Pular para o conteúdo
BRASIL

Por que aumentar repasse do ICMS para universidades estaduais paulistas

Por: Guilherme Cortez, de Franca, SP

As universidades estaduais paulistas – USP, UNESP e Unicamp – são custeadas majoritariamente através do repasse da quota-parte do estado sobre o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS-QPE), que é de 75% da arrecadação (os outros 25% são destinados aos municípios). Desde 1995, o percentual desse repasse, definido na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) anual, é de 9,57%, assim dividido: aproximadamente 5,03% para a USP, 2,34% para a UNESP e 2,2% para a Unicamp.

O ICMS é cobrado sobre prestações de serviço, circulação e fornecimento de mercadorias, importações, entre outros. É um imposto regressivo, porque não considera as variações de renda dos contribuintes. O valor tributado é igual para todos os consumidores, ou seja, um trabalhador médio paga a mesma porcentagem de ICMS que um juiz, um dono de indústria ou uma grande empresa pela mesma operação. Por óbvio, isso gera uma inversão tributária: quem recebe menos acaba tendo boa parte de sua renda consumida pelo tributo em consumo de produtos de necessidade básica; quem tem muito, nem tanto. A cobrança do ICMS, portanto, pesa mais no bolso de quem tem menos renda.

Um problema é que o governo estadual realiza uma série de deduções da base de cálculo da quota-parte do ICMS repassada às universidades, como desconto de multas, juros e dívida ativa, do programa “Nota Fiscal Paulista” e recursos para a área de habitação. Essas manobras contábeis reduzem valores expressivos dos recursos das estaduais paulistas. Calcula-se que esses descontos representaram um prejuízo de cerca de R$ 1 bilhão ao orçamento das universidades entre os anos de 2014 e 2016. Esses mesmos descontos não são feitos da porcentagem do ICMS que vai para os municípios.

Boa parte do orçamento das estaduais paulistas é ainda comprometido com o pagamento da diferença entre os benefícios previdenciários dos servidores e o valor das contribuições previdenciárias recebidas – a chamada insuficiência financeira. De acordo com a Lei Complementar n. 1.010 de 2007, que cria a São Paulo Previdência (SPPREV) – entidade que gere os regimes previdenciários dos servidores públicos estaduais –, “o Estado de São Paulo é responsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras” (artigo 27). O governo estadual não cumpre a lei e deixa essas despesas para as universidades. Em 2016, as três estaduais gastaram aproximadamente 19,5% do repasse do ICMS-QPE que recebem com a insuficiência financeira. As projeções apontam que, em 2026, esse percentual pode chegar a 30%.

As estaduais paulistas possuem autonomia para gerir suas finanças, conquista da mobilização dos professores, servidores e estudantes das universidades que culminou na edição do Decreto n. 29.598 em 1989 pelo então governador Orestes Quércia, que assegura a autonomia universitária. O governo do estado de São Paulo concede o repasse orçamentário e as administrações das universidades têm liberdade para administrar esses recursos de acordo com seu próprio planejamento. A autonomia universitária é praticamente um marco civilizatório na trajetória do ensino superior público brasileiro. Representou uma ruptura com a sujeição aos bel-prazeres dos governantes e a possibilidade de desenvolvimento das áreas do conhecimento de acordo com os parâmetros da própria comunidade científica.

Não à toa, todos os dados demonstram o aumento das produções acadêmicas nas universidades após a conquista da autonomia. Embora prevista na Constituição Federal de 1988 – “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (artigo 207) –, a autonomia de gestão orçamentária é uma realidade somente na USP, UNESP e Unicamp.

À época do decreto da autonomia universitária, as três universidades estaduais paulistas recebiam um repasse de 11,6% do ICMS-QPE. O decreto reduziu esse valor para 8,4% da arrecadação do imposto. Em 1992, com muita luta foi conquistado o aumento desse percentual para 9% e em 1995, para o valor atual de 9,57%. Desde então não houve aumento da cota do ICMS-QPE destinada às universidades estaduais paulistas: o valor permanece estagnado em 9,57%.

Ao longo desses 23 anos, o panorama das três universidades estaduais paulistas se alterou significativamente. Especialmente a partir dos anos 2000, USP, UNESP e Unicamp expandiram sua extensão, número de alunos, cursos, períodos de aula e campi. A UNESP expandiu seus campi para oito novas cidades – Dracena, Registro, Tupã, Ourinhos, Rosana, Sorocaba, Itapeva e São João da Boa Vista. A USP inaugurou a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) – a “USP Leste” –, um novo campus em Santos e anexou a Faculdade de Engenharia Química de Lorena, que se tornou Escola de Engenharia de Lorena (EEL). A Unicamp abriu um novo campus em Limeira.

O gráfico abaixo mostra as variações dos indicadores das três universidades, de 1995 a 2016:

A quantidade de cursos de graduação nas três estaduais aumentou em 102% e a de alunos 93% nesse período. Alunos de pós-graduação aumentaram em 101%. As três universidades implementaram sistema de cotas – tendo chegado a 50% na UNESP neste ano – e a demanda por políticas de permanência e assistência estudantil aumentou exponencialmente. Apesar do aumento de campi, cursos e períodos de aula, o número de servidores técnico-administrativos decaiu nas três universidades e o aumento da quantidade de professores foi ínfima – tendo inclusive diminuído na Unicamp, como mostra o gráfico. Maior abrangência, mais trabalho e menos funcionários significa sobrecarga dos servidores ativos.

Como visto, o financiamento das universidades estaduais paulistas não acompanhou esse processo de expansão. O percentual do repasse do ICMS-QPE permaneceu estagnado, enquanto as dimensões e consequentemente as despesas das estaduais (contratação de funcionários, salários, construção de prédios, vias de acesso e laboratórios, manutenção, permanência estudantil etc.) se elevaram consideravelmente. As promessas dos governos de PSDB de aumento dos recursos para sustentar a expansão das universidades nunca se realizaram.

A arrecadação do ICMS é ainda reduzida pelas generosas isenções fiscais que o governo estadual concede à grandes empresas. Em 2017 e 2018, o governo Alckmin concedeu nada menos do que R$ 29 bilhões de isenções fiscais a empresas – aproximadamente 11% da arrecadação do ICMS paulista em 2017 e 11,2% em 2018. Esses valores não insignificantes representam algo em torno de R$ 2,1 bilhões a menos para as universidades estaduais paulistas. Só o setor de produção de agrotóxicos, em 2015, poupou R$ 1,2 bilhão com isenções.

As indústrias têxtil e atacadista não pagam nada de ICMS no estado de São Paulo. A circulação de frutos do mar, vasilhames e embalagens, agropecuária, obras de arte e alguns tipos de leite, 0% de ICMS. Têm descontos as máquinas agrícolas, armas e munições, aeronaves, materiais militares e a circulação de biogás e biometano. Até mesmo empresas que possuem dívidas com o estado – como os frigoríficos Sadia (que deve R$ 1,5 bilhão), Distribuidora de Carnes de São Paulo (que deve R$ 1,2 bilhão) e Grandes Lagos (que deve R$ 620 milhões) – também são presenteadas com as renúncias fiscais. E a Almstom, do caso do cartel do metrô de São Paulo, teve uma dívida de R$ 116 milhões fraternalmente perdoada.

Aqui e acolá surgem propostas ‘bem-intencionadas’ de suprir a insuficiência de financiamento das universidades estaduais paulistas através de saídas alternativas ao financiamento público: fundos de doações de ex-alunos e corporações, cobrança de mensalidades, parcerias público-privadas, desvinculação administrativa etc. Essas propostas, além de oferecerem menos garantias ao orçamento das universidades – pois sujeita às idas e vindas econômicas da iniciativa privada e seus apoiadores, ao invés de recursos públicos previstos em lei –, carregam um sentido de privatização do ensino superior público ao transferir do Estado a responsabilidade por seu custeio e desvirtuam seu caráter público.

Sem falar na sujeitação da produção de conteúdo científico aos interesses econômicos particulares – quem paga a banda escolhe a música e os grupos que financiarem as universidades poderiam escolher em quais cursos, pesquisas e áreas investir. O que vemos hoje é que pouco a pouco as atividades das universidades públicas – restaurantes universitários, bibliotecas, intercâmbios, pesquisas, bolsas – vão sendo terceirizadas para administradores privados ou custeadas por eles.

A insuficiência dos recursos recebidos pelas universidades coincide com as iniciativas de “sustentabilidade financeira” das reitorias, que nada mais são do que planos de austeridade e corte de gastos. Como falta dinheiro, a proposta deles é diminuir as despesas e isso se faz congelando salários dos servidores, interrompendo as contratações de novos funcionários, cortando bolsas de estudo e recursos da permanência estudantil, promovendo programas de demissão voluntária etc. São programas que aprofundam a precarização das condições de trabalho e estudo nas universidades. A dita “sustentabilidade financeira” das estaduais paulistas não depende do acerto de contas às custas dos trabalhadores e estudantes, mas do repasse adequado dos recursos públicos. Ao invés de apertar os cintos e prejudicar a comunidade acadêmica e o próprio desenvolvimento das atividades das universidades, as reitorias deveriam enfrentar as administrações estaduais e exigir o aumento do repasse do ICMS-QPE.

A crise das universidades estaduais paulistas é acima de tudo uma crise de financiamento. Ao contrário do discurso da grande mídia, da iniciativa privada, do Banco Mundial e dos políticos neoliberais, os grandes problemas da USP, UNESP e Unicamp hoje não se devem a ineficiência de suas comunidades acadêmicas. Pelo contrário: em meio a insuficiência de recursos, perdas salariais, falta de contratações, permanência estudantil e incentivo acadêmico, os estudantes, professores e servidores das estaduais fazem o impossível para manter a qualidade da educação pública e produzir conhecimento para a sociedade. Também não se trata de uma crise financeira, causada apenas pela baixa arrecadação do ICMS em meio a recessão, como justifica o governo.

A precarização contínua das universidades é causada pela insuficiência dos recursos que lhe são destinados, que acarreta na redução de pesquisas, projetos e até mesmo no fechamento de cursos, falta de verbas para contratação de profissionais e permanência estudantil, terceirizações etc. O dinheiro que falta às universidades estaduais paulistas (i) é sequestrado pelo governo através de manobras contábeis, (ii) deixa de ser cobrado de grandes empresas e (iii) necessita ser reajustado nas leis orçamentárias.

Há uma questão de fundo que é a desproporcionalidade da carga tributária brasileira. No Brasil, os impostos progressivos, que consideram as variações de renda dos contribuintes, são exceção e não regra. Isso faz com que os trabalhadores mais pobres e a classe média gastem proporcionalmente mais com impostos do que os ricos. Muitas vezes, inclusive, os produtos populares e de necessidade básica são mais tributados do que itens de luxo e atividades econômicas. Essa é uma realidade que precisa ser mudada. Quem tem mais condições precisa arcar mais com tributos, que devem ser revertidos em investimentos sociais. As grandes fortunas precisam ser taxadas, os impostos sobre as grandes propriedades urbanas e rurais e os veículos de luxo precisam ser proporcionas a seus valores.

Isso não muda o fato de que a responsabilidade pelos serviços públicos deve ser do Estado. Qualquer alternativa que substitua o financiamento público por saídas particulares abre caminho para o projeto estratégico de privatização das universidades públicas. Não é possível conciliar os interesses da iniciativa privada com o caráter público das universidades e por isso seu custeio precisa vir do dinheiro público.

O desmonte das estaduais paulistas só pode ser revertido com financiamento adequado. A porcentagem do repasse do ICMS-QPE para as universidades deve ser reajustado de acordo a expansão que tiveram nas últimas décadas para, no mínimo, o valor anterior ao decreto da autonomia universitária – isto é, 11,6%. A farra das isenções fiscais para as empresas precisa acabar para que elas paguem os tributos que devem e sejam investidos em serviços públicos. Igualmente as manobras contábeis, que reduzem os repasses para as universidades, e a não compensação da insuficiência financeira previdenciária pelo governo estadual.

É disso que se trata a luta pelo futuro das universidades estaduais paulistas. Enfrentar interesses dos que se eximem do pagamento do ICMS, os governos neoliberais, os projetos de austeridade e “sustentabilidade financeira” das reitorias, as iniciativas de privatização. É o que pode garantir a continuidade das universidades públicas, gratuitas, de qualidade, com recursos para as atividades de ensino, pesquisa e extensão, contratação e valorização de servidores e políticas adequadas de permanência estudantil.

Foto: USP, Unesp e Unicamp – Cruesp