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Há pouco mais de 90 dias do 18 de abril: Por uma saída de classe e independente para a crise nicaraguense

Por: Lucas Fogaça, de Porto Alegre, RS

Começou no dia 18 de abril deste ano uma mobilização popular na Nicarágua rejeitando as reformas no INSS. À medida que as manifestações sofreram duríssima repressão do governo de Daniel Ortega, rapidamente evoluíram para uma revolta popular pedindo a queda do governo. Passados três meses, são pelo menos 350 mortos e 2 mil feridos, em sua maioria da oposição ao governo. O movimento chega agora num momento crítico.

O início dos protestos
O presidente Daniel Ortega e Rosário Murillo, cumprindo exigências do FMI, aumentou, por decreto presidencial, a contribuição de trabalhadores e empresários ao INSS (Instituto Nicaraguense de Previdência Social, semelhante ao INSS brasileiro) e reduziu as pensões em 5%. Marchas populares de protesto contra essa medida tomaram as ruas da Nicarágua. O governo e seus partidários reprimiram violentamente as manifestações, o que fez com que os protestos se tornassem imensos. Essas são as causas mais imediatas. Mas há inúmeros fatos que aumentaram o desgaste do governo e começaram a criar um ambiente para que as massas populares saíssem às ruas.

Entre eles, a construção de um canal interoceânico por uma empresa chinesa a um custo econômico e social muito elevado (US$ 50 bilhões), gerou forte insatisfação porque envolve a destruição de muitas comunidades do campo. Além disso, a atividade extrativista, particularmente de mineração, quase duplicou a área concedida nesse período – de 12% para 22% – gerando fortes conflitos nas áreas rurais e com os movimentos ambientais. Ambos protestos foram perseguidos e reprimidos. Ao mesmo tempo, denúncias de uma corrupção generalizada de altos funcionários públicos, políticos e governantes vem à tona, enquanto o povo vem passando por dificuldades econômicas cada vez maiores.

Quem estava à frente dos protestos: a auto-organização popular
A mobilização começou com os aposentados e pensionistas. Mas foram os estudantes que a tornaram massiva. Após a morte de ativistas de oposição ao governo, logo se transformou em manifestações com amplo apoio popular e participação de distintos setores.
Os trabalhadores participam da rebelião enquanto populares desde os bairros, os “tranques” (bloqueios de vias) e as manifestações. Mas a classe trabalhadora não entrou em cena de forma organizada através de seus organismos de luta como os sindicatos. Estes estão, em sua esmagadora maioria, subordinados ao governo e os demais movimentos sociais muito influenciados pela política da FSLN de sustentação de Ortega-Murillo.

Isso fez com que as justas mobilizações encontrassem pouco apoio entre a maioria dos partidos, movimentos e organizações vinculadas à esquerda. O resultado é que estas mobilizações foram se desenvolvendo sem uma direção homogênea dos setores populares e dos estudantes em luta, ainda que a oposição patronal através da COSEP (Conselho Superior da Empresa Privada) atue na Aliança Cívica pela Democracia e Justiça buscando mobilizar e cooptar os setores mais à esquerda e independentes.

Por outro lado, mesmo de longe, pode-se constatar que surgiu um setor no próprio seio do movimento sandinista – cuja dimensão e importância não é possível medir – crítico à Ortega-Murillo. Esse é o caso de Jaime Wheelock, um dos comandantes da Frente Sandinista na derrubada de Somoza em 1979, que enviou uma carta a Daniel Ortega, em 22 de abril, criticando a reforma do INSS e afirmando que “3. Por causa disso, uma importante maioria da população, à frente da que estão os estudantes universitários e até filhos de altos dirigentes do exército, da polícia e da FSLN, mobilizaram-se para expressar seu legítimo protesto. 4. A reação das autoridades foi desproporcional, com o emprego de armas de fogo pela Polícia e grupos de choque que causaram dezenas de mortos e centenas de feridos entre nossa população”.

Entre as regiões, Masaya é um dos pontos mais fortes de mobilização contra o Governo. Com robusta origem indígena, a cidade localizada na região metropolitana de Manágua, capital da Nicarágua, é onde se encontra o bairro Moninbó – histórica região de luta contra a Ditadura Somoza. Que foi, ou é a depender das fontes, o último reduto da autodefesa contra as forças de repressão do governo.

Nos últimos dias Masaya sofreu uma ofensiva imensa com mais de 1.000 homens armados com metralhadoras. Em entrevista para a AFP, Baltodano, ex-membro da Direção Nacional da FSLN afirma esclarece o significado histórico dessa ação ao afirmar que, em fevereiro de 1978, os monimbocenhos já estavam rebelados contra a ditadura de Anastásio Somoza, inclusive sem a liderança da então guerrilha sandinista: “Eles levantaram suas próprias barricadas para defender o povo das agressões dos guardas”.

A violenta repressão do governo, a resposta dos “tranques” e a autodefesa
O governo respondeu aos primeiros protestos com uma brutal repressão chegando a matar alguns manifestantes. Isso fez surgir uma nova onda de protestos ainda mais massiva, agora exigindo a queda do governo. Que respondeu com mais mortes, prisões e perseguições sobre líderes estudantis, camponeses e ativistas dos movimentos sociais. Essa espiral de protestos e extrema repressão seguiu até o fatídico Massacre do Dia das Mães, em 30 de maio, quando uma das maiores manifestações na história da Nicarágua foi atacada a tiros pela polícia e pelos grupos de choque de Daniel Ortega, fazendo o conflito adquirir um novo patamar.

Após esse massacre, as grandes marchas de protesto foram sendo substituídas por outro método de luta: tomadas de rodovias (ou “tranques”) e as ocupações de distritos e centros de estudo com medidas de autodefesa rudimentar. Jovens e moradores dos bairros populares defendem-se com armas improvisadas (morteiros, estilingues, chimbas) e, em alguns casos, com armas de fogo leves, em uma luta desigual contra um adversário muito melhor equipado e mais experiente no campo militar.

Para além da repressão da Polícia Nacional Nicaraguense, grupos paramilitares em pick ups Toyota passaram a agir no conflito invadindo ocupações de prédios públicos por estudantes e comunidade rurais sequestrando e assassinando ativistas.

O governo acusa a oposição de organizar estes grupos paramilitares com o objetivo de culpar o governo como responsáveis de suas ações. Se assim fosse, não se explica por que a Polícia Nacional – muitas vezes vista e gravada por câmeras de celular próxima dos grupos paramilitares – não deteve estes grupos. Ou, por que, mesmo três meses depois de iniciado os protestos, nem ao menos um indivíduo sequer destes grupos paramilitares foi preso e exibido pelos veículos de comunicações, o que só reforçaria a própria tese do governo. A verdade é que a acusação do governo parece não ter sentido.

Imagem de redes sociais

Mesmo líderes muito próximos do governo admitem que o governo organiza ou, no mínimo, é omisso quanto aos grupos paramilitares. Um dos mais próximos colaboradores de Daniel Ortega, o deputado Jacinto Suarez, admitiu em uma entrevista para o portal El Faro de El Salvador, que é possível que as “caminhonetes da morte” que transportam os assassinos dos manifestantes saiam das oficinas governamentais encapuzados com proteção policial e sob total impunidade. O mesmo admitiu Bayardo Arce, assessor de Ortega para assuntos econômicos, afirmando para o canal Univision e transcrita pelo portal Confidencia que o detonador dos protestos foi um ataque a uma manifestação pacífica. Primeiro por apoiadores de Ortega e, depois, pela própria polícia.

O papel da burguesia e das classes dominantes nestes três meses de rebelião
Depois de vários anos de boas relações com o governo, uma parte da comunidade empresarial nicaraguense afiliada ao Cosep pôs em questão seguir a relação que manteve por uma década com Ortega-Murillo, por medo de perder o apoio dos EUA depois que Donald Trump aprovou, em maio de 2017, a Nica-Act. Trata-se de uma lei de “Investimento Condicionado” que prevê o uso da influência dos EUA sobre instituições financeiras internacionais para impedir empréstimos ao país, salvo se o governo nicaraguense cumprisse uma série de exigências.

Num primeiro momento, o presidente da Cosep, José Adán Aguerri, manifestou ao La Prensa que “qualquer disposição que prejudique o país não deve ser aceita”. Alguns meses depois, a patronal ensaiou exigências ao governo, assinalando uma possível movimentação para fora do pacto nacional de classes promovido por Ortega-Murillo. O mesmo tom utilizado pelo presidente da Cosep em artigo de opinião publicado no La Prensa em janeiro deste ano.

A mesma Cosep e outras entidades patronais, se manifestaram contundentemente sobre o INSS ao La Prensa: nem um centavo a mais para salvar o sistema de pensões. Exceto a parte que exigia mais investimentos da patronal no INSS, apoiaram integralmente o projeto que atacava as aposentadorias e pensões dos trabalhadores, estopim do 18 de abril.

Quando a população aos milhares decidiu protestar contra o governo, as entidades patronais se relocalizaram e foram pouco a pouco se deslocando para a oposição. Com o objetivo de proteger seus interesses, impedir uma mobilização independente e desviar a luta, setores importantes da patronal 2 dias depois da irrupção dos protestos passaram a fazer uma série de exigências ao governo através de uma conferência de imprensa. Com o desenvolvimento dos protestos e da repressão, com receio de que as mobilizações saíssem completamente dos trilhos, com um prejuízo nos negócios na ordem de centenas de milhões, a ala peso pesado da burguesia se moveu para a oposição ao governo. Em entrevista ao El País de 4 de junho, o líder da Cosep, preservando um tom ainda moderado mas sinalizando o fim de muitos anos de parceria com Ortega-Murillo, faz exigências de eleições antecipadas.

Organizados em torno da Aliança Cívica pela Justiça e a Democracia (ACJD), várias entidades representantes da burguesia e das classes dominantes, arrastando consigo um pedaço pequeno dos movimentos sociais, começam a intervir e tentar dirigir o processo das ruas. Ao mesmo tempo, sobem o tom contra Ortega. A ACJD é uma frente de alguns poucos movimentos sociais com entidades patronais que ganhou espaço na nova onda de protestos de julho. Fazem parte desta frente a Coalizão Universitária, a Câmara de Comércio Americana Nicaraguense (AmCham), o Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep), a Fundação Nicaraguense para o Desenvolvimento Sócio Econômico (Funides), o Conselho Nacional em defesa da Nossa Terra, Lagos y Soberania – Movimento Camponês, a Federação de Associações de Criadores de Gado da Nicaragua (Faganic), União dos Produtores Agrocupecuários de Nicaragua (Upanic), entre outros.

Agora, mais recentemente, em julho, as elites nicaraguenses se posicionaram frontalmente contra o governo. A Aliança Cívica pela Justiça e a Democracia e o COSEP realizaram na segunda semana de julho, uma jornada de três dias de protestos.

Começaram por realizar a enorme marcha “Juntos Somos um Vulcão”, também convocada por outros movimentos, como é o caso da Articulação de Movimentos Sociais, que reúne a luta pela causa das mulheres, jovens, LGBTIQ, povos originários e afrodescendentes. A ela se seguiu uma paralisação patronal no dia 13 de julho, que também mobilizou setores da classe trabalhadora do comércio e do transporte público. E, por fim, impulsionaram uma caravana em Manágua no dia 14 de julho.

A Igreja Católica, que tem uma força política muito importante na Nicarágua, esteve por anos pactuada com o Governo e tem fortes relações com a FSLN. Inclusive, em 2006, o governo de Daniel Ortega sancionou uma lei que proíbe o aborto em qualquer circunstância, como um claro gesto à Igreja Católica e aos setores conservadores. Frente a rebelião, a cúpula da Igreja Católica, primeiro agiu como avalista da Mesa de Diálogo Nacional, uma tentativa do governo e das elites de recuperar o apoio entre a população que, indignada, seguia protestando. Entretanto, agora deslocam para oposição como se pode ver em recente declaração do alto comando da Igreja. Passou a culpar o governo pela violência e por estar por trás da atuação dos grupos paramilitares, e está organizando atividades chamando “todos os nicaraguenses, em especial os policiais, militares e demais servidores públicos para não seguir apoiando direta ou indiretamente o governo ou o partido do governo”.

O papel dos EUA diante da rebelião e da repressão
Desde os primeiros momentos das mobilizações populares, Daniel Ortega e a FSLN, em coro com uma parte da esquerda latino-americana, dizem que as manifestações são orquestradas pela CIA com o objetivo de derrubar o governo e favorecer o imperialismo.
Não há dúvidas que o imperialismo norte-americano atua sistematicamente não só na Nicarágua, mas em todos os países da América Latina, para defender os interesses capitalistas na região. Para isso se utiliza de embargos econômicos como no caso de Cuba, do apoio ativo à golpes como os ocorridos no Paraguai e no Brasil; ou, ainda, através da ameaça de intervenção direta como no caso da Venezuela. Embora nas últimas semanas a política imperialista norte-americana tenha se alterado é equivocado dizer que o imperialismo atuou desde o início para construir o movimento opositor.

Há um fato de primeira grandeza que enfrenta a tese de Ortega e seus aliados sobre as manifestações serem produzidas por agentes da CIA. A Assembleia Legislativa da Nicarágua, dominada pela Frente Sandinista, aprovou um decreto com caráter de urgência enviado pelo presidente no último dia 20 de junho. O decreto autoriza o ingresso no território nicaraguense de tropas aeronaves, transportes etc dos EUA, Honduras, México, Guatemala, República Dominicana, Cuba, Venezuela e Rússia durante 6 meses, ou seja, de 1º de julho à 31 de dezembro de 2018. Se, por um lado, o decreto autoriza a entrada de tropas da Rússia, Cuba e Venezuela consideradas aliadas, não deixa de ser ilógico que um governo que alegue que está em curso um golpe de Estado de inspiração norte-americana envie ao Congresso decreto que autoriza a presença de tropas norte-americanas em território nacional.

Outro fato é o comunicado da embaixada dos EUA na Nicarágua de 27 de junho revelando que durante cerca de dois meses a embaixada emprestou uma frota de carros pick up à Policia Nacional. O apoio logístico teria sido suspenso supostamente depois de “ter sido usado com o fim de reprimir manifestações”. É forçado acreditar que durante dois meses a inteligência norte-americana não sabia para o que estavam sendo usadas as caminhonetes. É mais sensato perceber que após auxiliar logisticamente por dois meses a repressão às manifestações populares, diante do desgaste do governo, os EUA mudaram de posição.

Há elementos importantes que mostram uma readequação política do governo norte-americano. Além da oposição frontal que fazem as elites nicaraguenses, como já demonstrado, o secretário de Estado Adjunto para a América Latina, Paco Palmieri, declarou em uma mensagem no Twitter o seguinte: “Pedimos energicamente ao Presidente Ortega que não ataque Masaya, a violência continuada e o derrame de sangue promovido pelo governo da Nicarágua devem cessar imediatamente”. Agora, mais recentemente a OEA aprovou uma declaração de 18 de junho último condenando a repressão e chamando um acordo (diálogo) em torno à antecipação das eleições antecipadas.

Por uma saída independente e de classe para a crise nicaraguense
A situação na Nicarágua é crítica. Por um lado, as manifestações contra o governo parecem estar diminuindo, sobretudo em razão da extrema repressão e da falta de uma coordenação nacional e uma direção política independente da burguesia e do governo. Por outro lado, o governo Ortega-Murillo também se complica. Além da grande rejeição popular, uma parte importante da burguesia se desloca para a oposição. Em meio à justa manifestação dos estudantes e do povo nicaraguense, forças políticas com inclinação de direita têm adquirido influência. A legítima consciência anti-Ortega que governa o país em parceria com interesses capitalistas e utiliza métodos de guerra civil contra a oposição, está sendo assediada pela oposição patronal ao governo. Por outro lado, a própria FSLN parece também ter sofrido algum grau de dissidência interna com o apoio de sandinistas históricos aos protestos. Já no plano internacional o governo começou a sofrer uma maior oposição do imperialismo como prova a declaração da OEA.

Neste dia 19 de julho fez 39 anos que o povo nicaraguense organizado e orientado sobretudo através da Frente Sandinista de Libertação Nacional derrubou a ditadura de Anastasio Somoza. Ainda que a FSLN nunca tenha defendido uma saída socialista para a Nicarágua – depois da tomada do poder em 79, defendeu uma economia mista – quase 4 décadas depois, podemos dizer que não sobrou nada – ou quase nada – do espírito rebelde desta organização que esteve à frente da derrubada de Somoza. É lamentável que organizações de esquerda apoiem a brutal repressão a uma mobilização cujo estopim foi se opor a uma reforma da previdência que onerava a contribuição dos trabalhadores ao INSS.

A esquerda socialista deve se solidarizar com a justa revolta do povo nicaraguense e exigir a imediata suspensão da repressão, a punição dos assassinos e libertação dos presos. Ao mesmo tempo defender e apoiar a construção de uma saída independente da classe trabalhadora, dos camponeses e dos estudantes para o país, num momento em que a oposição patronal e o imperialismo buscam disputar a direção da revolta popular que se encontra encurralada pelo governo. Isso é o mínimo que a esquerda socialista deve fazer se ainda pretende honrar a memória de Augusto Sandino, o “General de homens livres”.

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