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TEORIA

A revolução que tanto amamos

Chico Alencar

A história costuma nos chegar como processo acontecido, passado, distante. Ainda adolescente, aprendi nos bancos escolares que a “mestra da vida” era “o estudo do passado, para melhor compreender o presente e projetar o futuro”. Hoje sabemos que a história, além de tudo isso – Marx (1818-1883) chegou a classificá-la como a “única ciência”! – não é um campo de certezas, e sim um espaço do conhecimento propício a releituras. Novos documentos sempre podem gerar novas compreensões.

Prefácio do livro “Meio Século de 1968 – Barricadas, história e política”, organizado por Cid Benjamin e Felipe Demier.

Meio Século de 1968 – Barricadas, história e política”

Há também um jeito singular de se lidar com a história e seus momentos mais agudos: quando dela participamos. É a história próxima. É disso que o Meio século de 1968: barricadas, história e política trata: da história vivida pelos sexagenários e septuagenários da hora presente, entre os quais me incluo.

Para a história imediata, meio século foi logo ali. Essa sábia senhora bate à nossa porta não como visitante incomum, mas como vizinha, do cotidiano. Os mais jovens certamente receberão a visita de 1968 com curiosidade e certa cerimônia. Nós outros, contemporâneos daquele “ano rebelde”, com emoção e… não diria saudade, mas orgulho.

Mas nestas páginas você não encontrará nostalgia. Nem apreciação fria. Rigor de análise não falta, sem dúvida. Mas amor na memória daqueles brados retumbantes, carregados da aspiração do vir a ser, também compõe a coletânea de ensaios.

Aqui, 12 especialistas, atento(a)s ao desenrolar das contradições de classe e à reação dos aparatos de Estado, analisam a eclosão de movimentos sociais e políticos que marcaram o ano de 1968 (que, como qualquer outro ano na perspectiva histórica, nunca se limita à cronologia do 1º de janeiro inaugural nem do 31 de dezembro terminal). Além do Maio francês, muito do que aconteceu naquele período está neste livro: os movimentos de independência na África, a Revolução Cultural na China, as lutas antirracistas e contra a guerra do Vietnã nos Estados Unidos, os desafios à burocracia autoritária soviética na Tchecoslováquia, a vaga estudantil-juvenil em várias partes do mundo, especialmente no Brasil – sem esquecer o massacre terrível da Praça Tlatelolco, na cidade do México.

Parte da agitação da juventude de 1968 também mexeu com hábitos cotidianos: foi tempo de quebra das formalidades burguesas, de ruptura com a etiqueta aristocrática, da liberação afetiva e sexual. A moral vigente à época foi fustigada com uma revolução nos costumes. O mapa-múndi daquele período tinha um porto sonhado: a utopia de uma nova sociedade, “na qual o último dos capitalistas seria enforcado com as tripas do último stalinista”. Um aviso estaria em todas as praças públicas: “É proibido proibir”!

Costuma-se dizer que 1968 foi o polo de condensação de uma série de movimentos que, no fim das contas, promoveram, com o passar dos anos, “sutis” conquistas: a afirmação dos direitos dos trabalhadore(a)s, o reconhecimento do protagonismo juvenil (“maré da juventude”), a igualdade de direitos das mulheres, a exigência de governos mais democráticos e participativos. Frágeis vitórias, gradualistas e ameaçadas conquistas: quem poderia dizer que, passado meio século, essas demandas coletivas não continuam atuais? Quando voltamos aos episódios de 68, certa frustração igualmente nos alcança. Carlos Drummond (1902-1987), que acompanhou atentamente aquelas agitações, a explicitou: “Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.”

O filósofo Henri Lefebvre (1901-1991) provocou nosso raciocínio ao dizer que, no 68 francês, estavam presentes todos os elementos que compunham uma “situação revolucionária”. Sobretudo quando os trabalhadore(a)s aderiram à vaga juvenil (que gritava nas “barricadas do desejo” que “De Gaulle é senil”), paralisando dois terços da produção do país e fazendo o general-presidente refugiar-se temporariamente na Alemanha, para dali comandar a reação. Completou Lefebvre, e a história lhe deu razão: “A situação revolucionária não desembocou em revolução. Nem em contrarrevolução.” O mestre preferiu denominar o impressionante movimento de massas como “irrupção”.

Talvez o conjunto diversificado de movimentos – sobretudo urbanos – analisados nesta obra tenham mesmo esse traço comum: são irrupções contestatórias. Nelas, os estudantes têm papel primordial, em todas as partes do mundo. O sociólogo Léo Lince explica:

A juventude, entendida menos como faixa etária e mais como um tipo determinado de relação com o mundo, é por excelência o agente da contestação. Além do jovem, que ainda não foi “reduzido” a um papel social no interior do sistema, existe a multidão dos recusados pelo modelo unidirecional. (1)

Lince completa, ao mencionar a “revolução” que mais evolucionou que revolucionou:

A irrupção contestatória costuma semear novidades (novas lideranças, nova pauta de debates, novos sujeitos, nova morfologia na estrutura dos movimentos) que se destinam a produzir, como bombas de efeito retardado, alterações profundas na cultura política. Nem sempre na conjuntura imediata, mas no entranhado das estruturas. (2)

Muito do democrático e emancipatório que vivemos hoje, em diversas nações, a despeito do recrudescimento conservador, originaram-se nas lutas mundiais de 1968. Ainda que a sonhada “revolução” não tenha acontecido – nem os trabalhadore(a)s se reconhecido, ao menos em sua maioria, como classe a socializar os meios de produção –, alguma coisa de muito profundo aconteceu no coração das sociedades agitadas por aqueles movimentos. Certas formas de dominação precisaram ser alteradas, e segmentos que clamavam e reclamavam passaram a ser mais respeitados pelo próprio sistema. Sistema que foi testado em sua inegável capacidade de “domesticar” a rebeldia.

A compreensão da história revela a chama que incendiou mudanças e aponta erros que não devemos repetir. Um olhar meramente laudatório sobre 1968, mesmo reconhecendo sua pluralidade, seria ineficaz. Por isso, nesses tempos em que a esquerda precisa se reinventar, é imprescindível pontuar os muitos fatores em que o “socialismo real” negou seus arrebatadores impulsos originários. Isso vale tanto para as revoluções icônicas do século XX – a russa, a chinesa, a cubana – como para os impressionantes movimentos de massa de 1968. O balanço crítico está presente em cada página que você lerá.

O capitalismo hegemônico no mundo, em sua etapa de financeirização, continua sendo reprodutor da desigualdade. Mas o socialismo e a democracia a serem reinventados têm que incorporar novos valores e se inserir nas exigências do século XXI: participação permanente, transparência, cuidado ambiental, combate a todas as formas de opressão e discriminação. Em maior ou menor grau, essas postulações já estavam presentes nos movimentos de 68, como você constatará ao desfrutar os ensaios deste livro.

As marcas do final desta segunda década do século XXI parecem ser a incerteza e o desencanto. Elas também existiam em 1968. Misturadas com a insatisfação, inclusive com os regimes totalitários de esquerda, formaram o “caldo de cultura” que deu combustível àquelas inúmeras manifestações de recusa das estruturas dominantes. Quem busca uma nova ordem e indigna-se com o status quo do individualismo consumista, deve se animar, mesmo em tempos de cartas embaralhadas e sinais trocados. O bicentenário Marx, em carta a um amigo nos anos 40 do século XIX, manifestou sua alegria com o caos: “A desesperança da época em que vivemos me enche de esperanças!”

Os desafios de 68 seguem prementes, em muitos aspectos. Cito um deles, derivado da radical contestação do poder daquela época: urge conceber um novo Estado, transparente, poroso às demandas populares. Que, como diz Álvaro Linera, vice-presidente da República Plurinacional da Bolívia, “orquestre o modo como concebemos aquilo que nos vincula aos outros, como educação, estradas, comércio, saúde e concepção de vida em coletividade”.

O planeta Terra faz uma revolução permanente, em torno de si mesmo e do Sol. Se não nos revolucionarmos diariamente, como já se exortava em 1968, ficaremos tontos e andaremos para trás. Aquele ano, que foi muito além de si mesmo, precisa ser revisitado e, mais que isso, revivido dentro de nós. Ler este livro ajuda, e muito.

* Chico Alencar é professor, escritor e deputado federal (PSOL/RJ).

NOTAS
1 – LINCE, Léo. A rua, a nação e o sonho. Rio de Janeiro: Mar de Ideias, 2013, p. 41.
2 – Ibidem, p. 43.

 

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1968