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Bolsonaro é ou não um neofascista?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A ave de rapina não canta. A desgraça não marca encontro. A ignorância e o vento são do maior atrevimento.
Sabedoria popular portuguesa

Abriu-se um debate, inclusive na esquerda, se Bolsonaro é ou não um neofascista. Este debate não é um diletantismo. Exige rigor. Quais devem ser os critérios para a classificação de uma liderança política? É preciso ser muito sério quando estudamos nossos inimigos. Quem não sabe contra quem luta não pode vencer.

Evidentemente, a qualificação de qualquer corrente política ou liderança de ultradireita como, sumariamente, fascista é uma generalização apressada, historicamente, errada e, politicamente, ineficaz. O fascismo é um perigo tão sério que devemos ser serenos na sua definição. Toda a extrema-direita é radicalmente reacionária. Mas nem toda a extrema-direita é fascista. É necessário avaliar, ponderar, calibrar, qualificar com cuidado nossos inimigos.

Bolsonaro é um neofascista. Ou um fascista da etapa histórica em que vivemos, depois da restauração capitalista na ex-URSS e China. Enganam-se os que pensam que se trata de um exagero. Bolsonaro é perigosíssimo. Mesmo considerando que ainda não construiu um partido fascista em escala nacional. Mesmo considerando que a maioria dos seus eleitores não sejam fascistas. O que é qualitativo é que o núcleo dirigente está se formando.

Sim, o neofascismo não é uma cópia exata do fascismo. O fascismo foi pra o marxismo, essencialmente, a forma política da contrarrevolução diante do perigo da revolução europeia, quando a existência da URSS inspirava a causa dos trabalhadores. Todos os partidos fascistas defendiam a necessidade de um regime totalitário. A eliminação das liberdades democráticas dos regimes eleitorais era instrumental para destruir as organizações dos trabalhadores. Mas o fascismo italiano não era, exatamente igual ao nazismo alemão (obsessão antisemita), ou ao franquismo espanhol (preservação formal da monarquia), e o salazarismo português (fanatismo católico) tinha, também, suas peculiaridades. Movimentos fascistas em muitas outras nações, inclusive no Brasil, o integralismo, existiram no mesmo período histórico. Mas, apesar de suas nuances, todos merecem a qualificação de fascistas.

Acontece que não estamos em uma etapa semelhante aos anos trinta do século passado, depois da catástrofe da Primeira Guerra Mundial, depois da vitória da revolução russa e da crise de 1929. Não estamos, desde a crise econômica mundial de 2008, diante dos “anos trinta em câmara lenta”. Não há perigo iminente de uma nova revolução de outubro. Não obstante, à escala mundial, assistimos ao reforço de uma extrema-direita nos últimos dez anos.

O neofascismo em um país periférico como o Brasil não pode ser igual ao fascismo de sociedades europeias dos anos trinta. Em primeiro lugar, porque não responde ao perigo de revolução. Responde à experiência de setores da classe média durante os quatorze anos de governos de colaboração de classes do PT, e à estagnação econômica e regressão social dos últimos quatro anos, a maior da história contemporânea.

O antipetismo dos últimos cinco anos é a forma brasileira de antiesquerda, anti-igualitarismo, ou anticomunismo dos anos trinta. Não foi uma aposta do núcleo principal da burguesia contra o perigo de uma revolução no Brasil. Até poucas semanas atrás a imensa maioria da burguesia apoiava Alckmin. Bolsonaro é um caudilho. Sua candidatura é a expressão de um movimento de massas reacionário da classe média, apoiado por frações minoritárias da burguesia, diante da regressão econômica dos últimos quatro anos.

Os modelos teóricos podem ser vários. Mais simples ou mais complexos. Com mais ou menos critérios. Eis um esboço ou uma sugestão de dez critérios:

(1) sua origem social;
(2) o que fez ou trajetória;
(3) o que defende: sua ideologia ou programa?
(4) qual é o seu projeto político?
(5) que relação manteve com as instituições, com o Congresso ou com as Forças Armadas, portanto, sua posição diante do regime político?
(6) que relação manteve, respectivamente, com a classe dominante, e com a classe trabalhadora?
(7) com que tipo de partido ou movimento é o seu instrumento de luta?
(8) quem o apoia ou qual é sua base social, e a dimensão eleitoral de sua audiência;
(9) quais são as suas relações e apoios internacionais;
(10) de onde vem o dinheiro ou quais são suas fontes de financiamento;

Seguindo este pequeno esquema, e considerando estes dez critérios, podemos concluir que:

1. A origem social de Bolsonaro é a pequena-burguesia plebeia. A procura de ascensão social rápida através de uma carreira de oficial no Exército não foi incomum, durante gerações, especialmente, entre eurodescendentes. Ela exigia um desempenho escolar inferior às carreiras de medicina, direito, engenharias nas Universidades Públicas (além de oferecer um soldo desde o início), e oferecia como recompensa estabilidade, e uma remuneração, comparativamente, muito mais elevada que a de um professor de educação física. Esta origem de classe explica algumas das obsessões de Bolsonaro: o racismo rancoroso, o ressentimento social, o anticomunismo feroz, o nacionalismo suburbano, o fascínio pelo modo de consumo da classe média norte-americano, e o rancor anti-intelectual.

2. Não se deve julgar um líder político somente pelo que diz, mas pelo que ele faz.
A trajetória de Bolsonaro, durante os últimos quarenta anos, foi a de um oficial insubordinado delirante e, depois, de um deputado corporativista folclórico marginal no último degrau do “baixo clero”. Bolsonaro nunca foi brilhante. Sempre foi um medíocre, um desaforado, na verdade, um boçal. Bolsonaro está presente na luta política há trinta anos, e já acumulou seis mandatos de deputado federal. Mas não se pode compreender o lugar, qualitativamente, diferente que ocupa hoje sem analisar o papel da LavaJato desde 2014, e a apropriação histórica da bandeira anticorrupção por setores da classe dominante. Frações da burguesia brasileira já usaram essa bandeira em suas lutas intestina em 1954 para derrubar Getúlio Vargas, em 1960 para eleger Jânio Quadros, em 1964 para legitimar o golpe militar, em 1989 para eleger Collor de Melo, e em 2016 para fundamentar o impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro saiu da obscuridade nas mobilizações pelo impeachment entre 2015/16, quando a exigência de intervenção militar ganhou audiência entre dezenas de milhares dos milhões que saíram às ruas.

3. Bolsonaro responde à demanda de liderança forte face à corrupção no governo; de comando diante do agravamento da crise da segurança pública; de ressentimento diante do aumento do peso dos impostos sobre a classe média; de ruína de pequenos negócios diante da regressão econômica; de pauperização diante da inflação dos custos da educação, saúde e segurança privadas; de ordem diante das greves e manifestações; de autoridade diante do impasse da disputa política entre as instituições; de orgulho nacional diante da regressão econômica dos últimos quatro anos. Responde, também, à nostalgia das duas décadas da ditadura militar em franjas das classes médias exasperadas. Não fosse isso o bastante, conquistou visibilidade dando expressão à resistência de ambientes sociais atrasados e reacionários à luta do feminismo, do movimento negro e LGBT, ou até dos ecologistas.

4. O projeto político de Bolsonaro é um regime bonapartista. Isto significa a subversão do regime semipresidencialista estabelecido nos últimos trinta anos. Bolsonaro expressa o repúdio desta classe média contra as conquistas sociais e democráticas da Constituição de 1988. Bonapartismo, derivado de Bonaparte, inspirado pelo modelo francês, significa um regime autoritário em que a presidência se eleva acima das outras instituições, Congresso e Judiciário, e concentra poderes excepcionais, em nome da defesa da unidade da nação. Essa é a importância do slogan “ Brasil acima de tudo”. Há vários tipos de bonapartismo. O projeto de Bolsonaro, apoiado na mobilização de um movimento de massas de desesperados, sugere o plano de um regime autoritário que, dependendo das condições da luta político-social, pode vir a adquirir formas semifascistas.

5. As relações de Bolsonaro com as instituições, tanto quanto é possível prever, indica uma forte representação das Forças Armadas e das polícias em seu possível governo. Bolsonaro não é um populista de direita como Trump. Não é, tampouco, somente um líder autoritário, que será, facilmente, neutralizado pela pressão dos principais chefes da classe dominante, depois de derrotar o PT nas eleições. Depois da vitória eleitoral, com uma provável maioria no Congresso para realizar as emendas que desejar na Constituição, e pleno suporte no Exército, Bolsonaro estará legitimado para o exercício do poder em condições que ninguém na presidência teve desde 1985.

6. Bolsonaro vem improvisando uma relação com a grande burguesia através da nomeação de Paulo Guedes como seu superministro da economia. Trata-se de uma improvisação que se acelera. O plano econômico apresentado é ultraliberal, com ênfase em privatizações indiscriminadas e aceleradas, choque fiscal brutal, e ataque frontal aos direitos dos trabalhadores, começando por uma reforma de previdência. Sua estratégia é reposicionar o Brasil no mercado mundial ao lado dos EUA contra a China. Conta para isso com investimentos dos EUA no Brasil para sair da estagnação.

Esta estratégia é coerente com os planos estratégicos dos núcleos mais poderosos da burguesia interna, mas não pode ser aplicada sem que haja grande confronto social, porque não ocorreu, até agora, uma derrota histórica da classe trabalhadora brasileira. Uma derrota histórica acontece quando uma geração perde a confiança em si própria, e é necessário um intervalo histórico para que uma nova geração se coloque em movimento. Em 2015/16 o que aconteceu – o processo que culminou com o golpe parlamentar que derrubou o governo Dilma Rousseff – não foi uma derrota histórica. O que vivemos foi uma inversão desfavorável da relação social de forças: uma derrota político-social. Mas a evolução da situação reacionária, se não for revertida, é uma ameaça seríssima.

7. Bolsonaro não se apoia em um partido fascista. Usou como instrumento eleitoral um partido de aluguel. Mas esta debilidade orgânica foi compensada, amplamente, pela mobilização de um movimento de massas. E não anula sua caracterização como neofascista. Ele poderá, se vencer as eleições, construir um partido a partir do controle do Estado. Já está lançada uma campanha de filiações ao PSL que anuncia a intenção de conseguir dezenas de milhões de filiados.

8. Evidentemente, a imensa maioria dos eleitores de Bolsonaro não é fascista. Mas isso não anula que ele seja neofascista. Tampouco quer dizer que um núcleo duro minoritário dos seus eleitores não seja fascista. O que define um movimento, em primeiro lugar, é a sua direção. A audiência alcançada por Bolsonaro já é grande e dinâmica o bastante para que esta corrente política seja, neste momento, a maior no Brasil.

9. Subestimar Bolsonaro, ou a capacidade de sua corrente se articular no terreno internacional seria um grave erro. Existe uma Internacional de extrema direita, ainda em formas embrionárias, sendo construída no mundo, com financiamento robusto de alguns grandes grupos econômicos, que respondem ao projeto de uma fração do capitalismo norte-americano de oferecer resistência à ascensão da China como potência protoimperialista.

10. O financiamento da campanha eleitoral de Bolsonaro permanece, essencialmente, obscura. No entanto, a potência de sua presença nas redes sociais sugere que há grupos empresariais seriamente engajados. Alguns destes grupos já são, amplamente, conhecidos.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

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