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60 anos da Revolução Cubana: subdesenvolvimento e socialismo

Gabriel Casoni*, de São Paulo (SP)

Na década de cinquenta, quem poderia imaginar que uma revolução em uma pequena ilha no Caribe entraria para a história como um dos dos grandes acontecimentos do século XX? O destino de Cuba, que tinha 6,5 milhões de habitantes em 1958, a poucas milhas de distância da Flórida, parecia ser o da perpetuação da condição colonial. Aos quase quatro séculos de dominação espanhola, alicerçada no trabalho negro escravizado e na produção latifundiária para exportação, se somaram mais seis décadas de domínio neocolonial dos Estados Unidos, fundado na troca desigual e na submissão política direta. 

Se a fundação de um Estado nacional soberano, nesse quadro histórico marcado pela longa e acentuada dependência, já era vista com uma conquista improvável, o que se poderia dizer da tentativa de empreender uma transformação socialista? Contrariando os manuais escolásticos, esse foi precisamente o caminho trilhado pelo povo cubano a partir da Revolução de 1959. 

A coragem herética encontra uma explicação na peculiaridade do desenvolvimento dos fatores históricos no país: o imenso atraso da emancipação nacional produziu um acúmulo de forças e tensões represadas e adiadas por tanto tempo, que, quando foram finalmente desbloqueadas, assumiram a forma de uma radical e fulminante onda revolucionária.  

As forças sociais e políticas emergentes — a classe trabalhadora assalariada, as camadas médias urbanas e os camponeses — tinham diante de si uma tarefa histórica não resolvida: a obtenção da verdadeira independência nacional. Essa conquista democrática se colocava, na primeira metade do século XX, no contexto de dominação do poderoso e moderno imperialismo norte-americano. 

Para não retroceder, era necessário avançar. Sob o cerco do governo estadunidense, que não aceitou sequer reformas democrático-capitalistas, Cuba cruzou o Rubicão, rompendo, pela primeira vez na história das Américas, com o sistema capitalista.

Porém, o movimento contraditório do desenvolvimento histórico, desigual e combinado, também tinha seu efeito reverso, quer dizer, o passado ainda assombrava o futuro. O ousado plano de industrialização e diversificação econômica, na forma como foi concebido e executado nos primeiros anos da Revolução, não funcionou como pensado por Fidel Castro e Che Guevara. No início dos anos sessenta, o crescimento econômico decaíra, a pressão do embargo norte-americano aumentara, parte das novas indústrias não funcionava, a produção açucareira despencara e, com tudo isso, não havia divisas suficientes para importar produtos essenciais para o país.

 Perante o difícil cenário econômico, o governo cubano, estimulado pela União Soviética, tomou a decisão de “retornar” ao passado. A partir de 1963, Cuba voltaria a centrar seus esforços econômicos na produção de açúcar para exportação, a qual passaria a ser destinada, em grande medida, aos países do Bloco Soviético, que, em troca, forneceriam à ilha produtos industrializados, petróleo e alimentos. 

Desse momento em diante, uma junção peculiar e contraditória definiria a estrutura produtiva do país: uma economia em transição ao socialismo — fundada na propriedade estatal, no monopólio do comércio exterior e na planificação centralizada — estava organizada para produzir fundamentalmente açúcar a fim de abastecer a demanda soviética. Assim, os planos que visavam a industrialização e a diversificação econômica ficaram em segundo plano. O “arcaico” (a monocultura da cana) passaria a condicionar o “moderno” (o novo regime socioeconômico estabelecido pela Revolução).

Colocando em tela quase três décadas da integração de Cuba no Bloco Soviético, a constatação incontornável é de que a economia da ilha não alcançou uma estrutura superior de desenvolvimento econômico. Ao contrário: estava, ao final dos anos oitenta, tão ou mais dependente das plantações de cana-de-açúcar do que em 1959. 

A produção de açúcar para exportação era entendida, na argumentação em defesa da estratégia adotada pelo governo cubano, como uma atividade orientada à acumulação primitiva de recursos, que seriam posteriormente aplicados na industrialização e na elevação do padrão de vida do país. 

Se é verdade, por um lado, que a venda de açúcar, além do níquel e algumas outras matérias-primas, ajudou a financiar a efetivação dos direitos sociais universais básicos por meio da ampliação qualitativa dos serviços públicos, por outro, não se pode dizer o mesmo em relação à transformação da estrutura produtiva. A acumulação primitiva de capital no setor agrícola viabilizou economicamente a formação de uma economia estatal de serviços de qualidade (sistema educacional, de saúde, de pesquisa universitária), mas não a industrialização e a diversificação da produção agrícola em nível suficiente para modificar, de maneira substancial, a configuração produtiva. 

Cuba, pouco antes do colapso da União Soviética, dependia enormemente das importações para alimentar seu povo e manter em funcionamento suas fábricas e instalações produtivas. Desse modo, a condição de vulnerabilidade econômica — herança de séculos de exploração colonial e neocolonial —, embora alterada positivamente, não havia sido superada três décadas depois da Revolução de 1959. 

No momento em que o Bloco Soviético desapareceu (1989-1991), dissolvendo a cooperação econômica existente com a ilha, a extrema dependência e o isolamento internacional engendraram uma crise econômico-social sem precedentes em sua história contemporânea. Esse fato histórico transcendental — o fim da União Soviética — impeliu a ilha às significativas transformações econômico-sociais ocorridas a partir de 1990. Fidel Castro, em seu discurso ao Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), em 1997, explicou assim a denominação “Período Especial em Tempo de Paz”, proclamado no princípio dos anos noventa:

a Revolução, muito antes do colapso do campo socialista e do desaparecimento da URSS, procurava fórmulas, tentava prever; até mesmo o conceito de Período Especial é muito mais antigo e era um conceito para a guerra, que mais tarde foi transferido para uma situação de paz — de paz aparente, certo? — em um chamado período de paz; isto é, sem o uso de armas — e assim surgiu o título de Período Especial em Tempo de Paz, porque nada parecia tanto àquele período especial em tempos de guerra, e porque nesse conceito não existia, quando foi criado, nem a mais remota ideia de que um dia o campo socialista entraria em colapso e de que um dia a URSS desapareceria, porque quem dissesse isso, corria o risco, com razão, de ser chamado de louco, sem que ninguém suspeitasse que a obra de loucos tornou possível aquilo que ninguém havia acreditado; não se concebia, simplesmente (CASTRO, 1997; tradução nossa) (1).

A dissolução da União Soviética suprimiu, em um intervalo reduzido de tempo, o quadro de relações econômicas em que se inseria — e dependia — a economia cubana. De todo intercâmbio de Cuba com o mundo, 86,6% eram feitos com os países da Europa Oriental.

 Além do desvanecimento do campo aliado, os Estados Unidos decidiram, no governo Bill Clinton, recrudescer o bloqueio econômico, com o intuito de derrubar o regime político cubano e retomar as propriedades nacionalizadas pela Revolução. Paralelamente, no Leste Europeu, na Rússia, na China e no Vietnã, o sistema capitalista — ainda que sob formas distintas — estava sendo aceleradamente restaurado nos anos noventa.

Nesse cenário especialmente adverso, Cuba se viu forçada, para subsistir materialmente, a executar um giro brusco em termos de política econômica: diversas reformas de abertura capitalista foram aplicadas, a partir de 1990, para levantar uma economia que havia mergulhado em uma grave recessão. 

De acordo com Omar Everleny Pérez Villanueva (2007) (2), a economia cubana contraiu-se 38,2% entre 1990 e 1993 (-2,5% em 1990, -10,7% em 1991, -11 em 1992 e -14% em 1993). O PIB per capita, que era 2.806 pesos em 1989, caiu abruptamente para 1.808 pesos em 1993. Em seu pior momento, em 1993, a produção de açúcar diminuiu em 48%, a de níquel em 36%, 32% a de cítricos, 63% a de pescados e mariscos. A inflação pulou de 0,5% para 26%. O déficit fiscal saltou de 6% a gritantes 34% do PIB.

Diante da mudança radical no contexto histórico e da profunda crise econômica, as reformas instituídas na primeira metade dos anos noventa — incentivo aos investimentos estrangeiros, legalização de modalidades de propriedade privada, concessão de licenças para pequenos negócios privados, legalização do dólar, distribuição de parte das terras agricultáveis, em caráter de usufruto, a cooperativas e camponeses, entre outras — adquiriram um sentido de reformulação estratégica das bases econômico-sociais, abrindo uma etapa histórica caracterizada pelo relevante papel assumido pelas formas econômicas privadas. Essa etapa, de transição ao capitalismo, não se deteve nos anos noventa: atravessou a primeira década do século XXI, perdurando na atualidade. A análise e caracterização do período aberto em 1990 ficará para uma próxima publicação. 

* Gabriel Casoni é mestre em História Econômica pela FFLCH/USP

 


NOTAS

1 – No original: “Ya la Revolución, desde mucho antes de que se desplomara el campo socialista y desapareciera la URSS, buscaba fórmulas, trataba de prever; incluso, el concepto de período especial es muy anterior y era un concepto para la guerra, que después fue transferido a una situación de paz — de paz aparente, ¿no?, en un llamado período de paz; es decir, sin uso de las armas — y así surgió el título de período especial en época de paz, porque nada se parecía tanto a aquel período especial en época de guerra, y porque en aquel concepto no existía, cuando se creó, ni la más remota idea de que un día se derrumbaría el campo socialista y de que un día desaparecería la URSS, porque el que lo dijera corría el riesgo, con razón, de que lo tomaran por loco, sin que nadie sospechara que obra de locos hizo posible aquello en lo cual no habría creído nadie; no se concebía, sencillamente”.  

2 – Omar Everleny Pérez Villanueva é pesquisador do Centro de Estudios de la Economía Cubana (CEEC) e professor do Departamento de Economia da Universidade de Havana. 

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