Neste ano, o Ministério da Saúde declarou que não utilizaria mais o termo “violência obstétrica” por considerar impróprio, abolindo de todos os documentos de políticas públicas. Aparentemente, falar sobre o tema não “agrega valor”, afinal não há intenção de causar dano por parte dos profissionais da saúde. Na verdade, o termo é uma afronta a comunidade médica! Quem elas pensam que são? As mulheres que ousam denunciar más práticas e uma cultura que não respeita seus corpos, principalmente em um momento que estão tão vulneráveis. A posição segue o parecer do Conselho Federal de Medicina (CFM), que diz que a autonomia da mulher deve ter limites (!).
A própria Organização Mundial da Saúde tem uma visão contrária ao governo. Não só adota o termo como classifica a violência obstétrica como um ataque aos direitos humanos:
“No mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos
(…)
Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente. Em especial, as mulheres grávidas têm o direito de serem iguais em dignidade, de serem livres para procurar, receber e dar informações, de não sofrerem discriminações e de usufruírem do mais alto padrão de saúde física e mental, incluindo a saúde sexual e reprodutiva.”.
Declaração da OMS “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde”
A violência obstétrica é real e é grave. Na prática é uma apropriação do nosso corpo e do processo reprodutivo pelos profissionais da saúde. Recebemos tratamentos desumanizados, medicação abusiva e os processos naturais do parto e da gestação são tratados como doença ou algo a ser combatido. Nosso direito de tomar decisões é negado, assim como a nossa autonomia sobre o próprio corpo e sexualidade. O que gera consequências ruins para mãe e a criança. E o fato das mulheres terem mais acesso à informação e consciência dos seus direitos vêm incomodando muita gente.
Parece absurdo dizer que não temos direito ao parto respeitoso, mas essa é só uma das faces dos ataques aos direitos reprodutivos das mulheres. Quando falamos sobre o processo reprodutivo, não estamos falando só do parto, mas de pré-natal, pós-parto e aborto! Estamos falando também de acesso a métodos contraceptivos e à saúde pública.
No Brasil, a Primavera feminista, que derrubou Eduardo Cunha, começou em 2015 e levantou a bandeira dos direitos reprodutivos e sexuais. Não por mais direitos, mas para que não houvesse retrocessos. Um projeto de lei do então presidente da Câmara, queria dificultar ainda mais o acesso ao aborto legal para mulheres que sofrem estupro. Outro projeto era para criminalizar a pílula do dia seguinte. A PEC 181 que apontava “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção” tentava derrubar a legislação que garante o acesso ao aborto em três casos específicos (gravidez resultante de estupro, risco de morte da mulher e gestação de anencéfalo), colocando o direito do feto, acima do direito da mulher. Barramos nas ruas esses retrocessos!
Agora vem o contra-ataque com o governo de extrema-direita. O próprio Conselho Federal de Medicina passou a considerar, nas últimas semanas, que o feto possui mais direitos que a mãe. A mulher grávida passa a não ter autonomia de decisão para a escolha da intervenção médica. O profissional da saúde teria plenos direitos de intervenção sobre o corpo da mulher grávida, que não pode recusar uma prática terapêutica. Ainda segundo a resolução do CFM, a decisão da mulher pode se configurar em “abuso de poder” sobre o feto. Episiotomia, “manobra de Kristller” e outros procedimentos refutados cientificamente, violentos e muito utilizados no Brasil, passam a ser liberados, independente da vontade da mulher.
A resolução faz coro com o abominável Estatuto do Nascituro, defendido pela ministra Damares. O feto é considerado um ser humano ainda não concebido, ou seja, com plenos “direitos”. Qualquer ação de “violência” contra o nascituro é considerado um crime gravíssimo. Ou seja, reforça a criminalização da mulher que precisa abortar. Mas a pior parte do Estatuto diz respeito às mulheres vítimas de estupro que vieram a engravidar. Elas seriam obrigadas a passar por ações promovidas pelo Estado e pelo estuprador para tentar convencê-las de não abortar. Com direito a pensão alimentícia paga por quem violentou e tudo! Assim, Damares não deixa dúvidas sobre suas posições contrárias aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Ainda neste mês prometeu denunciar a revista de jornalismo independente AzMinas por ter feito uma reportagem com informações sobre o acesso ao aborto seguro em uma tentativa de censura. Detalhe: o conteúdo divulgado é da Organização Mundial da Saúde (OMS), aparentemente eleita inimiga do governo brasileiro.
Outro ataque da base do governo contra os direitos reprodutivos é o projeto de Janaina Paschoal (PSL) aprovado na Assembleia Legislativa de São Paulo e sancionado pelo governador João Dória (PSDB), que prevê a possibilidade da mulher realizar cesáreas pelo SUS “ainda que não haja orientação médica”. A ideia é combater o que a deputada chama de ditadura do parto normal. Curioso propor isso no país que mais faz cesáreas em números absolutos no mundo e o segundo em percentual!
O índice de cesáreas no Brasil é de 56%. O recomendado pela OMS (de novo ela) é de 10 a 15%. A UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) já emitiu um alerta ao Brasil em 2017 sobre esses números. Segundo estudos, grande parte das cesarianas são realizadas sem fatores de risco que justifiquem a cirurgia e antes de a mulher entrar em trabalho de parto.
“O trabalho de parto espontâneo é a única maneira 100% segura de saber que o bebê está pronto para nascer. Esse processo traz uma série de benefícios para a mãe e o bebê. Privá-los do trabalho de parto, por meio de cesarianas eletivas, pode gerar consequências negativas para a saúde de ambos”, diz Gary Stahl, representante do UNICEF no Brasil.
As cesarianas não são demonizadas por quem defende o direito ao parto respeitoso, elas também podem salvar vidas! Mas, os dados científicos demonstram que o excesso de intervenções cirúrgicas na gravidez não evitam a mortalidade materna, pelo contrário. Com isso, o projeto vai aumentar a mortalidade materna e neonatal. O mesmo projeto já está rondando a Câmara Federal pelas mãos da deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL).
E assim o mundo gira. As mulheres que podem pagar tem a garantia de partos respeitosos, pré-natal, aborto seguro, acesso a contraceptivos e todos os direitos sexuais e reprodutivos assegurados. Já nós, mulheres negras e periféricas, somos vistas como meras reprodutoras. E ainda temos que ver nossos filhos, pais, amigos, familiares serem assassinados pelo mesmo Estado que nos nega acesso à saúde pública.
Marcar o dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto é fundamental para todas aquelas que defendem direitos humanos básicos. O direito à vida! Não ficaremos presas e nem seremos mortas pelo Estado! O governo Bolsonaro fará de tudo para retroceder nossos direitos. Exatamente por isso nossa resposta deve ser completa. Foram as mulheres que floresceram a primavera, foram as mulheres que organizaram o #EleNão a um ano atrás. Seremos nós que vamos derrotar esse governo nas ruas. O feminismo para os 99% vai mudar o mundo!
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