Na próxima terça-feira (20), está prevista a quarta tentativa de aprovação, na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do PL 7180/2014, denominado “Escola Sem Partido”, proposto pelo Deputado Federal Pastor Erivelton Santana, do Patriota (BA), com um substitutivo redigido pelo relator do projeto, o deputado do PSC (SP) Flavinho. O projeto de lei altera a Lei Complementar 9394/1996, a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), incluindo no seu artigo 3º o seguinte inciso:“XIII – respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”.
Uma mudança que, ao considerar os aspectos políticos e ideológicos do debate que a envolve, seus principais defensores e interesses no contexto social e político aberto com a eleição do presidente Jair Bolsonaro e seu projeto de governo autoritário, trará consequências gigantescas para a educação e seus principais protagonistas: os professores e estudantes.
Qual a origem do Projeto?
O projeto de lei que a Comissão Especial pretende aprovar no próximo dia 20 é a versão final da junção de diversos projetos de lei, que há quatro anos se acumularam na Câmara dos Deputados (PL 7181/2014; PL 867/2015 (1); PL 6005/2016; PL 1859/2015 (3); PL 5487/2016; PL 10577/2018; PL 10659/2018; PL 8933/2017 e PL 9957/2018), em sua maioria, como resultado da adesão de deputados ligados ao fundamentalismo relgioso às teses defendidas pelo advogado e procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, que, em 2004, criou o Movimento Escola Sem Partido para “combater” o “flagelo da educação brasileira”: a suposta “doutrinação ideológica” que a “pretexto de transmitir aos alunos uma ‘visão crítica’ da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo”. (“Quem somos”, escolasempartido.org).
De acordo com o advogado e seu movimento, que se apresenta como “uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”, a organização do movimento se deu devido às frustradas “tentativas de combatê-la por meios convencionais”, pois “sempre esbarraram na dificuldade de provar os fatos e na incontornável recusa de nossos educadores e empresários do ensino em admitir a existência do problema”, propondo então a “idéia de divulgar testemunhos de alunos, vítimas desses falsos educadores. Abrir as cortinas e deixar a luz do sol entrar.”
Apesar das tentativas de passar a imagem de um movimento de “estudantes e pais preocupados”, diversas são as tramas que ligam o movimento e seu principal coordenador ao Instituto Millenium (Imil), entidade formada “por intelectuais e empresários” para promover “valores e princípios que garantem uma sociedade livre, como liberdade individual, direito de propriedade, economia de mercado, democracia representativa, Estado de Direito e limites institucionais à ação do governo”, que tem dentre seu grupo de fundadores figuras bastante conhecidas por seus posicionamentos políticos e econômicos de cunho privatista como o jornalista Antonio Carlos Pereira, d’O Estado de São Paulo; Guilherme Fiuza, jornalista da revista Época; Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central na época de FHC; Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central nos governos de Lula e do golpista Michel Temer, que construiu sua carreira no Bank Boston, chegando a sua presidência internacional em 1996; Paulo Guedes, indicado como super-ministro da economia do governo Bolsonaro e “fundador e sócio majoritário do grupo financeiro BR Investimentos e um dos quatro fundadores do Banco Pactual”; além de Rodrigo Constantino, economista e articulista da revista Veja. Ou seja, a gênese e desenvolvimento do “movimento” está umbilicalmente ligada a um instituto que reúne a “nata” da intelectualidade da “nova” direita brasileira, defensora do neoliberalismo na sua fase senil, ou seus principais partidários e porta-vozes. É um projeto de “escola sem partido” apenas no nome, pois é defendida e busca expressar os interesses da corrente de opinião dominante na sociedade!
A localização dos ideólogos e apoiadores, abertos ou velados, do projeto é importante porque a disputa de projeto de escola em curso representa interesses sociais, políticos e econômicos bastante distintos. Os defensores da “escola sem partido” criam um fantasma, a “doutrinação ideológica” de professores, que mais uma vez são responsabilizados pelo maior “flagelo da educação brasileira” e a utilizam como “cortina de fumaça” para não discutir os verdadeiros flagelos da educação brasileira: o baixo investimento que há décadas está sendo aplicado no país e as defasagens estruturais que foram se acumulando nas décadas de austeridade fiscal neoliberal sob suas diversas formas que, desde o governo Collor – e não superada mesmo sob os governos petistas, criaram um verdadeiro apartheid educacional no país. Um projeto com o qual os fundadores do Imil, o Escola Sem Partido e seus defensores (MBL, senadores, deputados, vereadores, incluindo nesta lista o presidente Jair Bolsonaro) estão comprometidos até o último fio de cabelo: a privatização da educação pública e de seus recursos.
Conseqüências da aplicação do projeto
Caso o projeto seja aprovado, as conseqüências para a vida de estudantes e professores serão gigantescas. Temas que afligem a juventude em nossa sociedade estariam excluídos dos espaços educacionais. A discussão sobre questões referentes às desigualdades entre homens e mulheres, a situação da população LGBT ou o racismo estrutural de nosso país serão proibidos. Mas a censura que querem impor não se limita apenas aos debates sobre temas referentes aos setores mais oprimidos de nossa sociedade, o que já não é pouca coisa. O projeto também abre margem para o impedimento da própria reflexão sobre a história do país ou do mundo, pois temas como a escravidão negra no Brasil, o genocídio promovido pelo nazi-fascismo contra judeus, ciganos, negros, etc no século XX ou a ditadura civil-militar que existiu no país entre 1964 e 1984 poderiam ser temas relativizados nos espaços escolares, pois poderiam confrontar as “convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis” uma vez que “os valores de ordem familiar” teriam “precedência sobre a educação escolar”, de acordo com o que propõe os defensores do projeto.
O esvaziamento de uma reflexão crítica sobre a História e a atualidade defendido pelos entusiastas do projeto empobrecerá a escola como espaço de construção de conhecimento e fortalecerá a característica da escola como um espaço de reprodução acrítico das mazelas da sociedade, ao invés de fortalecer mecanismos para a construção de uma concepção de educação democrática, tolerante e de desenvolvimento de relações humanas mais civilizadas diante das diferenças e diversidade.
Tende a agravar problemas cotidianos bastante presentes no espaço escolar como a violência física ou psicológica contra estudantes que se encontram nos grupos sociais, que historicamente são violentados em nossa sociedade (mulheres, negros e LGBT’s), pois os educadores estariam impedidos de problematizar com os estudantes as raízes e consequências para as relações sociais das desigualdades historicamente construídas contra estas parcelas de nossa população.
Por último, o projeto busca romper as relações de solidariedade entre comunidade, estudantes e professores, ao incentivar o policiamento ideológico e o denuncismo, típicos das sociedades autoritárias, impedindo que cimentemos relações estreitas para a defesa da qualidade da educação.
Derrotar o “Escola sem Partido” para defender o caráter democrático da educação
Desde o surgimento deste debate várias iniciativas de resistência têm sido desenvolvidas em todo o país. Comitês, frentes, campanhas desenvolvidas pelas entidades sindicais e do movimento estudantil tem buscado fortalecer entre educadores, estudantes e demais setores populares uma massa crítica contra o projeto.
Do ponto de vista institucional, o STF, em caráter liminar, decretou inconstitucional o projeto de lei de mesmo conteúdo aprovado pela Assembleia Legislativa de Alagoas, e esta tem sido a interpretação de diversos setores ligados ao poder judiciário de norte a sul do país. Um julgamento sobre o mérito da questão sobre o projeto de Alagoas está previsto para o próximo dia 28 de novembro.
Neste sentido precisamos fortalecer e unir as iniciativas em curso para ter força social para barrar a votação na Câmara e no Senado, assim como para aumentar a pressão sobre o STF para a declaração de inconstitucionalidade definitiva de qualquer restrição às liberdades democráticas de estudantes e professores, como pretendem os defensores da “Escola sem Partido”. Para avançar na construção da unificação da resistência contra a escola com mordaça, é necessário que as entidades nacionais da educação, dentre elas a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), seus sindicatos e a União Nacional dos Estudantes (UNE), convoquem todas as frentes e comitês já existentes no país para a construção de uma campanha unificada e construam de forma democrática um calendário de mobilização nacional para a luta pelo definitivo arquivamento deste projeto nefasto para a construção de uma educação que atenda ao que está estabelecido em nossa Constituição Federal em seu artigo 206: igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas.
*Richard Araujo é professor e diretor da Apeoesp
Foto: Mídia Ninja
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