juventude
Para que serve a oposição de esquerda hoje na UNE?
Publicado em: 13 de fevereiro de 2025
Foto: @tainanmedeirosfoto
Entre o final de janeiro e o início deste mês de fevereiro, milhares de estudantes se reuniram em Recife, participando do 16º Conselho Nacional de Entidades de Base (CONEB) e da Bienal da UNE. Os dois eventos tinham como objetivo debater os rumos da conjuntura e traçar os planos da União Nacional dos Estudantes para o próximo período.
Acreditamos que, desde o balanço do credenciamento até a plenária final do evento, um importante questionamento se abre: A UNE é hoje um empecilho ou um ponto de apoio na atual correlação de forças? Qual papel cumpre a oposição de esquerda na entidade? Esta linha de oposição contribui para o desenvolvimento das lutas sociais? Ou, ao contrário, representa somente a continuidade, quase que por inércia, de uma tática de disputa que corresponde a um Brasil que não existe mais?
Há uma mudança grande em curso no mundo
O início do ano foi marcado pela posse de Donald Trump. O discurso extremamente radical abordou todos os pontos do programa que o republicano já havia lançado como projeto de poder: “nós vamos perfurar, baby, perfurar”; “só haverá dois gêneros: o masculino e o feminino”; “o Golfo do México vai se chamar Golfo da América”. Extremamente nacionalista e religioso, o discurso foi uma declaração de guerra contra os imigrantes, contra as outras nações, contra diversas organizações como a OMS, da qual o país se retirou já nos primeiros decretos do novo presidente.
Chama atenção a presença de um bloco de bilionários que representam monopólios poderosos, como Elon Musk (X e Tesla), Jeff Bezos (Amazon e Blue Origin), Mark Zuckerberg (Meta) e Tim Cook (Apple). Juntos, eles têm uma fortuna maior do que o PIB atual de 175 países. Se há alguma dúvida de que a esquerda é o alvo, basta ver a entrevista recente em que o presidente declara: “estamos no processo da segunda Revolução Americana, que permanecerá sem derramamento de sangue se a esquerda permitir”. Pouco tempo depois da notícia do cessar-fogo em Gaza, que chegava como aparente alívio, Trump declarou que pretende ocupar o território e impedir os palestinos de voltarem para suas casas. O cenário não é nada animador.
É bom lembrar que um dos fatores da derrota dos golpistas no dia 8 de janeiro foi a ausência completa de apoio internacional, fator favorável que já não existe mais. A vitória de Trump nos Estados Unidos tem impacto direto na extrema-direita brasileira, fortalecendo diretamente seu plano de poder.
Evidentemente, estamos inseridos em um contexto de crise múltipla, que afeta várias dimensões da vida e da sociedade, incluindo aqui os danos ao planeta, cuja temperatura subiu 1,55 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais, confirmando oficialmente que 2024 foi o ano mais quente da história. A existência da extrema-direita é uma resposta de classe, de uma ala radical da burguesia que busca impor uma nova dominação sob bases autoritárias e fascistizantes.
E qual é a nossa resposta de classe?
Em 1979, em uma votação unânime, a UNE aprovou no seu estatuto a defesa da classe trabalhadora. Na sua história, a entidade foi muito além de ser uma mera representação de interesses setoriais ou de demandas corporativas dos estudantes brasileiros. A sua atuação mais contundente, e de repercussão nacional, tem a ver com a luta contra a ditadura e a defesa da democracia brasileira, em seus momentos mais sombrios. Trata-se de uma entidade que tem um lado nítido na luta de classes. Uma vocação para a defesa dos direitos sociais, da luta dos trabalhadores contra os patrões, dos sem-teto contra a especulação imobiliária, dos sem-terra contra o latifúndio e o agronegócio, das mulheres contra o machismo, das negras e negros contra o racismo, das LGBTIA+ contra toda forma de preconceito, a luta da vida contra o lucro, dos de baixo contra os de cima.
Neste sentido, a resposta concreta para os desafios da conjuntura exige colocar questões estratégicas: como os estudantes podem fortalecer a rearticulação da luta da classe trabalhadora e de todo o povo pobre e oprimido em um contexto tão difícil? Como a UNE pode ser um instrumento útil, como foi tantas vezes na história do Brasil, para dar um passo à frente na luta de classes?
A tarefa da esquerda é ser oposição à UNE? Dentro de qualquer entidade ou movimento social, a disputa política interna sempre deve estar vinculada às grandes questões políticas, aos grandes desafios da luta de classes. Qualquer grupo deve ter o direito de fazer oposição e propor mudanças, novas ideias. O que se questiona aqui não é o direito democrático em si, mas o mérito de uma oposição que parece carecer de bases políticas para justificar sua existência atualmente. No manifesto lançado para preparar o CONEB, a juventude do Juntos argumenta: “hoje, temos a Oposição de Esquerda como espaço fundamental da articulação entre setores que compreendem necessário um pólo independente dentro do movimento estudantil”. Em outro recente texto, aponta que “se no CONUNE de 2023, com o início do governo, fazíamos a disputa pela independência política da entidade, fica nítido que a escolha de sua direção vai no mesmo caminho da UNE nos primeiros governos Lula e Dilma”.
Em ambos os casos, um ponto decisivo é ignorado: a UNE já votou no seu último Congresso que sua posição é de independência frente ao Governo Lula 3. E muito mais importante que a votação em si é o papel que a UNE cumpriu nos fatos decisivos da atual conjuntura nacional, o que não aconteceu na atuação da entidade nos primeiros governos Lula e Dilma – sobre isto, concordamos que a UNE, por diversas vezes, e por escolha política, foi um entrave na mobilização estudantil.
Não é possível afirmar que a UNE atualmente caminha pelos mesmos rumos políticos do que nos primeiros anos dos governos Lula e Dilma. Se por um lado, no início dos anos 2000 e durante toda a década, vimos uma UNE apática, atuando como correia de transmissão dos governos petistas, inclusive quando aconteceram cortes brutais na educação, por outro, vemos hoje uma UNE que tem sido linha de frente das mobilizações, inclusive pautando parte das críticas necessárias contra o governo Lula.
A entidade se posicionou pela prisão de Bolsonaro, articulou junto às frentes o ato do dia 10 de dezembro pelo “sem anistia”; se posicionou contra o ajuste fiscal do Governo, defendendo os interesses da educação. Em sua última resolução de conjuntura, apresentou exigências importantes, sobre mais orçamento para a educação, e de que para fortalecer um projeto popular e de isolamento à extrema direita, o governo não pode ceder às pressões do centrão e do mercado financeiro. Além disso, de forma concreta, a entidade aprovou uma carta unitária que convoca diversas mobilizações nacionais para o mês de março. Ou seja, no movimento social, a UNE está entre os setores que mais têm cumprido com o importante papel de pressionar o governo à esquerda e pautar as principais disputas políticas da sociedade.
Os companheiros da oposição argumentam que o nível de mobilização social deveria ser maior. Claro que concordamos. Mas não é possível substituir a realidade por um desejo. A verdade é que a dificuldade de mobilização não pode ser explicada apenas por uma falta de vontade da majoritária, e sim em grandes questões estruturais que marcam a conjuntura defensiva que vivemos.
Por que não existem fortes mobilizações?
Segundo parte da oposição, o objetivo “é conectar a luta aos lutadores”. A situação seria muito melhor se já houvesse uma onda de lutas e a grande tarefa de uma entidade nacional como a UNE fosse coordenar e conectar esses lutadores. Mas a verdade é que, apesar de existirem muitos motivos para lutar, a conjuntura nacional, incluindo o movimento estudantil, é de refluxo. As razões desse refluxo, sem dúvida, não se esgotam na falta de vontade ou de iniciativa da UNE, e dar a explicação errada certamente vai nos levar a conclusões erradas sobre como sair dele.
Podemos resumir, no mínimo, quatro fatores que impactam negativamente o ânimo de luta do movimento estudantil hoje: a composição social das universidades mudou, a maioria dos estudantes trabalha e sente na pele as dificuldades objetivas que também compõem o cenário de refluxo da classe trabalhadora; existe um impacto da ofensiva da extrema-direita, que afeta o ânimo de luta, a disposição, a capacidade de acreditar que as coisas podem mudar, ampliando a apatia; a falta de unidade do movimento estudantil e as disputas, por vezes vazias e despolitizadas, afastam boa parte dos estudantes do ME e na sua vontade de se organizar; por fim, possivelmente ainda não tivemos uma recuperação plena pós-pandemia, ainda sofremos os danos dos anos de aula online, do enorme impacto subjetivo daquele processo na vida e na saúde mental dos jovens.
É evidente que o desafio é mudar este contexto, mas justamente não vamos mudá-lo se estivermos convencidos de ideias erradas, apontando o dedo uns para os outros, quando, na verdade, um dos fatores que pode ser determinante para dar coesão e confiança para lutar é justamente a unidade. Nós pensamos que, no contexto atual, um espaço de picuinhas, polêmicas forçadas e acusações mútuas terá o efeito prático de afastar o estudante do movimento. Nosso desafio é propor ações coletivas, unitárias, que reforcem que não apenas é possível, como é necessário e urgente romper o ciclo de refluxo atual.
Unidade para contra-atacar
Quais são as brechas que apontam o caminho? No último período, ocorreram alguns momentos em que o contra-ataque demonstrou capacidade de colocar a direita na defensiva: a luta contra o PL do estupro e a Vida Além do Trabalho contra a escala 6×1. É evidente que a poderosa unidade das forças de esquerda, dos partidos e dos movimentos foi importante, além da linha política correta, explicativa, buscando considerar os limites da consciência na atual situação.
A prisão de oito militares, incluindo o Braga Neto, um general de quatro estrelas, é um fato inédito na história do Brasil. Toda a investigação e publicização da trama golpista, a repercussão do filme “Ainda Estou Aqui” e a luta política em curso contra a anistia e pela prisão de Bolsonaro, ganham um caráter estratégico no atual contexto. O plano de retorno à presidência da extrema-direita em 2026 não inclui apenas uma luta eleitoral, mas, sobretudo, uma luta pelo poder e por outro regime político. Não temos dúvida de que isso exige da nossa geração um grau de unidade muito maior.
O Brasil de 2025 é completamente diferente dos três primeiros governos do PT. Não é possível que a proposta tática seja exatamente igual. Não é possível que a experiência com a extrema direita no Brasil e no mundo não provoque mudanças. Não é possível que a nítida relocalização política da UNE seja desconsiderada. É o momento para uma reflexão profunda da oposição de esquerda da UNE.
Desde o último Conune, a Juventude Sem Medo já apresentou uma mudança. Votamos juntos na resolução de conjuntura com a majoritária, mas também apresentamos uma terceira chapa, fora da majoritária e também fora da oposição. Neste CONEB, apresentamos novamente uma resolução de conjuntura com a majoritária, em nossa opinião, superior politicamente à última, porque arma o movimento estudantil para os principais desafios do ano. Essas mudanças aconteceram, porque nossa tática será sempre definida com base nos grandes desafios políticos e no desenvolvimento da luta de classes.
A UNE sai moralizada desse CONEB, ao apontar a necessidade de mobilizações, ao pautar os principais temas políticos da sociedade e apresentar um calendário de lutas, que precisa ser construído de forma unificada. Esse é o momento de colocar em teste as organizações que constroem o movimento social e o seu compromisso com uma agenda unificada. O momento histórico nos pede grandeza para organizar o contra-ataque.
Marina Amaral é diretora de Movimentos Sociais da UNE (2023 – 2025). Victoria Ferraro é ex-diretora da UNE (2017 – 2019) e (2019 – 2021). Ambas são da Coordenação Nacional do Afronte.
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