No dia da morte de minha tia
Publicado em: 8 de maio de 2021
No dia da morte de minha tia por COVID-19, eu abri o WhatsApp e, procurando algum conforto, falei para algumas pessoas e em alguns grupos o que tinha acontecido.
Como esse negócio de WhatsApp é realmente uma coisa inacompanhável, neste dia, nesta situação, vi que em um grupo de “amigas”, havia tido uma treta muito grande. Uma pessoa, católica, cuja família vem de políticos oligarcas do sertão, naquele estilo que bem conhecemos, e cujas posses são muito, muito altas, insistia no ponto de que as pessoas vibravam energias negativas. Era vibrar energia negativa e a falta de Deus que fazia com que as pessoas morressem de COVID. “A COVID não é isso tudo”. Disse que não lê matérias sobre COVID e se mantém alienada para não “vibrar energias negativas”. Vejam só: na família dela, várias pessoas pegaram, nenhuma morreu. Faço um aparte: essa pessoa, que mora em um condomínio de luxo, assim como seu marido, trabalham de home office desde o início da pandemia.
Bem, segundo o pensamento dessa minha amiga, deus seria uma espécie de ser narcísico, que tem uma dependência de que as pessoas passem o tempo todo o idolatrando. Quem não o faz seria punido. De 2020 para cá, com uma mortinha de COVID-19.
Sendo deus dessa maneira que minha amiga pensa que ele é, com certeza, seria algo ou alguém que eu, certamente, faço questão de não conhecer.
Mas, a falha de minha amiga caía em um erro metodológico. É porque o pensamento mítico tem essa coisa, não tem metodologia, não tem nada, é só a repetição malamanhada das histórias que te contam.
Minha tia era religiosíssima, talvez, uma das pessoas mais religiosas que conheci. Acreditava em deus, rezava muito, às quartas-feiras, reunia as pessoas para ler o evangelho. Se deus é realmente esse ser afetado, que se vinga de um e de outro que não está ali batendo o ponto da reza, não era minha tia que ele deveria matar. Ou, pelo menos, não primeiro, no elencar dos que acreditam mais ou menos em deus. É de se destacar que minha tia, enfermeira, seguiu todo o período de COVID-19 trabalhando e cuidando de gente, portanto, expondo-se, enquanto a família de minha amiga vibrava boas energias em seu condomínio de luxo.
Percebam o grau de perversão de uma afirmação como essa. E aqui, eu falo de uma perversão nada psicanalítica, eu falo da maldade pela maldade, esta forma de ser que os nossos religiosos brasileiros, de forma massiva, recentemente, têm gostado de adotar.
Então, para essa pessoa, que tenham morrido 400 mil pessoas nada tem a ver com que o governo federal não tenha, até hoje, feito um enfrentamento da pandemia, e, pelo contrário, tenha a estimulado. Nada tem a ver com o governo federal tenha se negado, inúmeras vezes, a comprar vacina. Nada tem a ver com não termos leitos de UTI, insumos, oxigênio. As mortes por COVID são apenas uma questão individual: que uma pessoa vibre energias negativas (e, segundo ela, ler matérias sobre COVID ajuda a vibrar energias negativas) e que não tenha fé em deus.
Bem, essa foi uma pessoa com quem convivi há mais de vinte anos.
Voltando ao ponto: Bolsonaro e a pandemia só serviram para deixar muito mais explícitas como se dão os pensares e agires dos brasileiros.
Uma coisa que eu acho engraçada, no sentido de curiosa, mas, no entanto, muito triste, nos nossos religiosos, é que o fanático é sempre o outro. Frequentemente, inclusive, o evangélico. Quem tem nível superior, altos cargos e bons salários, e acredita que ler matérias de jornais faz vibrar energia negativa e, portanto, morrer de COVID-19, não é fanático. Fanática é aquela pessoa pobre, das periferias, que está lá com cabelo comprido, sem se depilar e sem beber, por causa da sua religião.
Perpassa, na pessoa que é capaz de abrir a boca para dizer que se morre de COVID por falta de fé em deus, a mesma crueldade que existe na pessoa que acha que um casal de homens ou um casal de mulheres não pode amar e constituir família. Da católica rica, dos altos cargos, à evangélica pobre, o que está em questão é sempre uma moralização agressiva, violenta, do outro. Quanto a mim, posso continuar aqui traindo o meu marido, enganando um ou outro tranquilamente, domingo vou na missa rezar e deus acha super tranks esses meus pecadinhos.
Sou ateia. Mas, não saio por aí dizendo que sou ateia, por um motivo muito simples: dizer “sou ateia” é não ter paz. As pessoas se dão, a partir daí, o direito de encher teu saco.
Já estive em situações super agradáveis, festas, confraternizações, em que, em algum momento, deixei escapar que sou ateia, e pronto. Acabou-se festa, acabou-se conversa, acabou-se tudo. O BBB passou a ser irrelevante. A partir daí, a única missão da mesa passou a ser tentar me converter. Que é essa violência simbólica, que se soma às outras, que os religiosos frequentemente fazem.
Que eu sou ateia, mas não saio por aí enchendo o saco de ninguém, não saio batendo de porta em porta, dia de domingo, com um bom livro debaixo do braço (eu levaria Diálogos entre um padre e um moribundo, seria ótimo), perturbando ninguém. Com que direito, não só uma, mas, milhares de pessoas se dão, de tirar as pessoas de seu sono e de seu sossego, para fazê-las acreditar em suas próprias mitologias?
Outra amiga minha, que me acha uma pessoa muito boa, uma vez disse assim: você acha que não é cristã, mas você é. Aquilo foi, para mim, uma violência terrível. Porque a linha divisória, na cabeça dessas pessoas, é assim: se é boa, é cristã. Se é ruim, não é cristã.
No entanto, não é nada disso que a realidade mostra. Vá numa cadeia qualquer e pergunte a religião das pessoas. A maioria delas tem alguma religião, poucas se declararão ateias, e não foi isso que as impediu de darem uma esquartejadinha em ninguém.
Assim como eu, porque gosto de cuidar das pessoas, porque gosto de ouvir e aconselhar, não preciso de religião nenhuma para isso. Preciso ter empatia e solidariedade pelos outros. E, na minha empatia e solidariedade, não cabe tentar mudar as crenças dos outros, por mais que seja desesperador constatar o quanto o pensamento mítico faz mal à sociedade. Se eu acredito que a causa das coisas está no sobrenatural, é lá que eu vou procurar as respostas, e não, na concretude do mundo. Assim como: se eu acredito veementemente no que me foi dito, sem a possibilidade de questionar, que eu acredite em uma cura espiritual ou cloroquina, dá na mesma. Porque é de uma forma de pensamento que se trata. Uma forma de pensamento que não se detém na materialidade dos fatos.
*Taís Bleicher é Psicóloga
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