Ora, a rigor, tudo é cultural. Não só os instrumentos de trabalho, os mitos, os sistemas de casamento e a organização das cores em um léxico, mas – e é o que aqui interessa – todos os textos, todas as formas de narrativa são obviamente culturais. (Sírio Possenti, Os humores da língua, Mercado das Letras, Campinas, 1998, p.42).
Este é o artigo de estreia da minha coluna de Cultura no Esquerda Online. Ainda que muitos colaboradores já tenham abordado o assunto nestas páginas, a minha participação neste espaço implica assumir dois compromissos com o leitor: um é o de tratar a “cultura” como objeto específico de análise; o outro, o de publicar com regularidade. Posto isso, para poder investigá-la em sua singularidade, é condição que esteja delimitado com clareza o seu lugar no pensamento marxista (a bem do rigor metodológico, ela é parte de uma totalidade). Aliás, como não foi Marx quem inventou o termo, para poder definir o conceito de “cultura” na teoria marxista, em primeiro lugar, é preciso saber quais são exatamente os significados que se atribuem à palavra.
Para defini-la com precisão, pois, deve-se considerar que ela ocorre em diversos contextos, que lhe determinam diferentes traços de sentido. Dando exemplos concretos, as situações em que ela se manifesta são muitas e bastante variadas: da “cultura” de arroz, de soja e de cana à “cultura” de flores, de peixes e de abelhas; da “cultura” de aves, de ovelhas e de porcos à “cultura” antiga, medieval e contemporânea; da “cultura” negra, indígena e oriental à “cultura” grega, inglesa e brasileira; da “cultura” literária, musical e cinematográfica à “cultura” econômica, política e jurídica; da “cultura” popular, erudita e de massas à “cultura” machista, feminista e lgbt; da “cultura” jovem, acadêmica e pop à “cultura” elitista, autoritária e democrática; da “cultura” cristã, muçulmana e judaica à “cultura” aristocrática, burguesa e operária…
Como se percebe, a palavra “cultura”, apesar de ser a mesma em todas as ocorrências, pertence a “campos semânticos” distintos (com o perdão do trocadilho). As locuções adjetivas “de arroz” e “de soja”, por exemplo, caracterizam a “cultura” como “cultivo da terra”, remetendo à atividade econômica da “agricultura”. As locuções “de ovelhas” e de “porcos” definem a “cultura” como “criação de animais” (no caso, “ovinocultura” e “suinocultura”), relacionando-a à atividade econômica da “pecuária”. Os adjetivos “antiga” e “contemporânea”, em contrapartida, atribuem à “cultura” uma marca temporal, conferindo-lhe o sentido de “período histórico”. Já os adjetivos “negra” e “indígena” e “inglesa” e “brasileira” qualificam a “cultura”, respectivamente, pelos traços da “etnia” e da “nacionalidade”.
No caso dos adjetivos “muçulmana” e judaica”, a palavra “cultura” é definida como “crença religiosa”. Caracterizando-a como “literária” e “musical”, a “cultura” é interpretada como sinônimo de “arte”. Os pares de adjetivos “feminista” e “machista” e “hétero” e “lgbt” dão à “cultura” (com o perdão do trocadilho, novamente) outra orientação de sentido, associada às noções de “gênero” e de “sexualidade”. Por outro lado, os adjetivos “burguesa” e “operária” definem a “cultura” pelo caráter de “classe social”. Em outra perspectiva, os adjetivos “autoritária” e “democrática”, fazendo referência a “regimes políticos”, marcam a “cultura” pelo “grau de liberdade” nas relações pessoais, sociais, políticas e ideológicas (incidindo, pois, sobre a produção e circulação das ideias).
Enfim, poderíamos multiplicar os exemplos, dada a abrangência de usos desta palavra polissêmica: os que foram citados, contudo, já são suficientes para iniciar o esboço de uma formulação marxista do conceito de “cultura”. Lembrando o que disse o linguista Sírio Possenti na epígrafe, em linhas gerais, pode-se considerar que, “a rigor, tudo é cultural”: dos “instrumentos de trabalho” aos “textos”. É importante notar que Sírio parte exatamente da base material das relações humanas, isto é, das forças produtivas, para chegar à reprodução ideológica dessas relações na superestrutura (através dos “mitos” e “formas de narrativas”, por exemplo). A perspectiva metodológica que ele adota para problematizar a “cultura”, portanto, é marxista.
A propósito, vem bem a calhar, como endosso, esta reflexão de Marx e Engels em A Ideologia Alemã, na qual a dupla estabelece os fundamentos do método materialista, mostrando que é a partir do “processo real de vida” que se constituem os “reflexos e ecos ideológicos desse processo”:
A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui como direta exsudação do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, etc, de um povo. (Marx e Engels, A Ideologia Alemã, Expressão Popular, São Paulo, 2009, p.31).
Como se depreende do excerto, antes de se transformar em ideias políticas, jurídicas, morais, religiosas e metafísicas que caracterizam a identidade de cada povo, demarcando as semelhanças e diferenças entre um e outro, a “cultura” existe como “atividade material”. Em outros termos, a sua origem está na relação direta do homem com a natureza: quando este começa a desenvolver meios de agir sobre ela, submetendo-a às suas necessidades e desejos, surge a “cultura”. A etimologia da palavra, não por mera coincidência, revela a sua base material originária: “cultura” nasce do latim culturae, que significa “ação de tratar”, “cultivar”. Para deixar mais nítida a relação, a forma culturae deriva de colere, cujo sentido remete objetivamente ao “ato de plantar”, “desenvolver atividades agrícolas”.
Aliás, nas primeiras linhas do ensaio “Cultura e Socialismo”, Trotski faz referência exatamente a esta origem etimológica “materialista”, que serve de base concreta para fundamentar a sua análise da “cultura”:
Comecemos por lembrar que originariamente “cultura” significava apenas campo arado e cultivado, por oposição à floresta ou ao solo virgem. A cultura se contrapunha à natureza, isto é, correspondia ao que o homem tinha conquistado com seus próprios esforços, em contraste com o que tinha recebido da natureza (…). Cultura é tudo aquilo que foi apreendido, conquistado pelo homem no curso de toda a sua história. (Leon Trotski, Escritos Filosóficos, Editora Iskra, São Paulo, 2015, p.219).
Essa definição funciona, enfim, como uma espécie de resumo deste artigo de estreia da nossa coluna cultural: a origem da palavra “cultura”, como disseram Marx e Engels, é a “atividade material”, o “processo real de vida”. A “produção espiritual” – em que a “cultura” se manifesta através de regras jurídicas, valores morais, dogmas religiosos e teses filosóficas – decorre, no final das contas, da “produção material” da existência: ou seja, da “cultura” da soja, da cana, do arroz, das ovelhas, dos bois, dos porcos, dos peixes, das aves, etc. Ainda que o processo não ocorra de forma mecânica, por determinação imediata e exclusiva da base econômica (como Engels adverte na carta de 1880 a Joseph Bloch), é do cultivo das plantas, da “cultura” das flores, em última instância, que brotam as pinturas.
Em outras palavras, é dos “instrumentos de trabalho” que se fabricam os instrumentos musicais, que, através de muitas outras mediações, permitem aos homens “fabricar” canções. É através das técnicas desenvolvidas ao longo da história para dominar as forças naturais que se produz o papel, em que se reproduzem “textos e formas narrativas”, impressos em jornais, revistas e livros. Se não existisse “campo arado e cultivado”, como, por exemplo, os campos de algodão do Mississipi, e o modo de produção escravista, não haveria as condições materiais para a “produção espiritual” do “blues”: sem o pastor de ovelhas, o poeta não teria inventado a “poesia pastoril”. Ou seja, não foi o rap que criou a periferia, mas o sertão que fabricou o cordel: se não fossem as orelhas, os rabos e os pés dos porcos, os negros não teriam inventado a feijoada, traço de identidade característico da “cultura” gastronômica do Brasil.
Para concluir, é por essas razões que a palavra “cultura” deve ser compreendida como a síntese dialética da “produção material” e da “produção espiritual”: isto é, de “tudo aquilo que foi apreendido, conquistado pelo homem no curso de toda a sua história”. Por isso é que, partindo dos “homens em carne e osso”, para então chegar aos “homens narrados, pensados, imaginados, representados”, a palavra “cultura” subsume o vaqueiro e o aboio, o lavrador e o maracatu. A senzala e a feijoada, a capoeira e o jongo, a prisão e a gíria, a escravidão e o preconceito, enfim, são partes de um todo indissolúvel: nessa perspectiva é que, na dinâmica das relações desiguais e combinadas, pode-se dizer que, “a rigor, tudo é cultural”.
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