Alvaro Bianchi
Uma das consequências menos notadas da ascensão e queda do stalinismo foi uma alteração profunda na literatura do socialismo. A prosa rude e deselegante da burocracia soviética desafiou o estilo literário que se encontrava impresso nos principais documentos do movimento operário do século XIX e do início do século XX. Uma contrarrevolução estilística teve lugar. A prosa direta e eficaz de Lenin, a forte e entusiasmada retórica de Trotsky e a altiva simplicidade de Bukharin cederam lugar às frases curtas e truncadas de Stalin, aos ameaçadores parágrafos de Vizhinsky, aos contorcionismos de Molotov.
O léxico dessa literatura também sofreu as consequências da contrarrevolução. Novas e brutais palavras como gulag, ukhazes, nomenklatura e siglas assustadoras como GPU e NKVD misturaram-se aos insultos e ameaças com os quais desde o início da década de 1920 a burocracia soviética adornava seus discursos. Mas também as velhas expressões sofreram com a novilíngua burocrática. Noções e conceitos amplamente utilizados pelo movimento socialista precedente foram retorcidos e reutilizados pela burocracia para legitimar sua nova prosa política. O efeito tardio desse Termidor lexical foi a perda dos marcos linguísticos comuns que permitiam a comunicação entre os socialistas das mais variadas correntes e a proliferação de dialetos políticos usados por pequenos grupos de resistentes.
Um dos efeitos tardios dessa contrarrevolução linguística é a generalização do uso das noções de esquerda e direita, velha e nova e de seus arranjos, para definir posições políticas e o abandono das ideias de socialismo e de classe como referenciais políticos. Embora a noção de esquerda possa ser utilizada por economia de linguagem ela nem sempre é eficaz para designar um projeto político baseado no princípio do igualitarismo, um projeto socialista. Há alguns anos o amigo Armando Boito me fez notar em tom de galhofa que em alemão, francês, inglês e espanhol são usadas palavras muito diferentes para referir-se à esquerda: Linke, Gauche, Left, Izquierda. Mas o radical utilizado para Socialismo é o mesmo: Sozialismus, Socialisme, Socialism, Socialismo. A jocosa conclusão é que a esquerda nos divide e o socialismo nos une.
O limite maior que identifico na noção de esquerda é o de que sua definição é claramente referencial. A esquerda é uma posição no espectro político que se refere a outras posições. Desse modo, está-se à esquerda ou à direita de alguma outra coisa. A origem do termo é bem conhecida. Ele nasce na Revolução Francesa, durante os primeiros debates constitucionais na Assembleia Nacional. Aqueles que se opunham ao direito de veto real se reagrupavam à esquerda no plenário, enquanto os partidários do poder real estavam à direita.
A origem do termo já define seus limites. Tendo nascido no âmbito dos debates parlamentares para expressar uma posição política, ele passou a carregar consigo os limites impostos pela regras do jogo próprias da política parlamentar. Este é um dilema a respeito do qual Norberto Bobbio muito argumenta sem conseguir, entretanto, sair desses limites. Quando, por exemplo, define o conceito de esquerda como uma posição política positiva que “os homens organizados em sociedade assumem diante do ideal da igualdade”, Bobbio (1995, p. 95) faz questão de diferenciar esse ideal de igualdade do princípio igualitarista: “A todos a mesma coisa” (idem, p. 97).
Segundo Bobbio as “desigualdades naturais existem e se algumas delas podem ser corrigidas, a maior parte não pode ser eliminada” (idem, p. 102). Muitas das desigualdades sociais, por sua vez, poderiam ser corrigidas e mesmo eliminadas, mas outras tantas “podem ser apenas desencorajadas” (idem). Daí que as desigualdades não possam ser nunca superadas. O igualitarismo, ou seja, o princípio que sustenta a superação de todas as desigualdades é o resultado de “uma visão utópica (…) mas, pior do que isso, uma pura declaração de intenções à qual não aprece ser possível dar um sentido razoável.” (Idem, p. 100.)
Ora, razoável é apenas aquilo determinado pelas regras do jogo. Como base nas alternativas aceitáveis nesse jogo seria possível assumir posições de direita e de esquerda. Seriam de direita aqueles que se mostram mais insensíveis à diminuição das desigualdades, enquanto seriam de esquerda aqueles mais sensíveis a tal. O argumento de Bobbio é, a meu ver, logicamente falho. Uma vez que considera que a igualdade não é um conceito absoluto e sim relativo (idem, p. 96), ele necessita do princípio igualitarista, ou seja, a igualdade absoluta, como uma medida de igualdade. De acordo com as regras do jogo são razoavelmente de esquerda aqueles que respeitosamente se aproximaram mais do que outros do princípio igualitarista, por mais distantes que dele se posicionem, sem o desejarem de fato. Vemos, então, quão limitado é o conceito de esquerda se desejamos criar um que designe um projeto político orientado pelo princípio igualitarista.
Deixemos o substantivo de lado e passemos aos adjetivos velha e nova. Assim como considero o substantivo esquerda como não perfeitamente adequado para expressar um projeto igualitarista, considero que os adjetivos velha e nova são igualmente inadequados para qualificar as diferentes formas que esse projeto possa assumir. Assim como direita e esquerda, velho e novo também podem ser concebidos como conceitos axiologicamente construídos. É-se novo com relação a algo que ocorreu antes, assim como se é velho com relação ao que veio depois. Mas ao contrário de esquerda e direita falta a esses conceitos uma medida absoluta. O tempo é sempre relativo. O risco óbvio é que na ausência de um referencial absoluto o presente se autodenomine o último novo. O último novo seria, assim, o limite inamovível da política. Mas, afinal, depois da nova esquerda viria a novíssima esquerda? E depois da novíssima esquerda, viria o quê?
Isso não impede que por razões de comodidade ou mesmo de respeito às tradições do pensamento político continuemos utilizando expressões como esquerda e direita. O caráter axiológico da definição é limitado, mas não é de todo modo inútil para a análise política. Saber quem está à direita ou à esquerda de um determinado ponto é sempre útil. Mas também é útil saber o quão distante se está do igualitarismo que deveria servir como ponto de referência. Do mesmo modo o uso dos adjetivos velho e novo pode evidenciar uma concepção linear e homogênea do tempo. Os ciclos e contratempos próprios da política dificilmente poderiam ser explicados por essa concepção linear. A insistência na dicotomia velho/novo implica assumir que o novo ultrapassa definitivamente tudo o que ficou para trás, sem possibilidade nenhuma seja de reapropriação, seja de retorno ao próprio passado.
Referência bibliográfica:
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção politica. São Paulo, SP: UNESP, 1995.
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