Adiamento das eleições provocou tensão na Bolívia


Publicado em: 17 de agosto de 2020

Mundo

Por Joana Benário, Rio de Janeiro (RJ)

Esquerda Online

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Neste último 12 de agosto, completou 9 meses da chegada ao poder de Jeanine Añez, através do golpe cívico-militar apoiado pelo imperialismo, com forte repressão, e com saldo de 50 mortos [i], ocorrido logo após as eleições gerais de 20 de outubro de 2019, após a vitória de Evo Morales e do partido MAS no primeiro turno. O pretexto do golpe foi a suposta fraude eleitoral promovida pelo MAS, denuncia apoiada pelo informe da OEA que assinalou “irregularidades”. Hoje, o país se encontra numa crise múltipla, sanitária, política e econômico-social, à beira do colapso.

A crise sanitária

O impacto da pandemia é total, o sistema de saúde já entrou em colapso. Anuncia-se mais de 96.000 casos confirmados e 3.885 mortes, [ii] mas no mesmo momento, existe um número indefinido de mortes não contabilizadas. A gestão da pandemia é péssima. Em várias cidades do país, a rede pública de hospitais não tem leitos disponíveis de UTI. O governo não tomou as medidas para controlar a pandemia: não comprou os respiradores necessários nem o material de EPI para trabalhadores da saúde e exército, nem remédios em quantidade suficiente, nem testes para controlar o avanço da pandemia na população. Recentemente, em 31 de julho, foi aprovado o Decreto Supremo 4304 que autoriza importação desses produtos.

O governo não conseguiu garantir um sistema de distanciamento social, o sistema de quarentena é parcial e não é respeitado. Em La Paz, a polícia devia controlar as medidas de isolamento social, mas deixou a tarefa, anunciando que metade de seus efetivos poderia estar infectada. Os crematórios são insuficientes diante das mortes que se acumulam nas casas e nas ruas. Os cemitérios colapsaram também. Os hospitais privados, laboratórios e farmácias especulam com a saúde dos que podem pagar, como no caso dos hospitais que exigem uma garantia financeira da família do doente antes de aceitar a sua internação.

A classe trabalhadora está sem cuidados médicos e morre em casa, sem acesso ao sistema de saúde. Ante a falência das medidas do governo, o povo, deixado a sua sorte, está tratando de se cuidar como pode, com ervas e remédios caseiros ao seu alcance ou se automedicando com dióxido de cloro. Além disso, houve vários escândalos de corrupção no governo como o caso dos 177 respiradores comprados com preço triplicado em relação ao valor de mercado, que chegaram sem cabos e inadaptados para tratamentos longos exigidos nesses casos. Por falta de insumos, vários hospitais já fecharam, como o Hospital do Tórax em La Paz, ou anunciam não ter oxigênio, como o hospital de convênio da Caixa petroleira.

A crise política

A decisão, por parte do governo, de uma terceira postergação da data das eleições gerais, previstas inicialmente para 3 de maio, depois para 6 de setembro e agora para 18 de outubro, detonou um conflito político aberto. Neste tema, é importante lembrar o acordão de 25 de novembro de 2019, que permitiu pacificar o país após o golpe, quando o governo de Añez teve que se comprometer a convocar eleições gerais o mais breve possível, como tarefa central de seu governo “de transição”.

A paciência da classe trabalhadora com o calendário eleitoral parece que acabou. Deslegitimada ainda mais desde que anunciou a sua participação na contenda eleitoral e debilitada por acusações de corrupção envolvendo a sua família e amigos, a Presidente está pendurada por um fio, que é a promessa de novas eleições. Apesar de nada ter sido feito para enfrentar a doença e proteger a população da COVID-19, a Presidente utilizou o argumento da pandemia para justificar e adiar sistematicamente esse momento eleitoral que será o fim de seu governo. De certa forma, a pandemia a salvou… até agora.

A Central Operária Boliviana (COB) liderada pelo Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales e o Pacto de Unidade que agrupa movimentos sociais próximos ao MAS, chamaram a Greve Geral com bloqueios das estradas a partir do dia 3 de agosto, para protestar pela postergação das eleições e exigir uma data mais próxima. Os pontos de bloqueio chegaram a 200. Já são 10 dias de paralisação no país. Uma caravana de caminhões tanque, procedente da cidade de Santa Cruz, que transporta oxigênio para abastecer a rede hospitalar de La Paz, não conseguia chegar por causa dos bloqueios, provocando a indignação da classe média. A direita de Santa Cruz e grupos de extrema direita [iii] exigem repressão contra os bloqueadores. Certas organizações sociais como o setor camponês do norte de La Paz, dirigido pelo dirigente indigenista Mallku, exigem a imediata renúncia da Presidente. A polarização cresce. A força dos protestos da COB revelou a acumulação de insatisfação e tensão crescente entre a população que sofre a crise, assim como o apoio ainda massivo ao Movimento ao Socialismo. No fundo, os movimentos sociais associados ao MAS querem garantias para o cumprimento do calendário eleitoral. Os bloqueios foram suspensos pela COB no dia 14, após a promulgação da lei garantindo que as eleições serão realizadas em 18 de outubro, e que foi sancionada pela Presidente.

A crise econômica também bate forte

Vive-se uma marcante crise econômica com forte aumento do desemprego, em todos os setores. Segundo enquete do CELAG, “9 de cada 10 bolivianos viu seus ganhos afetados pela atual crise econômica: 52,1% diminuiu “parcialmente” sua renda e 38,2% deixou de receber “todos” seus proventos pela crise”[iv]. Com o golpe, se reafirmou uma linha neoliberal dura na economia, cortando sistematicamente gastos públicos. A desaceleração econômica que já vinha com o governo anterior, aumentou. Para dar só um exemplo, a crise dos incêndios na Amazônia e na região do Chaco em 2019, é resultado dos acordos assinados pelo governo do MAS com o agronegócio, para permitir ampliar a fronteira agrícola. Hoje o Ministro da agricultura no governo de Añez é um representante direto do agronegócio, reforçando ainda mais o caráter extrativista da economia boliviana. O tema ambiental não faz parte do debate eleitoral de nenhum candidato.

Com a pandemia, houve aumento dos preços dos alimentos de primeira necessidade, e agora começou o desabastecimento dos mercados nas cidades, e inclusive escassez de botijões de gás de cozinha. Nas últimas semanas, a Bolívia recebeu mais de um bilhão de dólares em doações internacionais para enfrentar a pandemia, mas não existe informação sobre o destino desses fundos. O país negociou um empréstimo de US$ 327 milhões com o FMI que exigiu em contrapartida, uma desvalorização monetária pós-pandemia. O Parlamento (controlado pelo MAS que tem 2/3 dos parlamentares) acaba de sancionar uma lei “pro bono contra a fome” de 1000 Bs. para mães, adultos maiores sem salário e pessoas com capacidades especiais, pressionando a Presidente a assiná-lo. Outros fatores de crise social se somam, como o fechamento do ano escolar que provoca a ira de setores camponeses que temem o fim do acesso à educação pública. “A educação está se privatizando” advertiu o Mallku. O descontentamento popular pela crise chega a mais de 60% da população, segundo a pesquisa do CELAG já citada.

Na sua assembleia de 28 de julho, a COB priorizou a reivindicação eleitoral, deixando de fora as exigências dos diferentes setores sociais, se limitando a reivindicações imediatas como, por exemplo, a necessidade de remédios, mas sem exigir medidas de fundo como a nacionalização do sistema privado de saúde. Vários setores de trabalhadores, como os da educação e operários industriais, rechaçaram aquela lista, considerada totalmente insuficiente e criticaram a direção burocrática da COB.

Perspectivas eleitorais

Nestas eleições estão concorrendo oito candidatos, mas só três têm possibilidades de chegar ao segundo turno. Segundo enquete do CELAG de julho de 2020, o candidato do MAS, Luis Arce Catacora tem 41,9% das intensões de votos, seguido de Carlos Mesa (CC), ex-presidente, com 26,8 % e da atual presidente, Jeanine Añez tem 13,3%, percentuais que continuam flutuando. Uma eventual frente única da burguesia contra o MAS só é possível em caso de segundo turno.

O balanço do governo de Añez é muito fraco, cheio de corrupção e negociatas, assim como avançadas negociações com transnacionais americanas, para maior exploração dos recursos naturais como o lítio. Apesar do desgaste, o MAS continua dirigindo a maioria dos movimentos sociais. Assim como em 2005, o MAS e a COB querem resolver os conflitos via eleições e não pela via das lutas. Numa mensagem as suas bases, em 13 de agosto, Evo pediu para que se aceite a data de 18 de outubro para a realização das eleições. A vitória eleitoral do MAS é a mais provável no primeiro turno. O que não se sabe é se haverá segundo turno e quais manobras podem surgir para não permitir o retorno do MAS ao poder. Este prognóstico está relacionado com a avaliação da atual correlação de forças. Em novembro passado, a burguesia deu um golpe político, apoiada pela classe média para tirar Evo da Presidência. Nove meses mais tarde, a classe média perdeu parte de seu nível de vida pela crise econômica e a falta de medidas para enfrentá-la.

Nas mobilizações pós-golpe, a COB não mobilizou, só gritava: “Evo não está só”. A contrarrevolução tinha dirigentes e tomara o poder. Agora, a COB conseguiu mobilizar, os bloqueios chegaram a 200 em nível nacional. Agora a classe média se sente deslocada e inclusive assustada. Os militares se isolaram nos seus quartéis e parece que não vão intervir. A classe trabalhadora lembra que seu nível de vida era melhor com Evo no poder e espera voltar àqueles dias. Além da pandemia, não há diálogo possível. A polarização vai seguir aumentando até as eleições e faíscas incontroláveis podem incendiar o país. Se o MAS não volta ao poder com as eleições, a situação pode se definir nas ruas. O maior resultado dos 14 anos do MAS no poder tem um significado simbólico muito forte, como a entrada massiva na política de Estado da população indígena, historicamente excluída. Independentemente do resultado eleitoral, esse fato está consumado, não tem volta. O final do processo ainda está em aberto.

[i] A cifra oficial de mortes durante o golpe é de 36 pessoas mais desaparecidos. Os movimentos sociais falam de 50 mortes.

[ii] https://www.facebook.com/CabildeoDigital/posts/1303167613347918: no dia 13 /08/2020, se confirmou um total de 96.459 casos, entre os quais 58.855 doentes, 3.885 falecidos, 37.720 casos de pessoas recuperados.

[iii] http://www.laizquierdadiario.com/La-situacion-se-tensa-en-Bolivia Sobre a pressão à direita dos grupos fascistas Unión Juvenil Cruceñista (UJC, de Santa Cruz de la Sierra) e Resistencia Juvenil Kochala (RJK, de Cochabamba). Impulsionados, entre outros políticos da ultradireita, por Luis Camacho de Santa Cruz, um dos principais provocadores do golpe de estado de noviembre de 2019.

[iv] https://www.celag.org/encuesta-bolivia-julio-2020/


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