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A grande família contra os índios: Bolsonaro, Trump e Macron na Assembleia da ONU

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Esta família é muito unida
E também muito ouriçada
Brigam por qualquer razão
Mas acabam pedindo perdão”
(Dudu Nobre)

Imaginem aquele primo fracassado e ressentido da Tijuca, adepto do empreendedorismo e prestes a virar uber na região da Taquara. Diante do tio rico e vulgar do churrasco, aquele típico parvenus caipira da Barra que enriqueceu sem deixar de amar o dinheiro, Deus e a gordura, nosso primo medíocre tenta dele obter carinho e proteção, e o faz criticando o esnobismo e a jactância pseudo-cultural de outro primo, criado em Ipanema, que fez MBA em gestão na FGV, e que conjuga a defesa do livre mercado com a diversidade sexual, patinetes elétricos e restrição ao glúten.

Apesar das divergências de modos, todos estão em família, e sabem que, com ou sem educação, com ou sem alarde, as filhas das domésticas habitantes da Rocinha e de São Gonçalo devem ser avisadas de que não convém pular na piscina durante o churrasco, e de que, tendo ou não entrado na universidade, jamais devem ousar a dar opiniões sobre os assuntos entabulados pelas dondocas damas que, cheirosa e ansiosamente, chacoalham suas jóias enquanto aguardam o petit gateau encomendado ao Gula Gula para a sobremesa. Todos, absolutamente todos, relativizam, ponderam ou abertamente defendem a execução de Ágatha. Há desavenças entre eles, como, aliás, há em qualquer poderosa família – ou milícia – que se preze. Alguns exaltam o feito, enquanto outros o lamentam e até por ele lacrimejam, do mesmo modo e com a mesma intensidade com que o fizeram quando do 7 x 1. Nenhum deles gosta muito de políticos – são todos iguais, dizem – mas todos têm os seus políticos de preferência, e todos idolatram juízes, pois estes, conquanto possam profanar a língua portuguesa e a Constituição, mantém preso o diabo social-democrata, fazem a barba e o jogo do mercado. Nenhum deles também gosta muito de índios, embora alguns possam se valer de sua cultura para adornar seus bistrôs e lounges (com wifi), enquanto outros só querem mesmo é celeremente incendiá-los, talvez para fazer pegar logo o fogo da churrasqueira.

Pois bem. Substituamos as três personagens familiares, isto é, o primo tijucano, o tio da Barra e o o primo de Ipanema, por, respectivamente, Bolsonaro, Trump e Macron, e teremos alguma ideia do que foi esse “churrasco” ocorrido ontem na ONU. A brasa está quente. Alguns nos querem mal passados, outros, bem. Todos, contudo, querem nossa carne, e a querem logo. Canibais neoliberais, bárbaros digitais, todos querem logo comer índios, assim como também salivam por trabalhadores, negros e pobres. Novamente, a barbárie derrota a selvageria, mas agora no sentido histórico inverso, agora regressivamente, e o agronegócio e a produção de carne dos novos bárbaros fazem com que os verdadeiros civilizados tenham urgentemente que se aliar aos selvagens se quiserem escapar dessa antropofagia sórdida e ultraneoliberal, na qual os comensais parasitários são os degenerados descendentes de uma burguesia que, um dia, tentou fazer avançar a civilização, mas que, hoje, seja na Barra, em São Paulo, na Amazônia ou em Paris, só faz destruí-la em uma velocidade supersônica. Os novos bárbaros estão com fome, tenham ou não educação à mesa quando a refeição chegar. O que varia, na verdade, é o ponto da refeição, é o cozimento da nossa carne, é, portanto, a quantidade do nosso sangue a ser derramado, e se ele vai se combinar com farofa, salada de maionese e batata palha ou com suflê de batata baroa e rúcula.

“Quem nos dera, ao menos uma vez, ver como um só Deus”, o capital, pode, ao mesmo tempo, ser três, e até mais. Todos os seus representantes, o tio, os dois primos, a tia luterana Angela e os agregados da corte querem nos devorar, pois todos eles, sejam da Tijuca, Barra ou Ipanema, ou quem sabe ainda de Glicério, Nova Iorque, Amiens ou Hamburgo, estão convencidos de que saco vazio não pára em pé, e que, diante das necessidades atuais do capital, eles ainda não têm o bastante. Por isso, esbravejem ou falem baixinho, gritem ou sussurrem -com o perdão de Bergman – querem e estão levando embora o que a gente não tinha, ou mal tinha. Estão levando os nosso direitos. Estão levando o meio ambiente. Estão levando as nossas vidas para que possam continuar a viver sem razão. Sem mundo. Sem nada. Só com o dinheiro. Só com o Deus dos deuses, segundo os crentes da mundana religião do mercado.

Ao menos uma vez, isto é, ao menos ontem, na ONU, os donos do banquete, os anfitriões do churrasco familiar, nos deram essa chance de ver as coisas como, de fato, elas são. Em um gesto raro de sinceridade, aquela sinceridade que só os prepotentes tiranos podem ter, os homens da ONU, ontem, magnanimamente, “nos deram espelhos”, e pudemos ver como eles, os donos do mundo, estão irrecuperavelmente doentes, e fizeram, do mundo, do nosso mundo, “um mundo doente”.

Antes de finalmente sermos servidos em seu churrasco familiar, no qual, mais cedo ou mais tarde, chegarão a um acordo sobre os detalhes e temperos do menu, sobre o ponto da carne a ser servida, temos que agir. Banal e desprezível para um abade glutão, a diferença de preparo dos pratos segundo o gosto dos membros do clã é deveras importante para os que se negam a serem devorados. É possível explorar as diferenças de gosto entre os tios e primos, e até momentaneamente preferir que os mais educados se saiam melhor na guerra de garfos, pois isso pode nos dar mais tempo para, de uma vez por todas, deixarmos de ser a comida e apagarmos todo e qualquer fogo. Às vezes, literalmente fogo.

Contudo, não podemos jamais esquecer que toda a grande família dos novos e sanguinários bárbaros, discursem bem ou mal, dominem ou não outros idiomas, querem, ao fim e ao cabo, nos devorar. Por ora, é forçoso confessar, estamos nós, os antigos e modernos índios dessas megalópoles degeneradas, tentando chorar, mas não estamos conseguindo. Mas vamos. Vamos chorar, vamos resistir e vamos guerrear, até que o “mais simples seja visto como mais importante”, e até que o futuro volte a ser “como era antigamente”, ou pelo menos como o era nos sonhos daqueles que cada vez mais são atacados apenas por serem inocentes.

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Bolsonaro / ONU