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MUNDO

As ditaduras militares de Natusch Busch e Garcia Mesa

Quarta parte da série ‘Golpes de Estado na Bolívia (1952-2019): uma perspectiva histórica’

Joallan Rocha, de Salvador (BA)

Nas eleições de julho de 1979, os dois candidatos mais votados não alcançaram a maioria dos votos. Siles Zuazo, candidato da Unidade Democrática e Popular (UDP), havia sido o mais votado, mas, não obteve a maioria no congresso. Diante do impasse, um setor do exército e da classe dominante, vinculada aos grandes proprietários de terra de Santa Cruz, temia um futuro governo da UDP, com a presença do Partido Comunista. Nos quartéis, havia rumores de que se preparava um golpe caso a UDP triunfasse nas eleições. O impasse durou uma semana. Decidiu-se entregar de maneira interina a presidência do país a Walter Guevara Arce, presidente do senado e membro do MNR (A), partido vinculado ao líder Paz Estensoro. O compromisso entre os principais partidos era convocar novas eleições para junho de 1980.

O GOLPE MILITAR DE NATUSCH BUSCH EM 1979

Alberto Natusch Busch

O governo de Guevara Arce, extremamente débil, durou apenas três meses. O presidente interino foi derrubado por outro golpe militar, dirigido por Natusch Busch, em 1° de novembro de 1979, “desta vez para deter o ascenso popular que clamava nas ruas por uma solução para a crise econômica e a aplicação do Plano de Emergência Nacional proposto pela COB”. Os tanques cercaram o Palácio Quemado (sede do governo), e os soldados ocuparam o centro de La Paz, provocando uma brutal repressão, “mais de 200 pessoas morreram, 125 desapareceram e outras 200 foram feridas. Morreram tantos bolivianos sob o regime de catorze dias de Natusch quanto nos sete anos de governo de Banzer”.
Em resposta ao golpe, a COB decretou a greve geral por tempo indeterminado, que foi acatada de maneira disciplinada em todo o país. Depois de 15 dias de enfrentamentos e resistência popular, o golpe foi finalmente derrotado. Os mineiros haviam cumprido um papel fundamental nas mobilizações que derrubaram Natusch Busch. Nas minas, a greve geral foi acatada pela maioria absoluta das bases da FSTMB. No campo, seguindo as instruções da CSUTCB (Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia) paralisou-se o trabalho em várias regiões. O povo espontaneamente levantou barricadas nas ruas.

A derrota de Natusch Busch não representou o fim da instabilidade política. A presidente da Câmara de Deputados, Lidia Gueiler (deputada pelo MNR-A de Paz Estensoro), foi indicada presidente interina até as eleições de 1980. A estrutura das Forças Armadas manteve-se intocada, e os militares golpistas continuaram exercendo suas funções impunemente. O novo governo, mais débil que o anterior, não possuía a legitimidade do voto popular. O governo de Lidia Gueiler esteve todo o tempo refém do FMI, e apelava para medidas impopulares com o objetivo de conter a inflação, como o corte de gastos sociais e a desvalorização da moeda – ambas medidas buscavam garantir os compromissos de pagamento da dívida externa. Essas medidas foram imediatamente rejeitadas, sobretudo pelos camponeses. O incremento de 120% no preço da gasolina ocasionou mobilizações e bloqueios nas principais rodovias do país.

As forças políticas articulavam-se para as novas eleições presidenciais em 29 de junho de 1980. Lechín havia retirado sua candidatura em apoio à UDP. Enquanto os principais partidos de esquerda estavam imersos no ambiente eleitoral, os militares ligados à García Mesa e Arce Gómez preparavam outro golpe (ambos haviam sido cúmplices do golpe de Natusch e mantinham fortes vínculos com o governo de Lidia Gueiler). García Mesa continuou como chefe do Colégio Militar, e Arce Gómez foi ratificado como chefe da Inteligência das Forças Armadas.

Em 21 de março de 1980, o padre Luis Espinal, que havia publicado várias denúncias contra Banzer e os torturadores, foi assassinado a mando de Arce Gómez. Os militares golpistas possuíam uma lista de personalidades e militantes de esquerda que estavam marcados para morrer.

 

1.2- O NARCO GOLPE DE GARCIA MESA EM 1980

As eleições de junho de 1980 aconteceram sem maiores problemas e os resultados deram novamente a vitória à UDP, de Siles Suazo. Os principais concorrentes, o ex-militar Hugo Banzer e Paz Estensoro, reconheceram a vitória eleitoral da UDP, que seria empossada em 6 de agosto de 1980. Porém, em 17 de julho, ocorreu mais um golpe de Estado, contrariando os planos norte-americanos de institucionalizar uma democracia representativa na Bolívia. Alguns elementos motivaram o golpe de 17 de julho de 1980; entre eles, a vitória da UDP nas eleições e a necessidade de liquidar o processo judicial contra Banzer e membros das Forças Armadas.
O golpe também pretendeu preservar o rentável negócio da produção e comercialização de cocaína, no qual estavam involucrados Garcia Mesa e Arce Gomez. A repressão desatada pelo golpe foi uma das mais brutais na história boliviana. Quando foi conhecido o golpe, o CONADE (Conselho Nacional em Defesa da Democracia) convocou uma reunião na sede da COB para preparar a resistência por meio da proposta de organizar uma greve geral. A matança começou quando se estavam lendo as resoluções da reunião.
Os golpistas atacaram a sede da COB, assassinando o dirigente do Partido Socialista, Marcelo Quiroga Santa Cruz, o sindicalista Gualberto Vega e o militante trotskista Carlos Flores. Dezenas de sindicalistas reunidos na sede da COB foram presos. A greve geral decretada pela COB não havia sido contundente e fracassou quando Juan Lechín pediu que se suspendessem as mobilizações e a resistência civil. Os trabalhadores mineiros resistiram à suspensão das mobilizações, mas a repressão violenta chegou aos acampamentos mais importantes. Dezenas de mineiros foram assassinados nos distritos de Siglo XX, Huanuni, Caracoles e Viloco.

Nos distritos mineiros de Caracoles e Viloco, as tropas militares organizaram um verdadeiro massacre, pondo fim ao último foco de resistência ao golpe. A vitória dos militares golpistas não significou o fim da crise política e econômica que assolava o país. A crise econômica expressava-se em uma profunda crise fiscal do Estado, agravada pela queda da produção e dos preços das exportações, em particular do estanho, no mercado mundial.

[…] A resistência foi particularmente feroz nas minas circundantes a Potosí, especialmente no distrito mineiro de Santa Ana, onde em duas ocasiões o exército foi obrigado a retirar-se e, quando finalmente conseguiu entrar, se encontrou frente a uma parede humana de mulheres e crianças que custodiavam o prédio do sindicato, que ainda resguardava a estação de rádio. Produziram-se cenas similares em Huanuni, se fez retroceder os jovens recrutas com rifles antigos e estouros de dinamite, sendo necessário o emprego da Força Aérea para bombardear a estação de rádio e reforçar o cerco do exército […]. Huanuni se manteve firme durante cinco dias, impedindo o acesso a Siglo XX-Catavi e semeando uma considerável desmoralização nas tropas compostas em grande parte por gente da região.

Os militares golpistas não foram respaldados pelo conjunto da classe dominante boliviana, como aconteceu em 1971. O regime estava completamente desprestigiado por seus vínculos com o narcotráfico, a corrupção aberta, os abusos aos direitos humanos e a crise econômica, que afetava duramente o país. Outro elemento importante foi a oposição dos EUA, que apostava em uma saída “democrática” e respaldava a posse da UDP de Siles Suazo para resolver a crise e controlar o movimento operário. A instabilidade política fez com que o governo de García Meza se prolongasse por apenas um ano e alguns dias. Em agosto de 1981, Meza foi destituído da presidência e, em seu lugar, assumiu o comandante do exército, o General Celso Torrelio Villa, que havia sido designado pelo próprio García Meza.

A insatisfação da classe operária era crescente, sobretudo quando o governo, no início de 1981, tomou uma série de medidas para controlar a crise fiscal do Estado, como o congelamento dos salários e a redução dos subsídios. Além disso, o pacote econômico de 9 de janeiro de 1981, aumentava o preço da gasolina, provocando uma espiral inflacionária no país. O aumento do custo de vida impactou duramente a economia operária e popular.

Os trabalhadores do país ingressaram em uma paralização de 48 horas em rechaço ao pacote econômico. Era uma clara demonstração de força da classe operária contra o governo, que se recusou a reprimir os manifestantes. A partir de então, a ditadura entrou em um processo acelerado de decomposição. Frente ao aumento da insatisfação popular e sem o respaldo da burguesia local e dos EUA, o governo de Celso Torrelio teve que ceder. Como assinala Cajías de la Vega (2001), a greve de 20 dias dos mineiros de Huanuni, em novembro de 1981, foi decisiva para o retorno da democracia.

Os trabalhadores de Huanuni determinaram em uma assembleia geral de 14 de outubro desse ano [1981] colocar em funcionamento seu sindicato […]. Dessa maneira Huanuni deu um exemplo importantíssimo aos demais setores laborais interessados também em pôr novamente em funcionamento suas organizações sindicais. Mas o governo não aceitou a decisão, motivo pelo qual um mês despois os mineiros de Huanuni declararam uma das greves mais importantes de sua história, que não somente teria repercussões para o conjunto do movimento mineiro, mas para todo o país. Esta se iniciou em 15 de novembro com uma paralização de 48 horas, que se ampliou a outras 48 horas mais, até que finalmente se converteu em greve geral por tempo indeterminado.

A greve de Huanuni foi recebida com entusiasmo pelos demais setores. Os mineiros receberam a solidariedade da CSUTCB e dos trabalhadores fabris. A partir de 23 de novembro, a greve geral por tempo indeterminado estendeu-se a outros distritos mineiros, como Siglo XX, Catavi e San José. A vitória refletia-se nas cidades. Uma poderosa mobilização universitária desencadeou uma greve de fome de mais de mil estudantes e reconquistou a autonomia universitária e o co-governo docente-estudantil nas Universidades.
Era o começo de um ascenso da classe operária e dos setores populares que levou à derrubada definitiva dos regimes militares. Os temas centrais que mobilizaram os trabalhadores foram: a busca por organizar sindicatos independentes, o aumento de salários e a anistia. O governo foi obrigado a retroceder, em 26 de novembro, aceitando as principais reivindicações dos mineiros, “[…], mas a luta continuava e imediatamente depois de concluído o conflito, o sindicato de Huanuni começou a pressionar o governo para o cumprimento do acordo, obrigando a conformação de comissões para seu seguimento”

Os mineiros estavam dispostos a radicalizar as medidas de pressão; o conflito transcendia as demandas setoriais e assumia uma dimensão política e nacional. Finalmente, em 19 de dezembro, um acordo foi assinado, “significando um triunfo histórico para os trabalhadores do subsolo, não somente porque o governo aceitava a plena validade da organização sindical, mas porque se estabelecia prazos razoáveis para sua aplicação”.

Fortalecidos com a vitória das mobilizações de novembro, os mineiros exigiam do governo, o aumento salarial, a reabertura das rádios mineiras, anistia general e irrestrita, reincorporação dos trabalhadores demitidos por razões político-sindicais em suas fontes de trabalho, a retirada dos militares dos distritos mineiros e a punição aos autores dos assassinatos de vários dirigentes sindicais. Em 1° de maio de 1982, rompendo as disposições e proibições da ditadura militar, dirigentes da COB discursaram diante de uma multidão concentrada na Praça São Francisco, em uma demonstração de força e antecipando-se aos prazos estabelecidos pelo governo.

Em julho de 1982, o governo de Celso Torrelio caiu e, em seu lugar, assumiu o general moderado Guido Vildoso Calderón, que iniciou um processo de negociação com as forças políticas para levar adiante uma transição pactuada até a “democracia”. Em agosto de 1982, os mineiros realizaram seu XIX Congresso, no distrito de Huanuni, em reconhecimento ao papel que este distrito desempenhou nas mobilizações de novembro de 1981. O Congresso contou com a presença de 800 delegados e esteve dividido por duas posições: “a convocação de novas eleições para 1983 ou permitir a instalação imediata do Congresso de 1980, que havia deixado suas funções na sequência do golpe militar, e que devia eleger o Presidente da República”.

O Congresso Mineiro ocorreu em um momento de retomada das lutas operárias e uma profunda crise da ditadura militar. Esse evento despertou grandes expectativas na população. A posição a ser tomada pelos mineiros se tornaria uma referência para o conjunto dos trabalhadores e da população em geral. Outros temas foram discutidos no Congresso como a situação econômica do país e a demanda salarial dos mineiros, que não haviam sido atendidas pelo general Torrelio.

Os delegados temiam o anúncio de um novo plano de reestruturação da COMIBOL que previa a demissão de quatro mil trabalhadores da mineração estatal. Nesse cenário, decidiram a organizar uma paralisação geral nas minas. O debate na comissão política foi mais acalorado e polêmico. Havia distintas posições e 14 teses foram apresentadas à Comissão Política. Nesse Congresso, o documento apresentado pelos trabalhadores do distrito de Huanuni obteve a maioria. A “Declaração Política de Huanuni” foi considerada um dos mais ricos e completos documentos políticos dos trabalhadores mineiros:

Os trabalhadores mineiros da Bolívia declaramos nossa decisão de lutar pela libertação nacional e pelo socialismo. Esta é a aspiração histórica e patriótica dos trabalhadores. A libertação nacional é requisito inexcusável para um verdadeiro desenvolvimento econômico e social independente, ao serviço dos trabalhadores das minas, das cidades e do campo. Somente rompendo nossa dependência do imperialismo que nos subjuga num regime de exploração e de opressão nacional, é possível começar a satisfazer as necessidades materiais e culturais dos trabalhadores e do povo e avançar na construção do socialismo, que é a única formação social que garante o trabalho, o bem-estar, a liberdade e os direitos democráticos para as massas populares até hoje adiadas.

No documento de Huanuni, não havia uma posição clara frente ao retorno do regime democrático, tão pouco havia uma posição sobre a relação dos mineiros com o provável governo da UDP. A própria UDP estava dividida quanto à tática a ser adotada: a convocação do Congresso de 1980 ou novas eleições. As organizações sindicais inclinavam-se a exigir a convocatória de novas eleições e questionavam a legitimidade do “Congresso de 80”, com maioria do MNR e ADN (do ex-ditador Hugo Banzer). As Forças Armadas, o MNRI (de Siles Suazo) e o PCB desejavam dirigir o processo de transição até as novas eleições, mas a impaciência popular obrigou o exército a entregar o poder ao Congresso eleito em 1980. O mês de setembro de 1982 foi marcado por uma onda de mobilizações espontâneas em todo o país contra a fome e a carestia, impulsionadas e dirigidas pelo MIR.

[…]. Em 7 de setembro, o MIR realizou sua própria marcha contra a fome, a qual atraiu uma multidão de dezenas de milhares, alguns dos quais chegaram inclusive a atacar edifícios públicos. Uma semana depois a COB, agora persuadida de que a reinstalação do congresso de 1980 era a única mudança viável, convocou uma marcha massiva para o dia 17, à qual se seguiria uma greve geral até que o exército entregasse o poder. A marcha foi impressionante, ainda considerando a capacidade de mobilização de massas da COB: congregou cem mil pessoas em vigorosos protestos que retumbaram nas paredes da sede de governo durante seis horas; expulsou os agrupamentos paramilitares das ruas e como uma efusão de ira, reprimida por mais de dois anos, com clamorosas exigências por uma mudança social global.

O “setembro vermelho” generalizou-se por todo o país. Os trabalhadores de Cochabamba, liderados pelos operários das principais fábricas, convocaram assembleias de todos os setores laborais e exigiram a entrega do governo à UDP. Os trabalhadores também exigiam a implantação do salário mínimo vital com escala móvel, reivindicação que tinha sido aceita formalmente pelo governo militar. O movimento expandiu-se, e os mineiros do distrito de Huanuni estiveram na linha de frente, realizando uma série de paralisações que culminaram na greve geral por tempo indeterminado.

Em 17 de setembro de 1982, quando apenas se tinham cumprido 21 horas de greve general por tempo indeterminado convocada pela COB, o governo militar presidido pelo general Guido Vildoso expressou seu reconhecimento quanto à legitimidade das eleições realizadas em julho de 1980 […]. Aquela greve representava a culminação de um longo e difícil processo de lutas sociais que ao intensificarem-se, foram ampliando os espaços de expressão, representação e autodeterminação dos atores coletivos.

Na manifestação convocada pela COB, os mineiros de Siglo XX tornaram pública sua posição: ou a direção da COB decretava a greve geral por tempo indeterminado ou eles enviariam delegados a todos os centros mineiros para garantir a mobilização até a derrubada definitiva da ditadura. Poucas horas após a COB decretar a greve geral por tempo indeterminado, o general Vildoso anunciou a entrega do governo ao Congresso eleito em 1980.