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A turbulência começou

Valerio Arcary diz: “O Brasil, mesmo com suas imponentes reservas de mais de US$ 350 bilhões de dólares, não está blindado”

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A disputa pelo preço do petróleo está sendo o gatilho. No seu centro está uma disputa de espaço no mercado mundial, em que a Rússia resiste às ofensivas do nacional imperialismo de Trump, que manipula a Arábia Saudita e dobra a aposta. Muito incerto o desenlace desta briga.

Mas a desvalorização das ações e a valorização do dólar respondem, essencialmente, à fuga para a segurança com a previsão de que a economia mundial deve atravessar, em 2020, mais do que uma desaceleração, uma contração cuja dimensão é imprevisível. O derretimento das Bolsas, em escala internacional, já tinha se iniciado sob o impacto das medidas de quarentena de emergência diante da pandemia do coronavírus. Mais um episódio de “profecias que se autorrealizam”.

O Brasil, mesmo com suas imponentes reservas de mais de US$ 350 bilhões de dólares, não está blindado. Na periferia, o perigo é real e imediato, na forma de fuga de capitais, desvalorização da moeda, déficit no balanço de pagamentos, crescentes pressões inflacionárias e, finalmente, recessão, aumento do risco-país, portanto, desclassificação pelas agências, o que coloca, potencialmente, no horizonte o perigo de moratória. Em outras palavras, perigo de “argentinização” do cenário econômico. E há que acrescentar o perigosíssimo fator Bolsonaro.

Claro que é necessário manter o sentido da perspectiva. Somente dentro de um ou dois meses teremos melhores condições de aferir a dimensão real da pandemia e sua sequelas. Ainda é cedo para retirar conclusões. Mas parece que o atraso da Itália em tomar medidas severas de quarentena foi um grave erro.

O que é certo é que uma parte da gigantesca massa de capitais fictícios começou a ser destruída pela desvalorização das ações nesta segunda 9 de março de 2020, e a fogueira ainda está ardendo. Toda bolha especulativa um dia tem que explodir. Mercados superalavancados pela financeirização um dia têm que estourar. As vendas se precipitam para a realização de lucros enquanto há tempo.

A etapa do QE (Quantitative Easing), o relaxamento monetário, como estratégia central está chegando ao fim. O FED anunciou na semana passada um corte na taxa de juros que, evidentemente, não foi suficiente para tranquilizar o mercado. Christine Lagarde à frente do Banco Central Europeu já alertou que são necessárias estratégias fiscais com elevação de gastos públicos, aplaudida pelo por keynesianos como Paul Krugmann.

Um pouco de perspectiva histórica pode ajudar a compreender a turbulência que apenas começou. A economia capitalista conheceu, ao longo dos últimos quarenta anos, quatro ciclos de relativo crescimento econômico, de menor força que a expansão vigorosa dos trinta anos do pós-guerra, mas ainda assim expansão. Eles dependeram de uma combinação pluricausal complexa. Política e economia se articularam em uma combinação de fatores com pesos relativos variados que obriga a análise histórica a um trabalho de “ourivesaria” investigativa delicada.

Há que considerar a ofensiva vitoriosa de Reagan e Thatcher nos EUA e na Inglaterra no início da década de oitenta, a restauração capitalista na URSS e Leste Europeu a partir de 1989/91, a dinâmica da recolonização na América Latina nos anos noventa, o impacto do crescimento acelerado e constante da China, sobretudo, nos últimos 20 anos. Mas repousou, também, na expansão do consumo do mercado norte-americano, portanto, da financeirização.

Nos dois primeiros mini-booms, nos anos oitenta e noventa, verificaram-se quedas importantes nos preços do petróleo e dos grãos, embora não nos anos 2000; o desenvolvimento da micro-eletrônica e da telemática foram significativas para o impulso da restruturação produtiva, sobretudo, nas duas últimas décadas do século XX; o crescimento chinês e, em menor medida, da Índia, foi um fator de impulso, sobretudo, depois de 2008; a estagnação do salário médio nos EUA e a restauração capitalista, incorporando centenas de milhões ao mercado mundial, pressionou para baixo o salário médio nos EUA, Europa e Japão.

A financeirização facilitou a expansão do crédito que impulsionou os mini-booms dos anos oitenta com Reagan, dos anos noventa com Clinton, dos anos de 2001/2008 com Bush, e na última década o relaxamento monetário nos oito anos de Obama. Operaram, com força de influência variada em cada década, os outros quatro fatores identificados por Marx como contra-tendências de freio à queda da taxa média de lucro, expressão da decadência do capitalismo: o barateamento das matérias primas; a renovação de tecnologias; a internacionalização até à última fronteira e, o mais importante, o aumento da exploração do trabalho.

A inovação mais significativa do capitalismo nos últimos 40 anosfoi a financeirização. A alavancagem de capitais assumiu uma nova escala, totalmente diferente do passado. Financeirização sempre existiu, porque o recurso ao crédito é inerente à operação do capitalismo. O que mudou foi que a grandeza do giro de capitais da produção para o mercado financeiro, e a magnitude da expansão das dívidas. Dívidas de consumo das famílias nos países centrais, dívidas da corporações, em especial para aquisções e fusões, e dívidas públicas, em proporções muito maiores que no passado.

A financeirização permitiu ao capital ganhar tempo, na medida em que a dimensão colossal do volume de capitais acumulados compensaram, transitoriamente, a lentidão da valorização. A financeirização acelerada, desde os anos 80, deu um salto de qualidade com a criação dos derivativos.

Derivativos são ativos financeiros, cuja valorização deriva do valor de outro ativo, que pode ser também, financeiro (moedas, títulos de dívidas públicas, ações) ou uma mercadoria (ouro, imóveis, commodities). Podem ser, também, operações financeiras que tenham como base de negociação o preço de um ativo negociado nos mercados futuros. De todos os derivativos, os mais perigosos parecem ser os swaps (em inglês, credit default swaps, CDS). Os swaps são uma cobertura de risco, algo parecido a uma apólice de seguro para cobrir (em inglês, fazer hedge) uma possível moratória de uma dívida.

Mas há grandes diferenças com os seguros. Por exemplo, essas operações não estão reguladas. As instituições que oferecem esses tipos de contratos não estão obrigadas a manter reservas relacionadas com as operações que realizam. Os CDS foram inventados pelos bancos precisamente para evitar as exigências de fiscalização sobre as suas reservas. Se outra instituição absorvia o risco (em troca de um prêmio), o banco podia liberar suas reservas.

A alavancagem disparou para o espaço, e o volume dos derivativos passou a ser incalculável. Os CDS foram usados, também, para contornar as restrições que os fundos de pensão tinham para emprestar recursos a empresas com uma qualificação de risco insuficiente por parte das agências. As medidas de regulação aprovadas quando da última crise mundial em 2008 não foram suficientes. Desde 2010 o BIS de Basiléia passou a fiscalizar a implementação de um acordo que prevê a exigência de aumento das reservas bancárias de 4,5% para 6% do valor doa ativos bancários (1). O que foi pouco relevante. A montanha de endividamento continua, perigosamente, elevada. Estima-se que o volume de dívidas acumulados por Estados, corporações e famílias se aproxima de três PIB’s mundo anuais.

O mesmo problema de fundo, a perspectiva de uma longa estagnação do capitalismo, está na raiz dos endividamentos públicos acima dos 100% dos PIB’s nos países centrais. O endividamento do Estado não foi senão a antecipação para o presente de receitas fiscais futuras, os impostos que serão pagos nos anos por vir e, em prazo mais longo, pelas futuras gerações. Ao contrário de empresas, Estados não podem falir. Podem cair em situação de inadimplência por incapacidade de rolagem dos juros, com moratória das dívidas. Os últimos 12 anos de Quantitative Easing ou relaxamento monetário acentuaram a assimetria entre os países imperialistas e os dependentes. O domínio econômico mundial enrijeceu.

Os países centrais, em especial os EUA, podem contornar esse perigo de uma forma diferente dos países dependentes. A proporção da dívida pública sobre o PIB aumentou, indefinidamente, sem maiores consequências. Porque podem praticar taxas de juros menores, até negativas como no Japão, o que diminui o custo de rolagem da dívida pública para remunerar os rentistas. Tão ou mais importante, suas moedas – dólar, libra, euro, yen, franco suíço – são usadas para entesouramento.

O perigo de moratória na periferia é real. Foi o que aconteceu com o Brasil durante o governo Juscelino Kubitschek, nos anos 50, e José Sarney, nos anos 80. Isso significa que países com inserção dependente, mesmo o Brasil, um híbrido de semimetrópole regional e semicolonia, não conseguem se endividar além de sua capacidade de pagamento. Não nos deve surpreender o dólar se aproximando da cotação de R$ 5,00. Porque os investidores perderão a confiança nos títulos, e exigirão em contrapartida juros mais elevados para renovação dos empréstimos.

Um maior endividamento se traduzirá em um comprometimento de despesas que impedirá investimentos futuros e provocará recessão crônica, ou desestabilização política pelos cortes nas despesas dos serviços públicos com sequelas sociais imprevisíveis. A situação vai ficar mais perigosa.

(1)A informação está disponível em: http://www.swissinfo.ch/por/specials/crise_financeira/Novas_regras_para_reforcar_os_bancos.html?cid=28321876. Consulta em 17/11 /2011.

Marcado como:
crise econômica