O silêncio dos militares sobre os trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma obra da Aeronáutica
Operários chegaram a comer formigas e a dormir no chão, em papelão
Publicado em: 14 de dezembro de 2020
Há três semanas, sete trabalhadores foram resgatados em uma casa a quatro quilômetros da Base Aérea de Anapólis (GO), onde trabalhavam na construção de uma estrutura metálica em uma obra contratada pela Aeronáutica. Eles foram encontrados em condições subumanas, que caracterizam o trabalho análogo ao escravo. O alojamento, onde chegaram a dormir 25 pessoas, possuía apenas um chuveiro, sem camas nem colchões para todos – alguns dormiam sobre papelões. Tampouco havia condições de higiene, água potável suficiente ou comida. À equipe formada por auditores fiscais do trabalho, uma procuradora do MPT-GO e policiais rodoviários federais, os trabalhadores contaram que, sem dinheiro, chegaram a fritar formigas tanajuras e a pedir comida aos vizinhos para matar a fome.
A situação de trabalho análogo ao escravo foi confirmada também pelas jornadas e pagamento. Os empregadores passaram a condicionar a entrega de quentinhas ao cumprimento de jornadas aos sábados, segundo os relatos. Em razão dessa condição, eram frequentes as jornadas de segunda a segunda, sem folga semanal e com jornadas extras. O pagamento era repassado a parentes nos estados, em Sergipe, Pernambuco e Paraná. E, segundo o auditor-fiscal Thiago Barbosa, que coordenou a operação, “os salários não eram pagos da forma como havia sido acordado”.
O caso, que ocorreu no dia 23 de novembro, foi amplamente noticiado, e não chega a ser uma novidade. O Brasil reconhece há décadas a existência de trabalho escravo e, desde 1995, quando foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, 55.004 pessoas foram resgatadas em situações semelhantes e novos resgates foram feitos de novembro para cá. O que pode causar alguma estranheza nesse caso é o fato de ter ocorrido em obra contratada pela Aeronáutica, e o seu silêncio.
O contrato para construir uma estrutura metálica para a manutenção do cargueiro KC-390 foi assinado por R$ 15.372.992,16 em 21 de janeiro, após concorrência vencida pela empresa Shox do Brasil Construções LTDA. Sediada em Brasília, acumulou obras para o Governo do Distrito Federal (GDF) e possui cerca de R$ 25 milhões em contratos vigentes, sendo os maiores para a Aeronáutica e o Comando do Exército. Uma carteira importante, após diversos serviços de pequeno e médio porte.
Não haveria, no entanto, como prever a forma pela qual os donos da empresa tratariam a mão de obra. Em setembro, a Shox chegou a atestar, durante um processo de disputa de um contrato com a Secretaria de Educação do GDF, que não utilizava mão de obra escrava, como mostra o documento abaixo, o que deve ter sido atestado também à Aeronáutica:
Militares responsáveis pela obra saberiam da situação do alojamento
Mas a Aeronáutica possuia meios para, no decorrer da obra, verificar as condições de trabalho dos operários. O projeto básico da obra já previa a fiscalização por parte da contratante das relações de trabalho, ainda que por amostragem, e pede respeito à legislação sobre a jornada de trabalho de cada categoria. Também exige que a contratada assegure aos seus trabalhadores “ambiente de trabalho, inclusive equipamentos e instalações, em condições adequadas ao cumprimento das normas de saúde, segurança e bem-estar no trabalho”, o que não foi garantido sequer no local da obra, embargado por riscos de queda e choques elétricos.
Mas a omissão da Aeronática pode ir além. Segundo reportagem do Sindicato Nacional dos Auditores de Inspeção do Trabalho (Sinait), com informações da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), a equipe do Grupo Móvel se reuniu com o comandante da Aeronáutica responsável pela Base Aérea em Anápolis, para relatar a situação encontrada no alojamento. “Foram informados que os responsáveis pelo contrato, que estavam a serviço da Aeronáutica, já tinham conhecimento da situação precária dos trabalhadores e das condições do alojamento.” Os militares, que tinham a função de acompanhar a execução do contrato, saberiam da situação e nada fizeram.
O silêncio da Aeronáutica após a revelação do caso, negando-se a se comentar o assunto com a Folha de S. Paulo, é revelador. Sequer um pronunciamento condenando o tratamento dispensado aos operários. Parece inimaginável, por exemplo, a ruptura de outros contratos dos militares com a empresa, como o que prevê a reforma do piso do quartel general do Exército em Brasília, ao custo de mais de R$ 4 milhões. O silêncio é uma amostra do valor dispensado aos direitos trabalhistas pelo governo e pelos militares.
Bolsonaro e o trabalho escravo
Não por acaso, o programa de governo de Jair Bolsonaro prometia rever as políticas de combate ao trabalho escravo, em especial a “lista suja” de empresas e pessoas condenadas pela prática, que chegou a deixar de ser divulgada. Nestes dois anos, seu governo atuou como representante do agronegócio, do desmatamento e da pecuária, responsáveis por 90% dos casos de pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão.
Fonte: Trabalho Escravo no Brasil: perfil dos vulneráveis, legislação existente e identificação de casos, em 2 de dezembro de 2020, por Natália Suzuki, do Repórter Brasil. Disponível aqui.
Por outro lado, seu governo avançou na destruição dos direitos trabalhistas, especialmente com a reforma, e no ataque aos mecanismos de fiscalização, com o fim do Ministério do Trabalho e a redução dos grupos móveis de fiscalização do trabalho escravo, política criada há 25 anos, e que hoje conta com apenas quatro equipes para todo o país, quantidade insuficiente para atender as denúncias em setores mais comuns (fazendas, carvoarias, construção) e menos ainda para avançar no combate a casos de trabalho escravo doméstico e de mulheres, hoje invisibilizados.
A fiscalização sofre um desmonte, com a redução de servidores, fruto da ausência de concursos públicos há vários anos, e pode piorar com uma reforma administrativa. A depender destas políticas, teremos cada vez mais retrocessos no combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil e cada vez mais cenas que nos envergonham, como as de Anapólis. Justamente em meio a pandemia e ao aumento da crise social, que deixam milhões pessoas desempregadas e vulneráveis a propostas de trabalho como a da obra da Aeronáutica.
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