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BRASIL

As consequências da privatização em doses homeopáticas do SUS

Nelson Machado, de Belo Horizonte, MG
EBC/Agência Brasil

O tema da saúde pública no país é um tema político central. Esse tema traz consequências para a vida de milhares de trabalhadores. É uma conquista muito importante para a democracia do país: o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS tem como seu eixo central: universalidade, integralidade e equidade. Pilares sólidos que possuem um significado na vida de cada brasileiro que já utilizou ou utiliza o sistema de saúde pública no Brasil.

São conquistas do SUS e exemplos para o mundo, o nosso sistema nacional de transplantes, o sistema de hemocentros, o resgate de emergências e atendimento pré-hospitalar em situações de acidentes, o tratamento da Aids, a distribuição de medicamentos para o controle de doenças crônicas, como por exemplo hipertensão e diabetes, a produção de vacinas e as campanhas de vacinação para as doenças negligenciadas ou emergentes, bem como a expansão do programa saúde da família. (VERAS; SALDIVA, 2018; BRASIL, 2018).

Esse sistema tem passado por silenciosas transformações que tem afetado a vida da população. Essas transformações têm gerado um impacto importante nos pilares que citamos acima. Nosso objetivo central é discutir como o subfinanciamento do sistema tem proporcionado a abertura para as parcerias público-privadas (PPP), o fechamento de unidades básicas de saúde e também do atendimento especializado, além de redução dos profissionais de saúde e o fim da distribuição de medicamentos gratuitos.

Financiamento

O esforço para promover saúde (por parte dos profissionais de saúde) no Brasil tem se enfrentado diretamente com o descaso, o sucateamento e a má administração dos recursos na saúde.

Precisamos ressaltar que o princípio liberal de privatizar serviços não deve ser encarada como  alternativa para a maior parte da população de nosso país. Pelo contrário, temos que reforçar um sistema de saúde público, universal e gratuito. Nos últimos anos, a retirada de recursos, menor parcela de recursos aos municípios, além de cortes em programas tem afetado diretamente a população (PIOLA; FRANÇA; NUNES, 2016).

Os últimos governos têm favorecido a criação de planos de saúde privados mais populares. Essa postura reforça o sistema de saúde privado em detrimento do público. Apenas 23% da população faz uso do sistema privado, e mesmo para essa população que paga os planos de saúde, o acesso ainda é desigual, tornando ainda mais preocupante (OCKE-REIS; ANDREAZZI; SILVEIRA, 2006; CARVALHO, 2013).

Outro fator que demonstra os limites dos planos de saúde é a cobertura limitada para transplantes e para doenças graves, como neoplasias, mesmo após algumas portarias que atende a demanda dos tratamentos com medicamentos oncológicos. A cobertura dos planos privados mais simples não acontece, onerando o SUS, o qual, por sua vez, não é ressarcido. Esse sistema visa favorecer o capital privado em detrimento do sistema público, onera o SUS e quem perde é a maior parte da população brasileira, principalmente aquela situada nos estratos inferiores de renda familiar.

Muitos medicamentos para o tratamento de doenças raras só são conseguidos após demandas judiciais contra as grandes operadoras de saúde ou contra o Estado. No entanto, mesmo após um retorno positivo, a demora para receber os medicamentos pode demorar meses, colocando a situação das famílias em risco.

Os percentuais de investimento financeiro dos municípios, estados e União no SUS são definidos atualmente pela Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012, resultante da sanção presidencial da Emenda Constitucional 29.

Tomando como referência esta Lei, municípios e Distrito Federal devem aplicar anualmente, no mínimo, 15% da arrecadação dos impostos em ações e serviços públicos de saúde cabendo aos estados 12%. Além disso, diversas instituições da sociedade civil e movimentos sociais reivindicam 10% do PIB para a saúde (BRASIL, 2019; CEBES, 2019; BRASIL, 2013).

Em 2018, de todo o orçamento federal executado (R$ 2,621 trilhões) apenas 4,09% desse orçamento foi destinado para a saúde. Essa situação contrasta com aquela presente nos países que têm sistemas eficientes de saúde com acesso universal, como Reino Unido (94,2%), Suécia (84%) e França (81%), e tende à lógica observada nos Estados Unidos da América (47%), onde a opção foi privilegiar o sistema privado (BRASIL, 2019; CEBES, 2019; BRASIL, 2013; BRASIL, 2011; SIAFI, 2018). Estaríamos caminhando para um sistema de saúde sob a lógica norte americana?

Uma série de informações sobre esse processo estão na página Organização Mundial da Saúde. Os Estados Unidos possuem um dos maiores sistemas privados de todo o mundo, e a maioria das pessoas sem cobertura não pode pagar os tratamentos mais caros. O Brasil não pode se espelhar nesse sistema de saúde, pois o impacto na assistência à saúde traria diversas consequências, como o sucateamento do SUS (BRASIL, 2019; CEBES, 2019; BRASIL, 2013; BRASIL, 2011; VERAS; SALDIVA, 2018; PIOLA, 2016).

As ações mais recentes implementadas, bem como outras em fase de tramitação em nosso país parecem indicar que não se acredita mais no SUS e articula-se um processo de terceirização dissimulada rumo à privatização. Em um cenário como o nosso, onde desigualdades econômicas e sociais são marcantes, vislumbram-se no futuro graves consequências para o acesso à saúde de nosso povo. Essa perversa administração do SUS por parte dos governos deixa a população descrente em um sistema de saúde de extrema importância para o povo brasileiro (VERAS; SALDIVA, 2018; PIOLA, 2016; BRASIL, 2013).

Falta de planejamento

A lógica construída pelas grandes operadoras, empresários do setor saúde, agentes do capitalismo dentro do sistema público de saúde é que o SUS passa por um problema grave de gestão, apontando como saída central a privatização e terceirização de diversas partes do sistema. Os esforços de tentar solucionar o problema são mínimos e a saída é sempre esvaziar os fóruns democráticos do sistema, como os conselhos de saúde.

A lógica dos Conselhos de Saúde é empoderar a população para que consiga organizar e priorizar as questões centrais para as regiões de saúde. Ou seja, por meio dos conselhos de saúde é possível estabelecer prioridades, direcionar o financiamento e campanhas de saúde (GIL; LUIZ; GIL, 2016; BRASIL, 2013).

Pesquisadores da área da saúde coletiva, epidemiologia e saúde pública tem desenvolvido mecanismos de gestão compartilhada no intuito de aprofundar a participação popular dos trabalhadores. As Redes de Atenção à Saúde, as Equipes de Saúde da Família (ESF) os Núcleos de Saúde da Família (NASF) possibilitam a capilarização das iniciativas e melhor gestão do cuidado na rede de saúde pública (SOUSA, et. al., 2017).

A organização dos serviços, do ponto de vista da estrutura física, é importante. Tão importante quanto é prestar o cuidado resolutivo e de boa qualidade à população sobre sua responsabilidade. Para isso, o gestor e equipe gestora, junto com suas equipes de saúde, precisam investir na implantação e/ou no aperfeiçoamento de algumas ferramentas do cuidado.

No âmbito do SUS, o gestor terá mais sucesso se conseguir mobilizar e envolver todos os sujeitos inseridos na cadeia de produção do cuidado em saúde. Gerir o SUS é também a arte de trabalhar coletivamente, apesar das dificuldades e conflitos. Considera-se como ações fundamentais: reconhecer a existência do conflito, gerir o conflito e construir consensos que permitam avanços na gestão.

Apesar de existir um esforço por parte do movimento de saúde coletiva. Identificamos que existe um movimento real de subifinanciar essas iniciativas no intuito de precarizar o sistema, apontando as “soluções viáveis”.

A lógica de mercado se aproveita dessas fragilidades deixadas pelo Estado para oferecer o seu modelo de gestão e prática empresarial. Assim, o espaço que seria de planejamento de ações que impactassem a população é substituída pela necessidade de gerar lucros e buscar recursos fora do ambiente estatal. Na prática leiloar e oferecer ao capital privado as fatias do SUS. Vivenciamos isso nos anos 2000 com a forte presença das Organizações Sociais (OS’s), nos últimos anos com as Empresas Hospitalares.

Essa tentativa de resolver parte dos problemas de organização e gestão do sistema de saúde brasileiro é o modelo de gestão através de Organizações Sociais de Saúde (OSS). Esse modelo substitui em todo o país o modelo tradicional anterior, onde os serviços públicos eram geridos somente pelo Estado (CONTREIRAS, MATTA, 2015).

De forma simples, por meio dessas organizações os Estados transferem dinheiro para essas empresas gerirem os recursos e organizar o sistema. Experiências anteriores demonstram um enriquecimento dos empresários e um sistema empobrecido e carente de serviços, contribuindo para desigualdade no acesso e qualidade no atendimento.

Uma outra forma de gestão existente em nosso país são as Parcerias Publico-Privadas (PPP), vistas como estratégias inovadora, são baseadas em contratos e licitações que visam metas e resultados, no entanto a premissa é que as relações devem ser baseadas em confiança e benefícios mútuos. As PPP em visão nacional e global são um mecanismo essencial para a implementação de políticas sociais (CONTREIRAS, MATTA, 2015).

No Brasil, em um intervalo de quatro anos, cerca de cinquenta PPP foram identificadas, preferencialmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Essa implementação requer que o setor público se articule com o privado, e vice-versa. Outra observação prática: quem sai ganhando é o capital privado, principalmente com o aumento dos planos de saúde privado dentro dos hospitais públicos.

Atenção Primária e o fechamento dos postos de saúde

Um dos pontos fortes do SUS, a Atenção Primária à Saúde (APS) tem um simbolismo importante, principalmente quando falamos de prevenção e proteção à saúde. Ela é composta pelos postos de saúde, equipes de saúde da família e todos esses procedimentos mais simples, consultas com profissionais generalistas e que compreendem a dinâmica das comunidades e das regiões de saúde.

A atenção primária à saúde é o atendimento inicial, cujo principal objetivo é a prevenção de doenças, tratamento de agravos simples e o direcionamento de casos graves para outros níveis de complexidade. Assim, cabe à atenção primária o dever de atender e resolver grande parte dos problemas de saúde da população, além de organizar o fluxo de serviços na rede de saúde. Diferentes programas de atenção primária à saúde estão em vigência no Brasil e tem um impacto importante na vida dos brasileiros, realizando uma cobertura de 60% da população, conforme dados do ano de 2016 (VERAS; SALDIVA, 2018; PIOLA, 2016).

É triste, mas todo esse modelo que atende milhares de famílias em todo o mundo passa por uma série de ameaças. Os postos de saúde estão sendo fechados e as equipes de saúde da família esvaziadas. A maioria das prefeituras “investe” em compra de ambulâncias para transportar os pacientes para os serviços de urgência, superlotando-os. Muitos desses problemas poderiam ser resolvidos prontamente caso as equipes de saúde da família fossem ampliadas, melhora do financiamento e investimento no setor.Problemas de fluxo são interpretados pelo usuário como ineficiência e o induzem a não procurar diretamente a assistência básica.

Por fim a desorganização do sistema de saúde impacta o perfil de adoecimento no Brasil e aumenta os gastos no setor, como exemplificado pelas elevadas taxas de diagnóstico de câncer em estágio avançado. Isso ocorre porque o paciente percorre um longo percurso até acessar o centro especializado e ser diagnosticado, demandando um serviço de custo muito superior ao custo dos tratamentos da atenção básica.

O problema se reproduz também na assistência por planos de saúde, onde a atenção básica é praticamente inexistente e o usuário frequentemente procura diretamente um hospital independente da gravidade de seus sintomas. Ou, de forma alternativa, o usuário procura o hospital após dificuldades de agendamento com o especialista e exames relacionados.

Algumas conclusões e alternativas para a superação da privatização

Os desafios fundamentais a serem enfrentados, quando se objetiva manter um sistema de saúde público, gratuito e universal e com eficiência na atenção à saúde, pode ser resumido em: financiamento, gestão e acesso (priorizando a APS). Para a melhoria desses pontos, são necessárias políticas consistentes e contínuas, nas quais os gestores do SUS elaborem maneiras sustentáveis, sem o auxílio das instituições privadas, priorizando a participação popular e os princípios do sistema como eixos norteadores (VERAS; SALDIVA, 2018).

O Brasil necessita de um sistema público de saúde, como o SUS e todos os seus princípios, além dos programas que estão diretamente associados ao sistema. É importante deixar claro que privatizar  não irá resolver os problemas da saúde. Pelo contrário, o governo brasileiro precisa investir 10% das riquezas produzidas pelos trabalhadores para a superar a crise e o desmonte do SUS. Esta porcentagem pode ter, de fato, um impacto para melhoria e ampliação do sistema de saúde no Brasil.

Em relação aos serviços, a prioridade dos governos tem sido os serviços de urgência e emergência, o que reflete a falta de financiamento (ou sub-financiamento) e o esvaziamento da Atenção Primária, na prática é uma inversão da lógica. O movimento de saúde dos trabalhadores pensa diferente: garantir saúde passa primeiramente por ações efetivas de prevenção, promoção e acesso aos serviços de saúde. Podemos considerar ainda que moradia adequada, alimentação saudável, além lazer, saneamento e prevenção da violência são itens indispensáveis na promoção e prevenção de agravos à saúde da população.

O Brasil tem bons dados epidemiológicos. É preciso saber utilizar as informações a favor da melhoria da gestão e redução dos custos. Essas ações também podem contribuir para termos um sistema mais efetivo e que atenda a demanda da população. Atender a demanda da população é reafirmar os conselhos de saúde como espaços concretos para definição de estratégias.

 

Referências Bibliográficas

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CARVALHO, G. A saúde pública no Brasil. estudos avançados 27 (78), 2013.

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CONTREIRAS, H. MATTA, G.C. Privatização da gestão do sistema municipal de saúde por meio de Organizações Sociais na cidade de São Paulo, Brasil: caracterização e análise da regulação. Cad. Saúde Pública 31 (2) Fev 2015.

GIL, C.R.R.; LUIZ, I.C.; GIL, M.C.R. Gestão pública em saúde: a Importância do planejamento na gestão do SUS. Universidade Federal do Maranhão, EDUFMA, São Luís, 2016.

OCKE-REIS, C.O.; ANDREAZZI, M.F.S.; SILVEIRA, F.G. O mercado de planos de saúde no Brasil: uma criação do Estado? R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 10(1): 157-185, jan./abr. 2006.

PIOLA, S.F.; FRANÇA, J.R.M; NUNES, A. Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional de gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil. Ciênc. saúde colet. 21 (2) Fev 2016.

PONTES, M.A.; TAVARES, N.U.L; FRANCISCO, P.M.S.B.; NAVES, J.O.S. Aplicação de recursos financeiros para aquisição de medicamentos para atenção básica em municípios brasileiros. Ciência & Saúde Coletiva, 22(8):2453-2462, 2017.

SIAFI. Orçamento da União – Fiscal e Seguridade – até 2018. Disponível em:

SOUSA, F.O.S.; ALBUQUERQUE, P.C.; NASCIMENTO, C.M.B.; ALBUQUERQUE, L.C.; LIRA, A.C. O papel do Núcleo de Apoio Saúde da Família na coordenação assistencial da Atenção Básica: limites e possibilidades. Saúde debate 41 (115) Oct-Dec 2017.

VERAS, M.; SALDIVA, P.H.N. Gastos públicos com saúde: breve histórico, situação atual e perspectivas futuras. ESTUDOS AVANÇADOS 32 (92), 2018.