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MUNDO

Uruguai: a derrota sem atenuantes do ‘partido do governo’

Ernesto Herrera, de Montevidéu, para o Correio da Cidadania

Confirmado. A partir de primeiro de março de 2020, Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, exercerá como presidente da República liderando um governo composto por cinco partidos de direita (*1).

Portanto, a chamada ‘era progressista’, aberta em primeiro de março de 2005, com a primeira presidência de Tabaré Vázquez, ficará oficialmente fechada. A Frente Ampla (FA) guardará seus trajes de ‘partido de governo’ para vestir-se de ‘oposição responsável’.

Com efeito, haverá sucessão no poder. Sob o formato de uma ‘alternância de partidos’ na gerência do Estado capitalista. Legitimada pelo inapelável veredito das urnas. Ainda que a mínima diferença entre as duas opções no pleito de 24 de novembro tivesse assinalado um ‘empate técnico’ entre as duas metades do país (*2).

A transição começou nesta segunda-feira (2/12), com reunião entre o presidente Tabaré Vázquez e Lacalle Pou. Prolixa informação, relação amistosa, sem traumas nem conflitos. Honrando a reconhecida ‘tradição cívica’ do país. Tudo controlado. Longe da turbulenta vizinhança regional. Abastecido contra a perseguição insurrecional. Não há perigo de contágio, por ora.

A contrarrevolução ideológica operada durante os 15 anos de progressismo governamental desinflou a radicalidade das demandas sociais e a intensidade da beligerância entre as classes antagônicas. Burocratizou a ideia de desobediência civil.

A paz social, efetivamente, aparece como uma aquisição cidadã. Só desafiadas pelos ‘marginalizados’, drogados, sicários, delinquentes e ‘lumpem-consumistas’ que maltratam a segurança pública. Por isso, a maioria da população requer proteção e autoridade do Estado. Com o novo governo, a repressão aumentará ainda mais. As prisões seguirão enchendo, principalmente de jovens. Qualquer insubordinação social estará sujeita à mão pesada das leis.

Sem fuga de capitais ou sabotagem dos ‘mercados’. As agências ‘qualificadoras de risco’, ainda que vigilantes sobre o ‘déficit fiscal’, já deram sua aprovação. As instituições financeiras internacionais apenas observam. Sabem que o programa macroeconômico terá escassas mudanças. Ainda que a pugna retórica sobre os ‘dois modelos de país’ tenha imperado na campanha eleitoral.

Mas os pilares são os mesmos, foram colocados nos anos da coalizão entre o Partido Colorado e o Partido Nacional, na chamada ‘década perdida’ de 1990. Lei Florestal; Lei de Investimentos; Lei de portos; Lei de Zonas Francas; Sistema de Administradoras de Fundos de Pensão (Afap – Ahorro Provisional).

Nenhuma delas foi derrotada nos últimos 15 anos de ‘hegemonia progressista’. Pelo contrário, a FA baseou seu programa econômico nessa ‘matriz’ herdada. Desregulação financeira; concentração-estrangeirização da terra; privatizações e terceirizações. E as leis de Participação Público-Privada (PPP – semelhantes às brasileiras) e de ‘Inclusão Financeira’, sob o mandato de Mujica (2010-2015) como presidente.

Um plus para a coalizão neoliberal. Não terá de fazer o ajuste lançando mão de uma nova bateria de contrarreformas. A não ser a da seguridade social, começando pelo aumento da idade mínima para aposentadoria. Mas sobre isso já é sabido: conta com o inexorável apoio da Frente Ampla.

No parêntese dos anos progressistas, conviveram neoliberalismo e ‘pós-neoliberalismo’, sem sair da mesma lógica de acumulação de capital. Agora, o núcleo duro genuíno assume o mando direto. Com a intenção de acelerar os mecanismos de apropriação privada da riqueza. Sem chegar a fissurar as peças do contrato básico: a democracia de mercado. Nisto, também, a ‘classe política’, de todos os lados do tabuleiro ideológico, concordam.

A blindagem funciona. É a ‘janela comparativa’ de uma democracia liberal, muito arraigada na sociedade. Organizada pelos de cima, consentida pelos de baixo. A isto se remete o infranqueável ‘pacto republicano’ que, tanto as elites progressistas como as direitistas, venderam e continuarão certificando. Dito em linguagem mais acessível: o caráter do regime político de dominação encontra consenso. Robusta musculatura, aparafusando a estabilidade institucional. Dando as condições necessárias de ‘governabilidade’, independentemente de maiorias ou minorias parlamentares. Assim vem ocorrendo desde a ‘restauração democrática’ em 1985, após 12 anos de ditadura militar.


O presidente Tabaré Vázquez, José Mujica, a vice presidenta Lucía Topolansky e o Ministro de Economia Danilo Astori.

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Amargura, claro. Isso se pensamos nos 400 mil trabalhadores que não alcançam dois salários mínimos por mês (*3); nos 120 mil trabalhadores aposentados com prestações ‘submersas’, isto é, miseráveis (*4); nos 54 mil assalariados que perderam seu emprego nos últimos cinco anos na indústria, na construção, no comércio, no agronegócio. Além dos 30% de jovens desempregados, menores de 25 anos, empurrados a sobreviver na desesperança do não-futuro. Se pensamos nas mais de 193 mil pessoas que habitam os 600 assentamentos precários, onde se reproduz a ‘pobreza estrutural’, afetando sobretudo mulheres chefas de lares, crianças e adolescentes. Ou nas 20 mil pessoas que, em algum momento, dormiram em ‘situação de rua’ durante os últimos três anos.

São dados inocultáveis. Uma fotografia nítida da ‘fratura’ socioeconômica que o progressismo e seus planos assistenciais focalizados nunca saturaram. Somam centenas de milhares. Compõem esse segmento da população classificada em ‘condição de pobreza’ (menos de 4 dólares diários) e de ‘classe média vulnerável’ (entre 10 e 15 dólares diários), segundo estudo mais rigoroso elaborado sobre renda, emprego, moradia, saúde, educação, núcleo familiar e faixas etárias, das chamadas ‘classes subalternas’ do país (*5).

Não obstante, muitos deles e muitas delas repetiram o voto à FA. Voltaram a sustentar um fio de confiança. Sobretudo a faixa mais jovem, entre 18 e 34 anos, que massivamente (55%) deu seu voto na chapa Daniel Martinez – Graciela Villar.

Sabendo, por um intuitivo olfato de classe, que suas condições de vida, já muito frustrantes, não melhorariam com um governo da coalizão ‘multicolor’. Entendendo, sem demasiada sofisticação analítica, o perigo de um avanço da ultradireita. Ainda descontentes, se entrincheiraram no sufrágio para ‘evitar o pior’, e cortar o passo do ‘fascismo’.

Esta corajosa decisão não assegura lutas imediatas, nem massivas resistências futuras. Tampouco pressagia uma onda de grandes greves ou ‘explosões sociais’ invadindo as ruas. Somente indica que há uma base social com capacidade de reação, e uma ‘acumulação demográfica’ que, inclusive em meio ao rechaço e à confusão, distingue as ‘fronteiras ideológicas’ que não podem dissimular-se. É uma das inumeráveis razões do por que tantos milhares de eleitores do Cabildo Abierto e do Partido Colorado, em 27 de outubro, optaram, no último momento, pela FA (*6).

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Não obstante, existem poderosas máquinas de amortizar as expressões de protesto e rebeldia popular. Os aparatos sindicais burocráticos e a maioria do secretariado do PIT-CNT (Central Nacional dos Trabalhadores) que, seguramente, regularão o ‘aumento da conflituosidade’ que anunciaram que viria se ganhasse o neoliberal Lacalle Pou. E, por supuesto, os principais dirigentes da FA. Que já propõem uma orientação de composição com o novo governo, especialmente com sua ala de ‘centro-direita’.

Ao ensaiar uma espécie de perspectiva, o ex-presidente e senador eleito, José Mujica, adiantou a possível estratégia: “não se deve bombardear inutilmente o novo governo, devemos sim bater por aquelas coisas que se considere importantes para as pessoas (*7)”. Argumento razoável, segundo dirigentes próximos a Lacalle Pou, como o senador Álvaro Delgado, futuro secretário da presidência: Mujica é ‘um interlocutor fundamental’ e ‘um ator chave neste processo’ (*8).

O presidente da Frente Ampla, Javier Miranda, foi mais explícito. O importante é ‘manter o diálogo’ com o futuro governo e ‘não empurrar Lacalle Pou aos braços dos seus sócios da extrema-direita’, ou seja, Cabildo Abierto liderado pelo general Guido Manini Ríos, ainda que não o considere um fascista como Bolsonaro. Se não, melhor buscar entendimento com as forças democráticas da coalizão, onde estão incluídos os partidos Colorado e Nacional. E de maneira alguma, enfatizou, a Frente Ampla ‘incendiará a floresta’ (*9).

Há um sólido e não tão distante antecedente que dá crédito a essa afirmação. Quando houve a pior crise econômico-financeira na história do país (2001-2002), em meio de uma espantosa crise social, a Frente Ampla desalentou qualquer ‘processo insurrecional’ similar ao ‘argentinazo’(2000-2001) e declarou sua ‘lealdade institucional’.


Luis Lacalle Pou sabatinado pelos representantes da coalizão de direita, incluindo o General Manini Rios.

Não são pura anedota. São razões decisivas. Ainda mais se considerarmos que a cúpula dirigente da Frente Ampla e sua tropa de funcionários e parlamentares, após o resultado de 27 de outubro (primeiro turno), havia jogado a toalha, dando por perdida a peleja. Por isso, foi um tanto mais indecoroso seu festejo na noite de 24 de novembro. Não houve uma ‘quase vitória’, mas um revés, uma derrota política, sem atenuantes, da FA como ‘partido de governo’; administradora dos assuntos de Estado, de suas ‘instituições representativas’ e de seus aparatos coercitivos, no quadro ‘infranqueável’ da ordem do capital. Durante 15 anos, essa cúpula dirigente funcionou como trituradora das ideias revolucionárias, anticapitalistas. Com o fechar de olhos das lutas sociais radicais e de qualquer horizonte emancipatório.

É verdade. Continua sendo a principal força política do país, governa Montevideo, a capital, há 29 anos, e voltou a ganhar no departamento de Canelones, ou seja, gerencia a região onde se concentra mais da metade da população do país. Contudo, esses dois ‘contrapoderes’ não desequilibram a nova correlação de forças criada com a vitória da direita.

Em outubro, a FA ganhou em 9 departamentos; em novembro, somente em dois, enquanto a coalizão encabeçada por Lacalle Pou venceu em 17. Um dado estratégico que a militância frenteamplista deveria registrar. Seus chefes foram afastados. O poder, real, mudou de mãos.

Também deveriam registrar as dezenas de acadêmicos, militantes políticos e ativistas sociais que, pouco antes do pleito, firmaram uma ‘Carta aberta às esquerdas’ convocando, com tom resignado, o voto na FA. Ainda que durante os últimos tempos vinham manifestando posições mais críticas, próximas da ruptura, ao avaliar a direitização política e econômica do governo da FA.

Na Carta, diziam: “após três governos, aqueles que militam no nível social e político fora da FA não conseguimos construir uma ferramenta política que nos permita organizar os anseios de mudança em uma perspectiva socialista. Pelo contrário, o primeiro turno das eleições nacionais nos mostrou que a FA segue sendo, goste ou não, o principal instrumento político-eleitoral dos setores subalternos. Por isso seus limites e deficiências nos doem como se fossem nossos, porque somos parte ativa do processo político popular uruguaio” (*10).

Logo depois da derrota, e da responsabilidade que cabe à direção da FA e a seus aparatos majoritários, o dilema de ontem se transforma em um cruzamento de caminhos. Porque a estratégia continua sendo a de um partido da ordem, burguês. A metamorfose não tem marcha à ré. Como ferramenta de transformação social, a FA deixou de existir faz muito tempo. Sua passagem para a oposição não a converte, novamente, em uma ‘opção de esquerda’. Sua atual natureza não muda.

Por sua parte, a direita que triunfou sabe que não tem um cheque em branco. Sobretudo em questões democráticas, direitos trabalhistas, conquistas de novos direitos, segurança pública. Muito menos que receberá uma trégua dos familiares de presos e desaparecidos em sua incansável busca pela verdade.

Mas está decidida a inclinar, decisivamente, a balança a favor do grande capital. E não duvidará em usar, se necessário, as corporações armadas do Estado. Sobre isso, já deu o primeiro sinal: o novo Ministro do Interior será o senador Jorge Larrañaga, entusiasta da reacionária reforma constitucional ‘Viver sem medo’, derrotada em 27 de outubro. (*11) Uma provocação ao mesmo tempo de um ruidoso golpe para Fernando Pereira, presidente da PIT-CNT, que uma semana antes das eleições considerava Larrañaga ‘o braço esquerdo’ da coalizão direitista e possível sócio em alguns temas (*12). Este exemplo por si só bem que poderia simbolizar o debacle político dos dirigentes da FA e de sua correspondente sindical. E uma advertência. A nula confiança que os trabalhadores e os militantes das esquerdas podem depositar neles.

Montevideo, 29 de Novembro de 2019.

Notas:

(*1) A aliança que acordou ‘um documento programático’ titulado “Compromisso pelo País”, está conformada pelo Partido Nacional, Partido Colorado, Cabildo Abierto, Partido Independiente, Partido de la Gente, todos com representação no parlamento.
(*2) Lacalle Pou obteve 48,8% do total de votos emitidos (1.189.313 votos) enquanto Martinez obteve 47,3% (1.152.271). Assim, a diferença de votos ficou em 37.042 votos.
(*3) A força de trabalho empregada é de 1 milhão e 500 mil pessoas. O salário mínimo nacional é de 14 mil pesos uruguaios, equivalente a 400 dólares.
(*4) Esta faixa de aposentados tem uma prestação de 12400 pesos, cerca de 360 dólares. Durante a campanha eleitoral, Daniel Martinez, candidato da Frente Ampla, se comprometeu, caso eleito, a dar-lhes um bônus de natal, sem anunciar o montante.
(*5) Progresso Multidimensional no Uruguai: Dinâmica do bem-estar das classes sociais nos últimos anos. Autores: Marco Colafrancesqui, Martín Leites e Gonzalo Salas. PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Montevideo, julho de 2018.
(*6) A coalizão vencedora não pôde reter seus votos do primeiro turno, que lhe davam uma soma de 54%. Enquanto a Frente Ampla captou pela direita. Ganhou cerca de 200 mil votos. Deles, 71 mil provenientes do Cabildo Abierto e 43 mil do Partido Colorado, e uma grande quantidade de ‘indecisos’ foram para o lado progressista. Fonte: ‘Daniel Martinez recogió más adhesiones entre los votantes de Cabildo Abierto que del Partido Colorado’, La Diária, 26/11/2019.
(*7) Declarações ao jornal da Telenoche, canal 4, recolhidas pelo diário El País, 28/11/2019.
(*8) Declarações ao Semanário Búsqueda, 21/11/2019
(*9) Entrevista ao Semanário Búsqueda, 28/11/2019
(*10) Carta Abertas às Esquerdas
(*11) Vivir sin miedo. Victória tensa, derrota a medias.
(*12) Entrevista ao programa 7o Dia, Teledoce, 17/11/2019

Ernesto Herrera é jornalista uruguaio, editor e correspondente do noticiário francês L’Encontre – Correspondencia de Prensa – onde o artigo foi publicado em espanhol.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

Esse artigo representa as posições do autor e não necessariamente a opinião do Portal Esquerda Online. Somos uma publicação aberta ao debate e polêmicas da esquerda socialista

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