renovação do marxismo. Mas em geral predominou o voluntarismo e o embelezamento de uma realidade bastante dura, que não apenas batia à nossa porta, mas quase derrubava nossa casa.

O fim da URSS abalou as esperanças trotskistas de que, quando as massas da URSS e leste europeu se levantassem, procurariam como direção os representantes da velha tradição bolchevique que pensávamos encarnar. Ao invés disso, procuraram Boris Iéltsin, Helmut Kohl, Vladimir Jirinóvski e outros. A derrota do stalinismo não era equivalente à “hora e vez do trotskismo”. Essa foi nossa segunda ferida narcísica.

A ascensão do neofascismo

A terceira ferida narcísica foi infligida em nosso movimento pela ascensão do neofascismo a partir da crise econômica de 2007-2008. Os anos 2000 ofereceram condições relativamente favoráveis à atuação da esquerda revolucionária. Na Europa, começava-se a superar a confusão política e ideológica dos anos 1990, ao menos no terreno prático. A luta contra a Guerra do Iraque se combinava com um amplo movimento antiglobalização que mobilizava uma importante camada da nova geração de trabalhadores europeus. Na América Latina, a “onda rosa” de governos de conciliação de classe abriu um espaço considerável para a atuação das forças do trotskismo. Em vários países, os trotskistas impulsionavam partidos amplos anticapitalistas com o objetivo de reorganizar as forças que se recusavam a aceitar a moderação social-democrata. 

O colapso econômico de 2007-2008 parecia apontar no sentido do aprofundamento desse quadro essencialmente positivo. E assim foi durante algum tempo. Depois da crise, vieram os grandes processos de luta: a Praça Tahir no Egito, Junho de 2013 no Brasil, a ascensão do Syriza na Grécia, o surgimento do Podemos na Espanha, a Praça Puerta del Sol de Madri, o Occupy Wall Street em Nova Iorque, a “Geração à Rasca” de Portugal, o início do levante sírio, a Praça Maidan em Kiev. Um mundo novo parecia surgir e tudo estava indefinido. 

Mas a partir de meados dos anos 2010 as coisas começaram a mudar. Junho de 2013 não impediu a realização de um golpe governamental no Brasil em 2016; no Egito e na Turquia os regimes autoritários se estabilizaram; na Praça Maidan triunfou o nacionalismo mais reacionário que normalizava o nazismo histórico como interlocutor; na Europa, a guerra civil síria e a destruição da Líbia resultaram em uma crise migratória de dimensões jamais vistas, o que por sua vez acentuou o sentimento xenófobo e racista de uma parcela importante da população; no Reino Unido a vitória de um Brexit reacionário, que nada tinha a ver com a crítica de esquerda e progressista à União Europeia; no Oriente Médio, chegamos a ver o surgimento de um efêmero califado, que impactou enormemente a consciência do mundo inteiro; no Afeganistão o retorno do Talibã ao poder com as imagens das pessoas caindo dos aviões ao tentarem fugir do país; nos Estado Unidos, Europa e América Latina a ascensão de figuras neofascistas como Trump, Bolsonaro, Le Pen, Andre Ventura e seu Chega em Portugal, ou o Vox na Espanha; nas redes sociais, a explosão do ódio, da misoginia, da xenofobia, da lgbtfobia; no mundo do trabalho, o avanço da precarização e da uberização; nas relações internacionais, a crise do sistema mundial de Estados e as ameaças cada vez mais frequentes de uma Terceira Guerra Mundial, que pode ser nuclear ou não; no mundo inteiro, o início da crise climática e a intensificação das tragédias ligadas a ela. Todos esses fatos e muito outros, tão contraditórios entre si, parecem no entanto fortalecer um mesmo beneficiário: a extrema-direita mundial. Foram cerca de dez anos ininterruptos de seu crescimento e esse processo está em curso ainda hoje.

Mas qual a relação da esquerda radical com o fenômeno da ultra-direita e do neofascismo? Em geral, nossos camaradas reconhecem o fenômeno do fascismo como um inimigo a ser enfrentando: polemizam, denunciam, desmascaram. Isso está ótimo. Mas a partir daí as relações variam. Uma parte importante da esquerda se nega a admitir que a derrota do neofascismo é realmente a grande tarefa da atual quadra histórica: oscila, minimiza sua força, relativiza seu potencial destruidor, flerta com políticas aventureiras de autopromoção e autoproclamação, ao mesmo tempo em que aponta para a esquerda moderada como alvo preferencial de suas críticas. Essa parte da esquerda radical vive presa a um passado em que os reformistas e a conciliação eram os principais inimigos ou obstáculos a serem enfrentados. Se negam a encarar a nova realidade em que o regime democrático liberal com liberdades e direitos limitados está ameaçado de ser substituído por uma distopia política, econômica, social, climática, cultural, tecnológica, racial, de gênero e jurídica. Assim como aconteceu no pós-guerra e no final dos anos 1980, uma parte importante da esquerda (aqui a crítica não se restringe aos movimentos de inspiração trotskista) se nega a reconhecer a mudança da etapa e a possibilidade de uma regressão de grandes proporções e longa duração: o perigo da derrota histórica. 

É por isso que a ascensão do neofascismo é uma espécie de ferida narcísica em nosso movimento. Porque ela nos mostrou de maneira crua e dura que a crise do sistema não implica em crescimento e fortalecimento da esquerda. Também não resulta necessariamente em uma reação positiva das massas, no avanço de sua consciência, organização ou disposição de luta anticapitalista. Essa visão é uma sobrevivência do velho ponto de vista milenarista, em que o capitalismo morreria naturalmente, em uma espécie de colapso final, sufocado por suas próprias contradições. Ao invés disso, descobrimos que o capitalismo pode viver uma crise profunda e sair dela pela via da intensificação de seus traços mais bárbaros.

A missão que realmente importa

Não há saída com vida do século 21 que não passe, em primeiro lugar e acima de tudo, pela derrota do fascismo  em todas as suas variantes. Esse combate exige de nós a reconstituição da unidade da classe trabalhadora em toda a sua diversidade racial, de gênero, de nacionalidade, mas também política e ideológica, ou seja, demanda a colaboração sincera de todas as organizações que representam os distintos setores de nossa classe. As velhas organizações conciliadoras têm seus pecados e serão julgadas à luz da história. Mas tudo em seu tempo. As correntes de esquerda que não entenderem que se trata de construir um cordão sanitário contra o fascismo estão condenadas ao desaparecimento ou a uma atuação testemunhal diante dos grandes fatos que se avizinham.

A ascensão do neofascismo mostrou os limites de nosso movimento porque não podemos fazer muita coisa sozinhos nem somos os herdeiros naturais de um mundo que desmorona. Mas mostrou também que, se quisermos, podemos cumprir um papel progressivo e útil de vanguarda na defesa da unidade da classe e da esquerda. Se fizermos isso, teremos realizado a missão que verdadeiramente importa: não aquela elaborada por nossos desejos, mas aquela que deriva da situação real. Quem quer lidar com os desafios de toda a história humana, deve aprender a lidar primeiro com os desafios de seu próprio tempo. Nossa teoria e nossa tradição oferecem todas as ferramentas para fazê-lo. Essa seria a melhor forma de honrar a bandeira que carregamos.

Notas

1 Trótski, Leon. “Manifesto da IV Internacional Sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial”. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1940/05/manifesto.htm#tr1. Acesso em 24/03/25.


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