No limite: entre medo, precarização do trabalho, exposição de risco, falta de estrutura, desgaste emocional e distância da família, profissionais da saúde enfrentam o caos


Publicado em: 26 de maio de 2020

Brasil

Relatos da Linha de Frente

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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Zona Oeste, Rio de Janeiro, maio de 2020. O cenário é de uma guerra travada por um vírus invisível e um Estado que prefere fechar os olhos frente às mazelas sociais que são potencializadas em plena pandemia. A região que já concentra a maior porcentagem dos óbitos de uma cidade que já é a segunda do país mais afetada pela covid-19, de acordo com dados do Ministério da Saúde e Secretaria do Estado de Saúde (SES).

Cada estatística representa uma história, a vida de uma pessoa e um misto de sentimentos. Cristina, 41 anos, médica da família e comunidade da UPA de Senador Camará e militante da saúde  que o diga.  

Ela ocupa o cargo desde fevereiro de 2020, em caráter CLT e em menos de um mês, se deparou com um giro de 360º na sua carreira e rotina pessoal. Com pelo menos dois plantões semanais de 24h, a profissional que atua na linha de frente detalha o que está enfrentando com os colegas. Confira o depoimento:


Eu trabalho na sala verde, porta de entrada da UPA que fica após a triagem. Lá, os pacientes são recebidos e avaliados.  Ou eles vão embora ou são internados. Caso sejam internados, vão para a sala amarela ou vermelha. A internação pode servir para fazer medicação (como a morfina) ou pedir exame, como HIV. No caso da tomografia, o paciente precisa ter internado e encaminhado para outra unidade, onde faz o exame e volta.

Desde fevereiro, todos os profissionais da UPA estão ouvindo falar da covid-19. Nós passamos pelo treinamento, feito pelo gerente da clínica e nós (pelo menos os profissionais da medicina), líamos um protocolo e assinamos que estávamos cientes sobre a situação. Na metade de março, começamos a receber EPIs e houve a necessidade de usar luva, gorro, máscara cirúrgica e saber como seria feito o atendimento.

A qualidade da máscara muda, mesmo sendo cirúrgica. Nós da sala verde usamos e o pessoal da sala amarela e vermelha também.  Coma  chegada da covid, a UPA mudou a dinâmica. Nós tínhamos uma sala menor de isolamento, além do espaço da pediatria e salas amarela e vermelha. 

O isolamento virou leito normal. A sala maior virou espaço para covid e a pediatria, leito normal. Os pacientes que estão internados não podem receber visitas e os profissionais, de medicina ou enfermagem conversam, no horário de visita, com os familiares. Nós não podemos fazer  nebulização porque ela espalha aerosol e isso é um problema para os pacientes asmáticos, por exemplo, que já estão em um lugar bem arriscado para eles.

 A UPA disponibilizou a máscara Face Shield, mas só para quem tá na sala vermelha. Antes de eu saber que isso existia, meus colegas já estavam comprando e perguntando quem ia comprar, quantas iam querer, se alguém ia querer fazer uniforme para usar no lugar da roupa comum.

Por enquanto, a gente ainda tem profissionais do grupo de risco trabalhando. Eles são colocados para trabalhar com pacientes assintomáticos. Ou seja, quem não tá tossindo não está com febre, dor no corpo e nem coriza é atendido por médico (a) de 60 anos, hipertenso ou diabético. O Sindicato  entrou na justiça e estamos aguardando retorno. 

Conseguimos, via sindicato, garantir EPI e teste para os médicos. Mas é complicado porque a gente tem que conseguir para todos os profissionais de saúde e não só para uma categoria. Não adianta um médico usar máscara se um enfermeiro não usa, se o psicólogo não usa, se o profissional de limpeza não usa. O sistema de saúde funciona em equipe. A gente conseguiu avanços, mas estamos aguardando.

A dinâmica doméstica também mudou. A maioria dos profissionais teve sua dinâmica  doméstica alterada, né? Todo mundo fala de colocar os sapatos do lado de fora e de dar um jeito de trocar de roupa antes de entrar em casa…

Aqui na minha casa, a gente teve várias situações de adaptação. Houve momentos em que a gente não tinha coragem (eu e meu companheiro) de dormir juntos.  Eu comecei a trocar de roupa na copa da casa e colocar um cesto. É isso que se mantém até hoje. Um banheiro antes de entrar na casa com um cesto, onde tiro minha roupa, sapato e tudo que eu usei. A bolsa que eu levo para trabalhar que fica fora da casa.

Existe um clima de medo e insegurança entre os profissionais da saúde em todos os sentido. Se a gente vai sobreviver, se a gente sobreviver quem vai ter ficado para trás, se a gente vai contaminar a própria família. Tem profissionais que estão afastados de filhos pequenos e estão sofrendo muito. A gente não pode se afastar (do trabalho), não pode tirar férias, não pode nada agora. O desgaste psicológico é imenso, porque o apoio que a gente tinha da família, a gente não tem e não pode contar. Somos latino-americanos,  a gente abraça né? Isso tá fazendo muita falta. Há medo de adoecer e não ter estrutura para cuidar.

Tá sendo difícil transportar paciente  com covid para fora da UPA, por exemplo. A gente chega com paciente sintomático e as pessoas perguntam se tem teste. Temos que comprar uma briga para conseguir internar um paciente. A própria estrutura hospitalar não está tendo como absorver os pacientes.

No caso da nossa UPA, não tem radiografia e não tendo radiografia, tem que fazer  tomografia. E a gente precisa ir para fora e procurar outra estrutura que não necessariamente vai ter espaço, vaga ou ainda mais: coragem de colocar uma pessoa com suspeita de covid-para dentro.  É uma briga que a gente tem comprado, ligamos na regulação, reclamamos e vamos movimentando por aí”.


 

O relato de Cristina aponta um colapso não só no sistema como um todo, como na vida de cada um neste momento. De um lado, os médicos conseguem EPIs (racionados) e de outro, falta EPIs para outros trabalhadores que também estão atuando na linha de frente.

Apesar dos avanços, a vida e risco de morte é equilibrada em uma balança desumana e cruel. Profissionais do grupo de risco podem se expor? 

Falta de equipamentos básicos, falta de estrutura, superlotação e “briga” para ver qual paciente será atendido. O cenário é de uma guerra real. Nisto tudo, como é que fica o sentimento de quem não pode parar e não sabe se vai conseguir abraçar de novo quem está em casa?

A precariedade do trabalho, a falta de testes de covid e as próprias desigualdades na distribuição dos EPIS revelam o pior deste momento.  Na linha de frente sim, mas no limite entre salvar vidas e adoecer a si mesmo (a) sem garantia do direito de se cuidar.

 

Por Cristina e por todos os trabalhadores, seguimos contando essas e outras histórias na iniciativa Relatos da Linha de frente.Clique aqui e saiba mais!

Equipe: Bruna Martins, Carolina Freitas, Karine Afonseca, Rhaysa Ruas, Tatianny Araújo e Paula Nishizima.


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