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Há quase cem anos: revolucionários intrépidos contra burocratas armados

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Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Tanta mentira, tanta força bruta”
(Chico Buarque, em Cálice)

Após a morte de Lênin, em janeiro de 1924, a acirrada luta política no interior do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e da Internacional Comunista (IC) entre a fração estalinista e a oposicionista de esquerda, liderada por Trotsky, foi, sem dúvida, um confronto entre duas perspectivas opostas e inconciliáveis: o nacional-reformismo e o internacionalismo revolucionário. Em maior ou menor grau, todas as polêmicas político-programáticas entre os dois agrupamentos que disputaram a ferro e fogo a direção da União Soviética e do movimento comunista internacional derivaram deste confronto.

Assim, por exemplo, a oposição entre a defesa de Trotsky da tomada do poder pelo proletariado nos países atrasados e estratégia “etapista” aplicada nestes pela IC estalinizada não pode ser compreendida fora desta oposição entre a concepção internacionalista da revolução encampada pelos trotskistas e a teoria estalinista que vislumbrava a possibilidade de construção do “socialismo em um só país”. Não é equivocado dizer, desse modo, que a política da IC para os países “coloniais” e “semicoloniais”, assim como toda a política “externa” da URSS, determinava-se pelos interesses da burocracia estalinista de limitar a Revolução de Outubro aos seus marcos nacionais, o que possibilitaria, segundo a perspectiva burocrática, uma situação internacional favorável à sua manutenção (da burocracia) enquanto uma casta privilegiada. Decerto, a expansão da revolução para outros países, fossem eles do Ocidente ou do Oriente, criaria um ambiente de agitação política no interior do Estado soviético pouco propício à consolidação de um setor social localizado “acima” da classe trabalhadora, uma “excrescência parasitária”, segundo as palavras de Trotsky.

Pode-se dizer, portanto, que existia uma relação direta entre o isolamento da Revolução de Outubro, que havia favorecido o surgimento da burocracia, e a política “externa” desta última que, por intermédio da IC, mantinha e acentuava esse isolamento: “A burocracia soviética ganhava segurança à medida que a classe operária internacional sofria derrotas cada vez mais pesadas. Entre esses dois fatos, a relação não é unicamente cronológica, mas causal e recíproca: a direção burocrática do movimento contribuía para as derrotas; as derrotas fortaleciam a burocracia.” Operando com uma perspectiva materialista, Trotsky assim analisou a ruptura da direção estalinista com o princípio marxista do internacionalismo:

“Já explicamos muitas vezes que esta revisão dos valores foi provocada pelas necessidades sociais da burocracia soviética: tornando-se cada vez mais conservadora, ela aspirava a uma ordem mundial estável; desejava que a revolução terminada, tendo-lhe assegurado uma situação privilegiada, fosse suficiente para a construção pacífica do socialismo e reclamava a consagração desta tese. Não retornaremos mais a esta questão; limitar-nos-emos a acentuar que a burocracia está perfeitamente consciente da ligação que existe entre suas posições materiais e ideológicas e a teoria do socialismo nacional.”

Cientes de quais são as “necessidades sociais” das quais se originavam as elaborações estalinistas, consideramos importante destacar aqui um importante elemento constitutivo, em termos teóricos, tanto do raciocínio “etapista” da IC acerca do caráter da revolução nos países atrasados, quanto da utopia reacionária da burocracia soviética de edificação do socialismo “em um só país”: a ruptura com a noção de totalidade.

Vale assinalar que a crença na possibilidade do “socialismo em um só país” era, até a morte de Lênin, algo sequer cogitado dentro dos quadros dirigentes do PCUS e da IC, tamanho o grau de afastamento da tradição marxista que tal perspectiva representaria. Marx e Engels, herdeiros da filosofia totalizante de Hegel, haviam considerado o capitalismo justamente como uma etapa histórica na qual o mundo tornava-se cada vez mais integrado; o socialismo, enquanto um momento posterior e superior ao capitalismo, não poderia, portanto, de modo algum, limitar-se aos quadros nacionais já extrapolados pelas contradições sociais. Lênin, por sua vez, enxergou a guerra mundial iniciada em 1914, oriunda da disputa entre as grandes potências capitalistas pelas regiões “coloniais” do globo, como uma manifestação inconteste de que a dinâmica da reprodução ampliada do capital transbordava as fronteiras nacionais; o imperialismo constituir-se-ia em um fenômeno mundial.

Assim, o célebre chamado à unidade dos “proletários de todos os países” feito por Marx e Engels ao final do Manifesto, como também a ruptura de lideranças marxistas como Lênin, Rosa, Liebknecht e Trotsky com a II Internacional quando da guerra imperialista, originaram-se não de uma solidariedade de cunho meramente passional para com a classe operária das outras nações, mas sim de uma solidariedade proletária decorrente de uma perspectiva ontológica que tomava o capitalismo enquanto uma totalidade. Consideramos, portanto, que o internacionalismo político que caracterizou o marxismo revolucionário desde os tempos de Marx resultava, antes de tudo, do que poderíamos chamar, utilizando-nos de uma categoria cunhada por Alvaro Bianchi para definir um aspecto do pensamento de Trotsky, de um “internacionalismo metodológico”, isto é, de uma perspectiva de análise do mundo dotada de um forte conteúdo totalizante.

Mesmo sem negar o internacionalismo em palavras, a burocracia soviética formulou e defendeu a possibilidade de se erigir uma sociedade socialista restrita aos limites do primeiro “Estado operário” da história. Dado este fato, inimaginável dentre os bolcheviques até a publicação em 1924 da insólita obra de Stálin intitulada Questões do leninismo, Trotsky viu-se obrigado a resgatar a defender teoricamente a tradição internacionalista do marxismo revolucionário. Em meio a ataques de todo tipo, o ex-líder do recém vitorioso buscou, por meio de textos e debates, demonstrar como o próprio Lênin sempre vinculara a continuidade da existência da União Soviética à vitória da revolução nos países mais industrializados da Europa, e que a ruptura do estalinismo com a perspectiva internacionalista tinha “tão grande importância de princípio como, por exemplo, a ruptura da socialdemocracia alemã com o marxismo no problema da guerra e do patriotismo em agosto de 1914”. Segundo Trotsky, “o ‘erro’ de Stálin, do mesmo modo que o da socialdemocracia”, não seria outra coisa “senão o ‘socialismo nacional’”.

Quando este confronto político, vencido pelo “socialismo nacional” de Stalin, está prestes a chegar ao seu centenário, não é escusado relembrar que ele não foi travado apenas por meio de textos, teses, congressos e cédulas. Assenhoreando-se do aparelho estatal da União Soviética, com destaque para a polícia política, a burocracia lançou mão de todo tipo de artifício, com destaque para a mentira e a força bruta, para derrotar seus companheiros de partido. Expressando socialmente o antagonismo entre os interesses históricos da classe trabalhadora internacional e a necessidade imediatista da burocracia soviética em preservar seus privilégios sociais, o confronto político entre estalinistas e seus intrépidos adversários na esquerda comunista não foi decidido no campo das ideias, das argumentações e dos debates democráticos.

O tempo do centralismo democrático de Lênin, da máxima liberdade de discussão interna combinada à disciplinada coesão externa, tinha ficado para trás, e o centralismo burocrático cortou na raiz qualquer possibilidade de real debate teórico, político e programático. A promessa feita pelos bolcheviques vitoriosos de 1917 de que jamais repetiriam a tragédia dos jacobinos que se guilhotinaram uns aos outros durante a Convenção foi quebrada pelo rude, inteligente e truculento secretário geral. A luta política foi contaminada pela habilidade oportunista, a vulgaridade teórica, a paranoia, a perversão, a felonia, o sadismo e a intransigente defesa de Stalin e de seus asseclas dos interesses da casta que representavam e lideravam, a qual a cada dia se separava e se opunha por completo ao proletariado e ao campesinato pobre do país.

Enquanto Trotsky, Ioffe, Riazanov, Rakovsky e tanto outros revolucionários de Outubro esgrimiram como armas livros, panfletos e teses, Stalin, Ordzhonikidze, Yagoda, Beria e outros homens de pouco talento e caráter lançaram mão de transferências de funcionários do partido, ameaças e coações a militantes indecisos, demissões de operários oposicionistas nas fábricas, além de prisões, sequestros de familiares, torturas e assassinatos dos revolucionários contrários à ditadura burocrática que então se consolidava. Se Trotsky e seus companheiros e aliados foram buscar na literatura marxista, na experiência histórica e nas práticas combativas dos trabalhadores de então os elementos para sua crítica política ao “socialismo em um só país” e suas estratégias desastradas mundo afora, Stalin e seus áulicos preferiram recorrer a gendarmes, choques, espancamentos, fuzilamentos e outros expedientes recorrentes na tenebrosa rua Lubianka (foto). Ali, há quase cem anos, a maior revolução de todos os tempos começava a perecer. Nesses tempos difíceis, seus heróis ainda têm muito a nos ensinar, sobretudo quando seus coveiros, na forma de espectros mórbidos, voltam a nos rondar.