“[…]Imediatamente após o evento que surpreendeu o mundo político inteiro como um raio que cai em céu azul, que foi condenado por alguns com um brado de indignação moral, que foi acolhido por outros como o salvamento das mãos da revolução e como punição pelos desatinos desta, mas que por todos foi apenas observado com assombro sem ser compreendido por ninguém – imediatamente após esse evento, Marx veio a público com uma descrição breve, epigramática, em que expôs todo o nexo interno do curso da história francesa desde as jornadas de fevereiro (1), em que explicou todo o milagre do dia 2 de dezembro como resultado natural e necessário desse nexo interno, sem que, para isso, precisasse mostrar pelo herói do golpe de Estado mais do que o merecido desprezo. A magistralidade com que traçou esse quadro foi tal que cada nova revelação ocorrida nesse meio tempo só veio comprovar o grau de fidelidade com que ele reflete a realidade. Essa compreensão eminente da história viva em curso, essa clarividência em relação aos fatos no momento em que ocorrem, é de fato ímpar. No entanto, isso só foi possível graças ao conhecimento preciso que Marx tinha da história francesa. Mais do que qualquer outro, a França é o país em que cada uma das lutas de classe históricas foi travada até a decisão final e em que, em consequência disso, também as formas políticas alternantes, no âmbito das quais essas lutas se deram e os seus resultados se sintetizaram, assumiram contornos bem mais nítidos […](2)
O passado não tão distante volta a assombrar a Bolívia. A história parece repetir-se. O país dos inúmeros golpes de Estado, dos sucessivos regimes militares, das contínuas insurreições triunfantes e das trágicas revoluções interrompidas presencia nos últimos dias a consolidação e “normalização democrática” (3) de um Golpe de Estado contrarrevolucionário(4), cujo ato inicial foi a derrubada de Evo Morales em 10 de novembro de 2019. Como dizia o sociólogo boliviano René Zavaleta, na “França sul americana a política transcorre entre revoluções e contrarrevoluções”(5). Desta vez, contrariando todos os prognósticos e previsões, não foi diferente.
Ninguém foi capaz de prever o curso dos acontecimentos e o seu desenlace final. A forma/conteúdo e a velocidade como se deu este processo tem gerado debates e controvérsias, além de confusões e diferenças no interior da esquerda e dos setores progressistas. Não há um movimento social boliviano que não tenha se dividido na interpretação do que ocorreu e porque ocorreu.
Distintos movimentos ambientalistas, feministas, operários, indígenas e camponeses apresentaram análises e posições políticas distintas, até mesmo antagônicas sobre os acontecimentos que culminaram na “renúncia”, perseguição e posterior exílio de Evo Morales, Garcia Linera e toda a cúpula do governo. (6)
Este turbilhão de acontecimentos tem suscitado algumas perguntas e questionamentos. O governo Evo Morales caiu pela ação espontânea de uma “revolta popular cidadã” ou um “Golpe de Estado contrarrevolucionário”? Qual o caráter de classe das mobilizações protagonizadas pelas classes medias tradicionais, jovens universitários e alguns setores populares? Estas mobilizações foram progressivas ou reacionárias? Quais indivíduos, grupos, movimentos, partidos e frações de classe impulsaram e financiaram este conflito? Como foi possível que uma força política até então hegemônica na sociedade boliviana desmoronou-se de forma tão intempestiva?
Responder a estas questões não tem sido uma tarefa fácil, sobretudo pelo caráter inédito das mobilizações que sacudiram o país logo após as eleições de 20 de outubro de 2019. Durante 20 dias, as ruas das principais cidades bolivianas foram palco de um amplo leque de alianças que reuniu jovens universitários, setores populares, classes médias tradicionais, partidos de extrema esquerda (POR), grupos neofascistas, empresários e comitês cívicos. Diante da heterogeneidade de atores e personagens que foram às ruas pela derrubada de Evo Morales precisamos formular uma pergunta crucial para o entendimento e a posterior explicação do que ocorreu: Quais grupos e frações de classe hegemonizaram e dirigiram este processo, ou seja, qual foi a “direção política de classe” (7) que determinou a queda de Evo Morales?
Neste artigo, buscamos seguir as pistas deixadas por Marx em sua consagrada obra, o “18 de Brumário de Luis Bonaparte”, onde estabelece critérios de classe para explicar e caracterizar um fenômeno tão complexo. Segundo Engels, no prefacio a esta obra, escrito em 1885:
Marx foi o primeiro a descobrir a grande lei do movimento da história, a lei segundo a qual todas as lutas históricas travadas no âmbito político, religioso, filosófico ou em qualquer outro campo ideológico são de fato apenas a expressão mais ou menos nítida de lutas entre classes sociais, a lei segundo a qual a existência e, portanto, também as colisões entre essas classes são condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua condição econômica, pelo modo da sua produção e pelo modo do seu intercâmbio condicionado pelo modo de produção. (8)
Isto não significa desconsiderar o papel e a responsabilidade dos indivíduos e personagens na história, muito menos a “autonomia da política”, em particular nos recentes acontecimentos que culminaram na derrubada de Evo Morales, mas, como nos recorda Marx, “não podemos ver no golpe apenas um ato de poder de um indivíduo isolado” (9). Parafraseando sua obra, precisamos demonstrar como as relações e as lutas entre as classes e frações de classe na Bolívia “criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói”. (10)
Golpe de Estado ou revolução cidadã?
A posição frente às mobilizações e a derrubada de Evo Morales provocou um verdadeiro terremoto na esquerda e nos movimentos sociais latino-americanos. Um importante e polêmico debate envolvendo destacados intelectuais “progressistas”, movimentos ambientalistas, feministas e partidos de esquerda está em curso. Muitos optaram pela “neutralidade” ou somaram-se entusiasticamente ao “movimento cidadão” pela derrubada de Evo Morales. Entre os últimos, destacam-se ex-ministros que até pouco tempo apoiavam e integravam entusiasticamente o governo, como Pablo Sólon (11), Alejandro Almaraz (12) e Raul Prada (13).
Não se trata de um debate meramente acadêmico, mas, com sérias implicações políticas e estratégicas. Definir se houve ou não, um Golpe de Estado na Bolívia ou se a “renúncia” de Evo Morales foi provocada por uma “espontânea revolta cidadã” não é secundária no terreno da política. (14) Apresentaremos em seguida as posições e análises de três destacados intelectuais “progressistas” que não caracterizaram o que ocorreu como um “Golpe de Estado” ou assumiram uma posição de neutralidade, explicitada pela consigna “nem com Evo, nem com a direita racista”. Ao interpretar o que ocorreu, o cientista político boliviano, Luis Tapia, afirma que:
Este momento de crisis política es el inicio de la caída del régimen de dominación masista. El 20 de octubre se termina de consumar un fraude electoral que pretendía articular otro momento de legitimación del control del aparato estatal, de la sociedad civil y de los territorios comunitarios indígenas. El MAS ha enfrentado la resistencia ciudadana al proyecto de prolongación de su dominación en el país. El fraude de octubre tiene antecedentes: ha estado preparado por varios momentos de fraude y cancelación de la democracia, siendo el principal el desconocimiento de los resultados del referéndum sobre la reelección de Evo Morales y García Linera en febrero de 2016, cuando el pueblo boliviano votó mayoritariamente por el “NO” Ante el fraude en las últimas elecciones se articula una gran resistencia, que entra en una primera fase de desobediencia civil y que tiene varias facetas. Primero, se denuncia el fraude a través de trabajos de ciudadanos y de grupos de profesionales que han proporcionado pruebas de la manipulación de los datos. Esto se acompañó de marchas autoconvocadas que ocurrían a diferentes horas del día y en diferentes lugares de todas las ciudades capitales de departamento. Otra faceta de la resistencia al fraude es la del paro cívico, que implicó el bloqueo dentro de las ciudades como resultado de la organización barrial. Esta resistencia contiene, por un lado, una acumulación de cansancio y rechazo al abuso y al autoritarismo gubernamental. (15)
Com um viés “crítico”, mas não menos equivocado, o intelectual e ativista uruguaio Raúl Zibechi expressou sua visão sobre os acontecimentos da seguinte forma:
El levantamiento del pueblo boliviano y de sus organizaciones fue lo que en última instancia provocó la caída del gobierno. Los principales movimientos exigieron la renuncia antes de que lo hicieran las fuerzas armadas y la policía. La OEA sostuvo al gobierno hasta el final. La crítica coyuntura que atraviesa Bolivia no comenzó con el fraude electoral, sino con el sistemático ataque del gobierno de Evo Morales y Álvaro García Linera a los movimientos populares que los llevaron al Palacio Quemado, al punto que cuando necesitaron que los defendieran, estaban desactivados y desmoralizados […] La inmensa mayoría de las personas que habitan Bolivia no entró en el juego de la guerra que quisieron imponer Morales-García Linera cuando renunciaron y lanzaron a sus partidarios a la destrucción y el saqueo (en particular en La Paz y El Alto), probablemente para forzar la intervención militar y justificar así su denuncia de un “golpe” que nunca existió […] No podemos olvidar que en este momento existe un serio peligro de que la derecha racista, colonial y patriarcal consiga aprovechar la situación para imponerse y provocar un baño de sangre. El revanchismo político y social de las clases dominantes está tan latente como en los últimos cinco siglos y debe ser frenado sin vacilaciones. (16)
Por fim, Maria Galindo, uma importante referência do movimento feminista boliviano, adere à teoria dos dois “fascismos” e “bandos” em conflito para explicar o que ocorreu e se recusa a demarcar uma posição clara de rechaço ao golpe, ainda que, ao final do texto, considere que de fato ocorreu um golpe de Estado na Bolívia.
Un análisis maniqueo de la crisis política que vive Bolivia es lo que nos exigen desde fuera del país: la izquierda en general quiere cerrar la tesis de un golpe de Estado donde se presente al expresidente Evo Morales como la víctima de una conspiración internacional de la CIA donde “el delito de Morales haya sido el de ser indígena”, como él mismo manifiesta. La presión por parte de la derecha internacional es presentar lo acontecido en Bolivia como una conquista democrática frente a un gobierno autoritario, tesis que por otro lado legitimaría la toma del Estado boliviano por parte de una coalición fascista.Ambas posturas simplifican los hechos, borran los matices y nos entregan como sociedad a un proceso donde tienes que tomar un bando y enfrentarte al otro bando en términos de guerra de enemigos para que gane el más fuerte en el plano militar que no es otro que el de la muerte. Ambas tesis nos convierten en fichas de un tablero donde nuestro único papel es alinearnos para alimentar las fosas comunes de las que nuestra historia está llena […] La tesis del golpe asfixia la discusión política fundamental que es el contenido político de esta crisis que inició siendo una crisis política de representatividad, de legitimidad y de respeto a la Constitución política del Estado y que derivó en un golpe de Estado y en una toma y control fascista y racista impulsado por la CIA de gran parte del Estado. (17)
Ao utilizar estes critérios, sem nenhum referencial de classe, para analisar e caracterizar as mobilizações, alguns destes intelectuais “progressistas” e pequenos grupos de “esquerda” foram às ruas sob a bandeira de defesa da “democracia” e do “voto” contra as supostas “irregularidades” e “fraudes” cometidas pela “narco ditadura castro chavista” de Evo Morales. Marcharam juntos com a extrema direita racista e fascista, representada pelo Comitê Cívico Pro Santa Cruz, a mais importante organização política do empresariado boliviano.
A justa insatisfação e desconfiança de amplos setores da sociedade boliviana com o governo e suas medidas “repressivas, autoritárias e antidemocráticas” ao longo dos últimos 14 anos não podem justificar a sua derrubada através de um Golpe de Estado, muito menos, quando este é dirigido pelas classes médias tradicionais com pautas retrógradas e reacionárias, expressadas através dos comportamentos classistas e racistas como a queima da Wiphala (18) e a brutal repressão e violência contra os moradores de El Alto e Cochabamba. Nem os mortos foram respeitados.
“Quem não sabe contra quem luta não pode vencer”
Apesar das contradições, este movimento teve um perfil, programa, direção e demandas nitidamente reacionários, capitaneados por uma extrema direita com traços neofascistas que retomou a iniciativa das mobilizações, perdida desde outubro de 2008, quando tentaram derrubar Evo Morales pela primeira vez. Reconhecer o caráter reacionário destas mobilizações (19) não significa apoiar politicamente o anterior governo de Evo Morales, mas, assumir uma posição clara de resistência e enfrentamento ao golpe.
A “renúncia” de Evo Morales não foi o resultado de uma “insurreição popular espontânea”, muito menos, o desfecho de uma “revolução cívica e cidadã” protagonizada pela classe média e os jovens universitários. Ainda que estes elementos estivessem presentes na complexa trama que culminou na “renúncia” e posterior exilio de Evo Morales, não foram os aspectos determinantes.
Para determinar o que de fato ocorreu, recorremos aos critérios utilizados pelo cientista político, Andres Malamud quando afirma que: “um golpe se define por três fatores: o alvo é o chefe do Estado ou Governo, o perpetrador é outro agente estatal (frequentemente, os militares) e o procedimento é ilegal (ainda que não necessariamente violento). (20) Na Bolívia se deu os três elementos apontados acima. O que vimos foi uma ruptura da ordem institucional chancelada pelas Forças Armadas, que diante da crise e paralisia do governo, “sugeriu” a renúncia do presidente. As Forças Armadas não assumiram o comando direto do país, como ocorria outrora(21), mas se constituíram no pilar fundamental de sustentação do novo governo de Jeanine Anez.
Un golpe de Estado es la interrupción inconstitucional de un jefe de Gobierno por parte de otro agente estatal y en Bolivia se interrumpió el mandato del presidente, no hubo destitución parlamentaria sino una renuncia forzada por una “sugerencia” y las fuerzas armadas fueron las que terminaron de definir la situación. Además, el accionar militar no se justifica por las irregularidades detectadas por la OEA porque Morales ya había acatado el informe y convocado nuevas elecciones”. (22)
Apesar de assumir uma roupagem “democrática”, sem a instauração de uma ditadura militar escancarada, o processo foi marcado por sucessivas ilegalidades. Além da renúncia forçada pelas Forças Armadas, o congresso, com ampla maioria de deputados e senadores do MAS foi impedido de analisar as cartas de renúncia de Evo Morales e Garcia Linera como prevê a constituição boliviana. A constituição ainda prevê que em caso de renúncia ou vacância dos cargos de presidente e vice-presidente deverá assumir a presidenta do senado, nesse caso, a senadora do MAS, Adriana Salvatierra. Por fim, para coroar a ilegalidade do processo, temos a autoproclamação de Jeannine Anez (vice-presidente do senado) como presidenta do país em uma sessão sem quórum, sem a presença dos parlamentares do MAS que conformam a ampla maioria do congresso.
Após a consumação do Golpe, teve início uma brutal repressão do exército e da polícia que resultou no assassinato de 34 bolivianos, milhares de feridos e centenas presos. O decreto emitido pelo governo permitiu que o exército e as forças armadas tenham carta branca para cometer todo tipo de arbitrariedades. O governo de fato promoveu um ambiente de perseguição à dirigentes dos movimentos sociais, jornalistas e entidades dos direitos humanos, ex ministros e dirigentes do MAS. Está cada vez mais evidente que a suposta renúncia de Evo Morales, foi, na verdade, a consumação de um golpe de Estado orquestrado e planejado pela extrema direita boliviana representada pelo Comitê Cívico de Santa Cruz, cujo principal operador político foi o empresário Luis Fernando Camacho. (23)
Ao analisar as medidas e ações do governo de fato de Jeanine Áñez fica cada vez mais claro os interesses de classe que motivaram a derrubada de Evo Morales. O golpe atendeu a três premissas básicas: o retorno das antigas frações da classe dominante boliviana ao poder do Estado, o realinhamento e subordinação da Bolívia ao imperialismo norte americano e a ofensiva da extrema direita latino-americana contra os governos “progressistas” e de “esquerda”. O caráter pró imperialista e servil dos golpistas ficou claro com a expulsão de centenas de cidadãos e autoridades venezuelanas e cubanas que atuavam na área médica, na ruptura das relações diplomáticas com o governo de Nicolas Maduro, na reabertura das relações diplomáticas com o governo de Israel e na reaproximação com o governo norte americano através da indicação de um embaixador para os EUA, fato que não ocorria desde 2008, quando o anterior embaixador, Philip Goldberg, foi expulso da Bolívia por apoiar a tentativa de golpe cívico de setembro de 2008.
A ofensiva golpista parece não ter limites. Sob o falso e mentiroso discurso de combater o “narco terrorismo” e a “corrupção”, pretende-se eliminar e expurgar todos os vestígios e legado dos 14 anos da suposta “ditadura castro chavista de Evo Morales”. Uma “ditadura” que havia ganhado, com o voto da ampla maioria dos bolivianos, as quatro últimas eleições presidenciais (em 2005 (24), 2009 (25), 2014 (26) e 2019 (27)), além do referendo revogatório de setembro de 2008 (28) e o plebiscito de aprovação da nova Constituição política, em janeiro de 2009 (29).
Uma campanha difamatória em nível internacional, orquestrada pelo governo norte americano e personagens nefastos da extrema direita boliviana, como Sanches Berzain (30) e Branko Marincovc (31) e Tuto Quiroga (32), busca relacionar Evo Morales e o MAS aos grandes cartéis da droga, algo semelhante ao que ocorreu nos anos de 1990, quando os camponeses produtores da folha de coca eram perseguidos e assassinados. Evo Morales, principal dirigente sindical dos camponeses e deputado nacional, havia sido expulso do parlamento em janeiro de 2002 sob acusação de “terrorismo” e associação com o narcotráfico. A mesma campanha está sendo utilizada pelo governo norte americano para desacreditar o governo de Nicolas Maduro e justificar uma invasão da Venezuela.
A consciência da derrota
No curso de 20 dias, desde que ocorreu a eleição presidencial em 20 de outubro, a Bolivia foi palco de um dos acontecimentos mais trágicos e controversos da sua história recente. Não estamos falando apenas da derrubada de Evo Morales por um golpe de Estado, mas a derrocada de uma experiência política que havia despertado enormes expectativas e esperanças na América Latina. O governo Evo Morales, o mais longevo e estável na conturbada história política boliviana sucumbiu como “um gigante com pés de barro”.
Estava em jogo na Bolivia uma disputa importante. A derrubada de Evo Morales por um golpe reacionário representou não só a vitória das velhas elites e frações das classes dominantes locais, como também do imperialismo norte americano (o primeiro a reconhecer o governo de fato de Jeannine Anez) e da extrema direita representada por Jair Bolsonaro (o segundo governo a saudar a derrubada de Evo Morales e reconhecer o governo de fato).
Quem conheceu a Bolívia durante os governos de Evo Morales deve estar se perguntando, como foi possível um retrocesso político e simbólico tão profundo em um curto período de tempo?
Ao analisar o golpe de Luis Bonaparte em dezembro de 1851 na França, Marx descrevia o impacto dos acontecimentos da seguinte forma:
“Todo um povo, que por meio da revolução acreditava ter obtido a força motriz necessária para avançar com maior celeridade, de repente se vê arremessado de volta a uma época extinta e, para que não paire nenhuma dúvida quanto ao retrocesso sofrido, ressurgem os velhos elementos, a velha contagem do tempo, os velhos nomes, os velhos editais que já haviam sido transferidos ao campo da erudição antiquária e os velhos verdugos que pareciam ter-se decomposto há muito tempo”. (33)
Esta é a sensação vivida, sobretudo pelas populações indígenas e os setores populares e por todos aqueles que depositaram suas expectativas e esperanças na “Revolução Democrática e Cultural” e no “Processo de Cambio” impulsionados por Evo Morales e o MAS. É momento de realizar um balanço profundo da experiência boliviana e do governo de Evo Morales, apresentando seus acertos, erros e limites. Como afirma Herbert Marcuse “a consciência da derrota e até do desespero fazem parte da teoria e da sua esperança”.
NOTAS
1 – Na Revolução de Fevereiro (22 a 25 de fevereiro de 1848), os trabalhadores, artífices e estudantes franceses derrubaram a monarquia burguesa constitucional de Luís Filipe e forçaram a proclamação da Segunda República francesa.
2 – ENGELS, Friedrich. Prefácio à 3ª edição [de 1885]. Prefácio. In: MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.22.
3 – Para Boaventura de Sousa Santos “[…] a queda de Evo não resultou de um ato democrático validado no “voto castigo” da cidadania pelo afã reelecionista do presidente: foi orquestrada com a execução de um plano golpista. E hoje busca um difícil, precário e pouco credível caminho de retorno à “normalidade” democrática nas urnas, enquanto prossegue a violação dos direitos humanos. Um retorno que passa pela inabilitação de Evo Morales e de Álvaro García Linera, e por um governo de transição que se propõe anular compromissos internacionais (como a saída da ALBA e da UNASUR), privatizar empresas estratégicas, ampliar ainda mais a fronteira agrícola, liberalizar a economia com entrega de recursos naturais segundo a receita neoliberal, mudar massivamente o corpo diplomático, substituir os vocais do Tribunal Supremo Eleitoral, antes justamente acusado de estar subordinado ao oficialismo, por vocais próximos ao novo oficialismo e, sobretudo, eliminar do horizonte político o sujeito coletivo indígena e nacional-popular, e todas as demandas originadas nas lutas dos povos indígenas (o Buen Vivir, a plurinacionalidade, os direitos coletivos, a democracia comunitária, o respeito pela Terra Mãe). Disponível em <https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/12/evo-morales-a-historia-o-absolvera-por-boaventura-de-sousa-santos/> Acesso em: 07 de dez de 2019.
4 – Para Valerio Arcary: “É contrarrevolucionário porque estão dispostos a usar os métodos de guerra civil, como ficou demonstrado com a prática fascista de linchamento de uma prefeita do MAS em Praça Pública, com o incentivo à depredação das residências de ministros, com as ameaças à integridade física de suas famílias – até do próprio Evo Morales – e com a invasão do Palácio presidencial em La Paz[..]A Bolívia está dividida e dilacerada. A contrarrevolução tem bases de massas nas cidades, mas não é a maioria da nação. Trata-se de um golpe contrarrevolucionário monstruoso. Quem na esquerda não se posicionar imediatamente contra o golpe perdeu a bússola da história”. Disponível em < https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/um-golpe-contrarrevolucionario-na-bolivia/>. Acesso em: 07 de dez de 2019.
5 – Disponível em <https://brujuladigital.net/opinion/bolivia-pais-de-insurrecciones> Acesso em: 07 de dez de 2019.
6 – Diante da queima de casas e sequestros de familiares também “renunciaram” a presidenta do Senado, Adriana Salvatierra e o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda (ambas casas legislativas são presididas pelo MAS) e a posterior prisão do vice presidente deste partido, Gerardo Garcia.
7 – Segundo Danilo Martuscelli, “[…] empregamos a definição de direção política de classe de um golpe de Estado para designar não a fração de classe que reina no âmbito da cena política, mas aquela que procura obter o controle sobre o processo decisório estatal, visando à modificação do conteúdo da política econômica e social para garantir que seus interesses materiais sejam priorizados em relação aos das demais frações do bloco no poder” (MARTUSCELLI,2018,p.9). Disponível em <http://revistademarcaciones.cl/wp-content/uploads/2018/05/13.-Martuscelli.pdf> Acesso em: 05 de dez de 2019.
8 – ENGELS, Friedrich. Prefácio à 3ª edição [de 1885]. Prefacio. In: MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 22.
9 – MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.18.
10 – MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.18.
11 – Pablo Solón é um ativista ambiental boliviano. Formou parte do governo presidido por Evo Morales com diferentes responsabilidades desde 2006 a 2011. De 2009 a 2011 foi embaixador do Estado Plurinacional de Bolivia nas Nações Unidas.
12 – Alejandro Almaraz foi parte da direção do Movimento ao Socialismo (MAS) e assumiu o cargo de vice-ministro de Terras no primeiro governo Evo Morales. Após o conflito em defesa do TIPNIS em agosto de 2011 rompeu com o governo e tornou-se um ferrenho opositor.
13 – Raúl Prada Alcoreza é filósofo e sociólogo boliviano, pesquisador-docente da Universidade de San Andrés, membro do grupo de teóricos políticos de Comuna. Foi membro da Assembleia Constituinte boliviana de 2006-2007 pelo MAS e Vice-Ministro de Planejamento Estratégico do Ministério da Economia e Finanças de fevereiro a setembro de 2010.
14 – Para Arcary, “não importa, neste momento, a opinião que cada um de nós possa ter sobre os limites, vacilações, deformações, e vícios do governo de Evo Morales. Não importa, neste momento, a discussão sobre quais foram os terríveis erros que a direção do Movimento para o Socialismo (MAS) cometeu ou não. Esse balanço terá importância para aprender as lições desta derrota. E será ainda mais decisivo, considerando que há na esquerda quem duvide que se trata de um golpe contrarrevolucionário, porque alguns movimentos sociais se mobilizavam contra o governo de Evo Morales”. Disponível em < https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/um-golpe-contrarrevolucionario-na-bolivia/>. Acesso em: 07 de dez de 2019.
15 – Ver artigo de Luis Tapia. Disponível em <http://www.cides.edu.bo/webcides2/index.php/interaccion/noticias-f/264-crisis-politica-en-bolivia-la-coyuntura-de-disolucion-de-la-dominacion-masista> Acesso em: 05 de dez de 2019.
16 – Ver artigo de Raul Zibechi. Disponível em <https://kutxikotxokotxikitxutik.wordpress.com/2019/11/14/una-vision-distinta-de-lo-que-esta-pasando-en-bolivia-mujeres-creando-raquel-gutierrez-raul-zibechi-mujeres-y-pueblos-indigenas-buscan-salir-del-binarismo-del-poder/> Acesso em: 07 de dez de 2019.
17 – Ver artigo de Maria Galindo. Disponível em <https://elpais.com/elpais/2019/11/27/opinion/1574867623_761263.html?prod=REGCRART&o=cerrado&event_log=fa> Acesso em: 07 de dez de 2019.
18 – Ver artigo de Daniel Santos. Disponível em <https://esquerdaonline.com.br/2019/11/14/wiphala-a-bandeira-simbolo-da-uniao-das-nacoes-andinas/> Acesso em: 07 de dez de 2019.
19 – Valerio Arcary sistematizou alguns critérios que definem se uma mobilização é progressiva ou reacionária: “Sugerimos quatro critérios, e vejamos sua aplicação na situação boliviana: O primeiro critério deve avaliar as mobilizações pelas tarefas que elas se colocam, ou seja, o conteúdo histórico-social do programa que motiva a mobilização. Desde o final do primeiro turno das eleições na Bolívia, o sentido destes atos foi, diretamente, a luta pelo poder, ou seja, uma estratégia de derrubada do governo. Exigiam, no início, a auditoria supervisionada pela OEA, mas evoluíram, rapidamente, para a derrubada do governo Evo Morales. O segundo critério é pelo sujeito social, ou seja, pelas classes e frações de classe, ou bloco de classes que se mobilizaram e uniram para realizá-las. Não parece controverso, consideradas os dados já disponíveis, afirmar que foram essencialmente manifestações de camadas da classe média, muito concentradas nas cidades. A mobilização das camadas médias em torno de um programa reacionário é regressiva. O terceiro critério deve ser uma avaliação da direção política das manifestações, o sujeito político. A primeira denúncia do que consideraram fraude eleitoral ficou na mão do candidato Carlos Mesa, mas quem assumiu publicamente a liderança civil foi o neofascista Camacho, apoiado nas Forças Armadas. A direção das manifestações foi, portanto, burguesa, muito bem articulada com a embaixada norte-americana e brasileira. O último critério são as consequências. O principal resultado das mobilizações foi a derrubada do governo Evo Morales, abrindo o caminho para a posse de um governo refém das Forças Armadas”. Disponível em < https://www.brasildefato.com.br/2019/11/13/um-golpe-contrarrevolucionario-na-bolivia/>. Acesso em: 07 de dez de 2019.
20 – Ver artigo de Leiv Marsteindtredet e Andrés Malamud. Disponível em https://www.nuevospapeles.com/nota/24766-bolivia-y-democracias-interrumpidas Acesso em: 05 de dez de 2019.
21 – Segundo Leiv Marsteindtredet e Andrés Malamud, “até a década de 1980, os presidentes latino-americanos eram substituídos de modos desagradáveis por militares sublevados. Este mecanismo de sucessão não figurava nas constituições e se denominava golpe de Estado. A partir de então, a democracia fincou raízes e os golpes se tornaram infrequentes”. Disponível em <https://www.nuevospapeles.com/nota/24766-bolivia-y-democracias-interrumpidas> Acesso em: 05 de dez de 2019.
22 – Disponível em <https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/bolivia-es-golpe-estado-nid2306093> Acesso em: 07 de dez de 2019.
23 – Luis Fernando Camacho, conhecido como o “Bolsonaro boliviano” é um empresário e presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, a mais importante organização da extrema direita boliviana. Esta organização teve um papel fundamental durante as mobilizações que derrubaram Evo Morales. Ficou conhecido por entrar no Palácio de Governo, logo após a renúncia de Evo Morales, portando uma bíblia. O Comitê Cívico de Santa Cruz reúne as principais lideranças e grupos empresariais da Bolivia. Seu braço político entre os jovens é a organização paramilitar e com traços fascistas, a UJC (União Juvenil Crucenista), da qual, Camacho foi vice-presidente entre os anos 2002 e 2004. No dia 29 de novembro de 2019 renunciou ao cargo de presidente do Comitê Cívico e anunciou sua candidatura à presidente da Bolivia nas próximas eleições.
24 – Em 18 de dezembro de 2005, Evo Morales ganhou sua primeira eleição presidencial com 53,72%, enquanto Tuto Quiroga ficou em segundo lugar com 28,62%.
25 – Em 06 de dezembro de 2009, Evo Morales obteve 64,22%, enquanto o segundo colocado, Manfred Reyes Vila alcançou 26,46%.
26 – Em 12 de outubro de 2014, Evo Morales ganhou sua terceira eleição presidencial com 61,04%, enquanto o segundo colocado, o empresário Samuel Doria Medina obteve 24,49%.
27 – Em 20 de outubro de 2019, Evo Morales conseguiu sua quarta vitória com 47,08%, enquanto o segundo colocado, Carlos Mesa, obteve 36,51%. Com este resultado, Evo Morales ganharia no primeiro turno. O resultado das eleições revelou uma profunda divisão e polarização do país. A vitória de Evo Morales não foi reconhecida pelos demais candidatos e questionada pela OEA (Organização dos Estados Americanos). Nos dias que antecederam a eleição, gigantescas mobilizações e atos foram realizados, denunciando a suposta fraude eleitoral, preparada pelo governo e o Tribunal Eleitoral para evitar o segundo turno. A suspensão da transmissão dos resultados eleitorais provisórios (TREP) foi a justificativa perfeita para a narrativa de fraude eleitoral construída pela direita tradicional e grupos de extrema direita. O processo eleitoral que havia transcorrido no dia 20 de outubro de maneira tranquila e pacífica, terminou em violentos enfrentamentos e queima dos tribunais eleitorais por apoiadores de Carlos Mesa. Evo Morales se comprometeu a aceitar os resultados da auditoria da OEA. Com a publicação dos informes parciais da auditoria no dia 10 de novembro e o aprofundamento da crise, Evo Morales realizou um pronunciamento onde se comprometeu a convocar novas eleições com um novo Tribunal Eleitoral. Após a “sugestão” das Forças Armadas, Evo Morales e Garcia Linera renunciaram. Em seguida, diante da possibilidade de serem presos ou assassinados, decidem exilar-se no México.
28 – Em 10 de agosto de 2008 foi celebrado o referendo revogatório para decidir sobre a permanência do presidente Evo Morales, do vice, Garcia Linera e dos nove governadores. Evo Morales foi ratificado no poder com 67,43% dos votos
29 – Em 25 de janeiro de 2009 ocorreu o Referendo Constitucional. A nova constituição foi aprovada com 61,43% dos votos.
30 – Foi ministro da Defesa durante o governo de Gonzalo Sanchez de Lozada, e um dos principais responsáveis pela repressão que matou mais de 80 pessoas durantes as mobilizações de outubro de 2003. Atualmente se encontra exilado nos EUA, onde é o diretor executivo do Instituto Interamericano para Democracia.
31 Principal líder cívico da extrema direita boliviana durante os anos de 2005 e 2009. Foi presidente do Comitê Cívico Pro-Santa Cruz e um dos principais articuladores da tentativa de golpe contra Evo Morales em setembro de 2008, além de estimular ataques contra camponeses e indígenas na cidade de Santa Cruz. Atualmente encontra-se exilado no Brasil. Recentemente participou como convidado da Cúpula Conservadora organizada por Eduardo Bolsonaro.
32 – Jorge “Tuto” Quiroga foi vice-presidente da Bolivia durante o governo do “ditador” eleito, Hugo Banzer (1997-2001). Tuto Quiroga assumiu a presidência do país após a renúncia de Hugo Banzer, entre agosto de 2001 e agosto de 2002. Foi escolhido pelo governo de fato de Jeannini Anez para ser o Atual Delegado de Bolivia ante a Comunidade Internacional. Foi também líder do partido de direita Ação Democrática Nacionalista (ADN), que presidiu depois da morte do seu fundador, o ditador e ex presidente, Hugo Banzer. Ver artigo de Katu Arkonada. Disponível em <https://www.telesurtv.net/bloggers/Bolivia-el-golpe-dentro-del-golpe-20191123-0001.html> Acesso em: 07 de dez de 2019.
33 – MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.28.
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