Pessimismo da razão, otimismo da vontade: notas para um aforisma pré-gramsciano
Publicado em: 18 de março de 2015
Betto della Santa
Para Edmundo, com saudades.
“A esperança é a alegria inconstante nascida da ideia de coisa futura ou passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida. O medo é a tristeza inconstante nascida da ideia de coisa passada ou futura de cujo desenlace duvidamos em certa medida. Segue dessas definições que não há esperança sem medo e nem medo sem esperança. (…). Quem está suspenso na esperança – duvida do possível desenlace –, teme enquanto espera, quem está suspenso no medo – duvida do que possa acontecer –, espera enquanto teme.” (Baruch de Spinoza)
“Se otimistas são tolos, já pessimistas, não deixam de ser chatos. Bom mesmo é ser realista esperançoso.” (Ariano Suassuna)
As frases tem história. Sucessivas vagas de narradores, diferentes formas e sentidos. “Pessimisme de l’Inteligence, Otimisme de la Volonté”: a primeira vez que um tal aforisma, amiúde associado a A. Gramsci, vai aparecer em seus escritos é num curto artigo de jornal não-assinado, “Discorso agli Anarchici”, à edição semanal de 3-10 abril de 1920 no L’Ordine Nuovo.(*)
“A concepção socialista do processo revolucionário se caracteriza por duas notas fundamentais que Romain Rolland[1] resumiu desde a palavra-de-ordem — o ‘Pessimismo da Razão’ e o ‘Otimismo da Vontade’.” (ON, N.º 43).
A mensagem crítica do então jovem Gramsci – endereçada, esta, aos anarquistas italianos – tratava-se, sobretudo, de rigorosa e apaixonada exposição histórica concreta da concepção de mundo total dum algo jovem e já moderno proletariado (o «comunismo marxista») tal aquilo que Edmundo Dias (1996) viria a nomear enquanto a real «racionalidade que se faz história». (p.9)
Em seu discurso sobre a particularidade de classe de cultura/cotidianidade/modo de vida operários do proletariado piemontês – conselho de fábrica, Turim, bienio rosso (1919-1920) – o jovem sardo intendia à sua respectiva generalização através das lutas de classes, o que passaria a conceber enquanto “hegemonia”.
Era a capacidade mesma de construção duma nova visão social de mundo, para outro mundo possível e necessário, a partir dum amplo movimento de transformação intelectual/moral em vistas à realização duma nova forma histórica “superior e total”.
Gramsci repreendia, energicamente, a fraseologia anarquizante – e vazia de sentido – conquanto não-voltada à vivificação duma nova forma civilizatória integral realmente existente. Não era outra a razão-de-ser do órgão periódico L’Ordine Nuovo: informar a uma nova Ordem social e política (in nuce), já ex-posta a partir da perspectiva da «educação de educadores».
Já noutro momento, em carta desde o cárcere fascista – destinada a seu irmão, ao dia 19 de dezembro de 1929 –, sua tão-cara fórmula política adquire tons pessoais e, até, biográficos. Ao que consta, Carlo provavelmente teria carregado nas tintas ao descrever às condições de vida do irmão prisioneiro, no mês anterior – à mãe de ambos – e, na missiva, Antonio, ora, tentava convencer (em «um sermão em regra») a Carlo de dissuadir a velha matriarca da longa viagem, de trem e barco e, sobretudo, a um já algo amargo reencontro.
O que seria a hora e o lugar da insubordinação conselhista em menos de dez anos se faz o tempo e o espaço do cárcere fascista. Do espectro da revolução à sua diametral oposição, o mote de análise da vontade coletiva, agora, serviria a uma síntese dialética da razão íntima a si mesmo:
“de resto, você mesmo viu que eu não estou abalado, desanimado e nem deprimido. Meu estado de espírito é tal que mesmo que já fosse condenado à morte continuaria tranqüilo e até mesmo, na noite anterior à execução, talvez estudasse uma lição de língua chinesa. (…) Parece-me que em tais condições [I Guerra], prolongadas durante anos, e com tais experiências psicológicas, o homem deveria alcançar um grau máximo de serenidade estóica, e adquirir a convicção profunda de que ele tem, em si mesmo, a fonte das próprias forças morais, de que tudo depende dele, de sua energia, de sua vontade, da férrea consciência dos fins que se propõe, e dos meios que emprega para realizá-los — a ponto de jamais desesperar, e não cair nunca mais naqueles estados de espírito – vulgares e banais – a que se chamam pessimismo e otimismo. Meu estado de espírito sintetiza esses dois sentimentos e os supera: sou pessimista com a inteligência mas um otimista com a vontade” (GRAMSCI, 2005, p. 382).
Há diversos momentos em que o duo conceitual, de amplo alcance teórico / estratégico, ressurge ao largo do ritmo do pensamento gramsciano. Mas parece não haver melhor contraste possível ou imaginável entre motivação geradora subjetiva e austera determinação estrutural, “distanciamento” e/ou “aproximação” ou, enfim, razões reais para vulgares e banais Otimismo ou Pessimismo.
Tal Aufhebung, ou superação dialética, se trata duma apropriação crítica de A. Gramsci, tomada de empréstimo à resenha de R. Rolland – a Le Sacrifice d’Abraham –, publicada esta no jornal francês L’Humanité, de 19 de março de 1919. “O que mais amo em [Raymond] Lefevbre”, dizia Rolland, sobre o autor mesmo de Le Sacrifice…, “é essa íntima fusão — que, para mim, constitui o homem verdadeiro — de pessimismo da inteligência, que penetra toda ilusão, e otimismo da vontade.”
Como se pode notar, há uma dialética viva entre o homem-coletivo e o autogoverno do indivíduo no célebre pensamento rolland-gramsciano (a este respeito, vide Ragazzini, 2002) que se pode buscar na acepção visada por Marx sobre ente-espécie, e a ideia mesma, de ser-genérico.
Como formar fortes pessoas que não se desesperem diante dos piores horrores, nem se exaltem diante de qualquer tolice? Que atentem ao pretérito e perspectivem o porvir, mas não descuidem do tempo presente? De que modo, enfim, alentar os nexos entre a teoria e a prática?
Uma vontade férrea – programaticamente consubstanciada – há-de nascer do seio do fértil solo de sóbria pesquisa coletiva das tendências que conformam o real. O pessimismo gramsciano não deita suas raízes em concepção negativa, duma pressuposta “natureza humana”.
A sua ênfase no caráter radicalmente social e histórico do mundo dos homens – e sua crítica à distinção política, governantes/governados – permite desnaturalizar tanto relações sociais quanto consciências individuais.
O pessimismo implica certa cautela, na análise da situação e da relação de forças, bem como dada desconfiança, de qualquer intento de subestimar aos inimigos. Mas é o otimismo a sua contraparte. E é essa a parte quem não se pode esquecer; esse é o seu lembrete «fur ewig».
Este, não se verga à realidade efetiva das coisas tal como são mas, enfim, age sobre elas, em vistas a transformá-las. Seja já para redigir jornais em conselhos proletários – fazendo a revolução – ou para escrever cartas no cárcere fascista – sofrendo a contrarrevolução –, tanto em dimensão social, quanto interpessoal. Nada – nem nenhuma mudança – deve parecer impossível.
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(*) Agradecemos ao colega historiador Claudio Batalha a informação de que, ao que consta, a referida frase remontaria a uma consistente genealogia do saber desde o jornalista communard Benoît Manlon e o literato niilista Friedrich Nietzsche passando pelo dramaturgo socialista francês Romain Rolland e, enfim, o dirigente comunista italiano Antonio Gramsci. (In: SPRIANO, Paolo. “Come Quella ‘Massima’ Arrivò Fino A Gramsci?”, In: Corriere della Sera, 29/10/1984 apud La Ultima Ricerca, Roma, Ed.l’Unità, 1988).
Obs.: O texto é parte da tese de doutorado – Otimismo da vontade, pessimismo da razão: English Marxism, Anderson Translation & Integral Journalism of New Left Review (or an internationalist world-marxism in the street-fighting years of western europe) – defendida, por nós, ao dia 7 de agosto de 2014, no Centro de Documentação e Memória, Universidade Estadual Paulista, São Paulo-SP, Pça. da Sé.
Referências
Umberto Cerroni. Gramsci: le sue idee nel nostro tempo. L’Unità: Roma, 1987.
Edmundo Dias (et. al.). O Outro Gramsci. São Paulo: Xamã , 1996.
Antonio Negri. Fabbriche del Soggeto – profili, protesi, transiti, macchine, paradossi, passaggi, sovversione, sistemi, potenze: appunti per un dispositivo ontologico. XXI Secolo (Bimestrale di Politica e Cultura N.º1). Settembre-Ottobre 1987.
Guido Liguori e Pasquale Voza (a cura di). Dizionario Gramsciano 1926-1937. Stampa Roma: Carocci, 2009.
Dario Ragazzini. Leonardo nella Società di Massa: teoria della personalità in Gramsci. Moretti & Vitali: Bergamo, 2002.
Paolo Spriano. La Ultima Ricerca. Roma: Ed.l’Unità, 1988
[1] Romain Rolland (1866-1944) foi um escritor, dramaturgo, ensaísta, historiador e musicólogo francês.
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